REVERÊNCIA
Sou do tempo que o respeito era cultivado e ensinado pelos mais velhos. Qualquer autoridade era reverenciada desde o soldado até o general, por incrível que pareça.
Morei ao lado da 5ª CIA DE GUARDA do Exército Brasileiro no Largo da Sé em Belém e por isso mesmo fui sendo contagiado pelo sentimento patriótico de amor ao Brasil.
Em dias de gala aquele agrupamento militar formava consumindo o espaço em frente a minha casa. Todos com os uniformes impecáveis.
À frente da Banda Marcial desfilava um garboso carneiro cheio de lã, sem aparar, imagino o calor daquele animal!
Menino, me envaidecia e tinha orgulho do meu Brasil!
Quando rompia em marcha sob os acordes dos instrumentos musicais no compasso a tropa marcava com os pés o ritmo do dobrado puxado pelos instrumentos de sopro.
Quando passava a bandeira nacional todos faziam gestos de ufanismo e respeito.
Apesar do francês Charles de Gaulle afirmar que não, nós brasileiros tínhamos a convicção de que nosso Brasil era um país sério.
Que vemos hoje?
O Brasil comandado por uma quadrilha cujo chefe é oriundo das Forças Armadas.
O avião presidencial serve ao tráfico de cocaína na comitiva oficial do Presidente da República e dentre mais de mil escândalos o mais recente é que a ordem para matar Mariela partiu do Palácio do Planalto.
Aquele menino que hoje é um velho de 81 anos assiste com lágrimas nos olhos e um punhal no coração a desmoralização do país e suas instituições.
Não temos a quem recorrer!
Abandonados e sem rumo, completamente à deriva, assistimos o país ser saqueado não só por estrangeiros, mas, também por maus brasileiros que deveriam estar encarcerados na mais profunda masmorra.
Oscar Niemayer que projetou Brasília teria dito que se soubesse que Brasília se transformasse no que é hoje, não a teria projetado em forma de avião e sim em forma de camburão (apelido dado à viatura que transporta ladrões e todo tipo de bandido).
08/04/2022
Pedro Parente
CANDINHO
Desde
a mais tenra idade, com poucos meses de nascido, mamãe me levava em seus braços
e me banhava nas águas mornas da baía de Santo Antônio, na ilha de Mosqueiro,
no estuário do rio Amazonas.
Papai,
a conselho médico, comprara aquela pequena propriedade defronte à Praia Grande,
como terapia coadjuvante no tratamento de uma doença tropical chamada beribéri
que se apoderou de meu irmão.
Felizmente,
meu irmão sarou e tornou-se um jovem saudável.
Aquela
ilha bucólica, pela minha ótica, é o paraíso - não fossem algumas tristes
recordações que, creio, existem até no reino de Deus.
De
remédio para o mal que afligia
meu irmão,
aquela pequena propriedade
a que minha
mãe dera o nome
de Pindorama, Terra das Palmeiras
em tupi,
tornou-se nossa inseparável
fonte de lazer.
Todos os anos,
nas férias escolares,
pelo menos quatro meses nós
passávamos ali. Desta forma
nos tornamos íntimos
dos ilhéus, participando de suas vidas.
As crianças
são as primeiras a se relacionar. Desprovidas de qualquer
preconceito, de alma
pura, cativam todos,
principalmente os de sua idade.
Comigo não
foi diferente, porém um menino em especial chamou-me atenção.
De olhar opaco
e triste, tez
pálida, com
uma tosse intermitente
que não
o deixava concluir uma frase. Dentes
podres, cabelos
lisos escorridos
sobre a fronte,
aquela criatura esquálida
de respiração ofegante não dizia, mas eu pressentia a inveja que
sentia de nós, quando corríamos atrás da bola
na areia fofa
da praia.
Tínhamos todo
o cuidado com ele,
trazendo-o num carrinho de mão e acomodando-o à sombra
de uma frondosa mangueira.
Sua posição
lembrava uma gárgula. De cócoras,
os braços abraçando as pernas, permanecia ali,
quieto em
silêncio, divagando, pensando, quem sabe, na imagem
de um menino
saudável, participando daquela pelada.
Não, a vida
não fora
justa com
ele. Nasceu para
sofrer. Vítima
de uma tuberculose galopante, restava-lhe esperar pela sua hora final. Chamava-se Cândido.
Candinho para nós.
Por pura
empatia, talvez
pela sua
fragilidade, dele me
apiedei. Tornei-me seu maior admirador. Na minha imaginação
de criança, sempre que
o encontrava, imaginava encontrar-me com
um santo
prestes a defrontar-se com Deus.
Sua casa
miserável, de chão batido e pau-a-pique,
coberta de paxiúba, agravava ainda mais
a doença. Lá dentro, os ataques de tosse e, por
vezes, as hemoptises, eram mais freqüentes.
Seu pai,
homem rude pela lida com o mar, pouca atenção lhe dava, talvez
para não ser traído por uma lágrima. Sua mãe desdobrava-se entre
o fogão e a bacia
de roupas, restando-lhe pouco tempo para assistir o filho doente. Remédios? Somente os dos
raizeiros e pajés, ou alguns que papai
levava de Belém. Em casa,
as coisas de melhor
que tínhamos para
comer, como maçãs e biscoitos,
sorrateiramente, eu
subtraía para levar ao meu amigo
Candinho. Mamãe não
podia saber. Ela
não permitia o contato
com ele. Amedrontada pelo
contágio da doença,
ameaçava me bater,
como o fez algumas vezes, apesar de que
asa de anjo não
ofende ninguém. E assim
fui assistindo meu amigo
se desmilingüir, esvaindo-se em sangue.
Num final
de tarde, véspera
de Natal, quando
preparávamos nossa ceia
para aguardar a chegada do Papai
Noel, vi a mãe de Candinho aflita, conversando com
minha mãe
à entrada da porteira.
Esgueirei-me entre as árvores. Ainda deu
para ouvir o final da conversa: Candinho mandara me chamar. Sem que ninguém visse, em
desabalada carreira, cheguei à beira de seu catre pobre e mal cheiroso. Com os olhos
semicerrados, estendeu-me a mão. Tentou apertá-la, mas
não tinha
mais força. Esboçou um
sorriso; uma imagem de dor tomou-lhe a face.
Estava morto, ali
na minha frente,
meu inesquecível
amigo.
Ainda hoje,
já velho,
nas noites de Natal,
quando todos
esperam por um
presente – ouro, incenso, mirra – durmo na esperança de que
Papai Noel me
conceda a graça de apertar
a mão do Candinho pela
última vez.
DUAS
HISTORINHAS
Há alguns dias, estávamos
sentados à mesa em nosso já tradicional foro de debates, na Confeitaria da
Vovó, e da conversa participavam Judas, Demônio, Gafanha e nosso glorioso
Miguelzinho, que se crescesse alguns centímetros, talvez alcançasse a estatura
de um metro.
Contam
que o Miguelzinho fora um habilidoso ponta direita do Athletic, tendo jogado
também em outras equipes de renome em Minas Gerais. Sua
maior honra é ser afilhado de casamento do grande meio-campista do Cruzeiro Zé
Carlos, que fazia ala com Dirceu Lopes.
O
assunto era
futebol, quando começamos a lembrar de alguns cognomes de grandes
jogadores do passado:
Leônidas, o Diamante Negro; Ademir, o Queixada;
Didi, o Príncipe Etíope;
Nilton Santos, a Enciclopédia;
Garrincha, a Alegria do Povo; Orlando, Pingo
de Ouro; Baltazar, o Cabecinha de Ouro;
Pepe, Dama Patuda; Danilo, o Príncipe; Gerson, o Canhotinha de Ouro;
Amarildo, o Possesso; Jairzinho, o Furacão da Copa; Raul, o Wanderléia; Rivelino, Patada Atômica; Almir, o Pernambuquinho; Silva, o Batuta; Zico, o Galinho de Quintino; Roberto, Dinamite; Caio, Cambalhota;
Fio, Maravilha;
Pelé, o Rei; e os nossos:
Renato, o Espingarda; Wilson, o Vedete;
e, finalmente, Miguelzinho, o Pigmeu das Alterosas, batizado
com essa pérola
de antonomásia, naquele instante, pelo espirituoso Judas.
***
Certo dia, uma segunda feira, quando morava em
uma república de solteiros
em São
Paulo, meu amigo Álvaro levantou-se de manhã
com uma pequena
ressaca moral
e uma grande saudade
de nossa boa terra.
Como já
havia acontecido em ocasiões
anteriores, buscou consolo
numa agência do Banco
de Crédito Real
de Minas Gerais.
—
Vou ver se encontro algum conhecido para me dar notícias frescas de São João! –
pensou.
Assim
fez. Chegando naquele estabelecimento bancário, deparou com longas filas, o que
é comum em se tratando de uma segunda-feira. Procurou, procurou até que
descobriu uma cara conhecida. De alma nova, cheio de ânimo, dirigiu-se àquele
cidadão que pacientemente aguardava sua vez em frente ao caixa. Num gesto
amigo, bateu no ombro do rapaz e falou:
—
Que bom te encontrar! Como vai São João?
—
São João? – perguntou o rapaz.
—
É, sô! São João del-Rei, nossa terra – insistiu Álvaro.
—
Não, nunca estive em São João?
—
Uai, de onde então eu te conheço?
—
Sou teu companheiro de quarto na república do Largo do Arouche.
(Fecha
o pano, correndo!)
O SEXAGENÁRIO
Fui
mortalmente atingido por esta marca provecta. Numa reflexão,
me dei conta
de que no lugar
dos sorrisos da minha
face, surgiram sulcos
provocados por uma já
constante expressão
sisuda decorrente de pensamentos mórbidos,
de uma expectativa de vida
cada dia
menor. Não
tenho mais o brilho
nos olhos
igual ao daqueles que
amam a vida. Os braços
cansados não têm a mesma
força de outrora, quando
praticava o remo de competição. Os passos
titubeantes e claudicantes acusam o
envelhecimento dos ossos do meu corpo e uma
dolorosa artrose destrói meus joelhos.
Muitas coisas que
me causavam alegria
hoje me
aborrecem. As freqüentes gargalhadas deram lugar
a um sem
graça sorriso amarelo
e as parcas lágrimas
de outrora tornaram-se freqüentes.
Obeso,
tornei-me alvo da ganância:
o esteticista olha
para mim e vê um cifrão; o cardiologista
também e por
último o dono
da funerária. Faço parte
do discriminado grupo dos gordos. Nessa idade em que os prazeres
vão se tornando escassos, não devo e não
posso me privar
daquele que sempre
coloquei à frente de quase todos, o prazer da boca, o prazer da mesa, do bom beber e do bom comer. Foi assim que
adquiri meus 120 quilos
e esta vasta barriga,
que, segundo Seu Alain, é um
“tesouro”. De fato,
alguns milhares
de calorias e de reais
foram consumidos para cultivá-la. De bebida nem se fala, talvez
uma piscina olímpica
tenha sido ingerida nesses sessenta anos.
“Quem envelhece é a matéria, o espírito
continua jovem!”, exclamam alguns com ares de sabedoria. Quem
gosta de espírito
são os campos-santos, onde vivem os bem-aventurados.
Eu vivo da matéria
e se ela envelhece, eu
feneço. Morrendo, nada mais me
interessa, pois não
verei mais minha
família, meus
filhos e os amigos
que amo.
Não verei mais as montanhas
verdejantes desta terra, os rios
serenos serpenteando mansamente entre
seus vales,
o sol brilhante
das Minas Gerais,
as chuvas generosas que
encharcam a terra, revigorando a relva e
o verde num espetáculo
de renovação da vida que nos é
oferecido por nossa
mãe natureza
e que, para muitos, passa
despercebido.
Infelizmente,
só vamos dar atenção à singeleza
de uma flor, quando já
não tivermos mais
tempo para
admirá-la. A competição pela sobrevivência na lida
diária não nos permite parar
para apreciar as perfeições, os fantásticos
alvoreceres e crepúsculos à nossa volta. “Os desenganos vão
conosco à frente
e as ilusões vão
ficando atrás”, dito pelo
poeta que tem
o dom de expressar
com palavras
aquilo que
sentimos e não sabemos falar.
Há muito não
tenho mais de quem
tomar benção. Meus
ascendentes todos
já se foram. Vou caminhando em meio a uma tempestade de raios
sem ter abrigo. Volta e meia um companheiro de jornada
é atingido. Mais recentemente meu inseparável
amigo Salvador
foi o alvo de um desses raios. Deixou
uma lacuna profunda
no meu coração.
Pessoa de fino
trato, educação
esmerada, solícito. Pensar que
não o verei mais
me causa imenso pesar e não dou conta de evitar as lágrimas.
Não sei se o Salvador havia combinado com o Remo, mas tudo faz crer que está havendo
uma grande festa
no céu, pois seu sepultamento
foi exatamente no dia
do aniversário do Artur. Ainda bem que o “Leréia” não me
convidou.
ACONCHEGANTE (NÃO
TERMINOU)
Sábado
chuvoso em São João. Aquela chuvinha preguiçosa que chamam
de “molha bobo”, caindo sobre o tapete verde do meu quintal. Ao fundo a Serra
de São José, hoje com seu verde exuberante esmaecido pela garoa que cai.
Protegidos
pelo telhado do barracão
contíguo à cozinha
de minha casa,
uma imensa mesa
rústica, de madeira, com o fogão a lenha e sua
tradicional companheira, a velha chaleira de alumínio, bebemos uma boa pinga da roça e comemos, demoradamente, a feijoada da Tia Glória. Bom papo
com Luiz Arthur e Ângela, a garotada na piscina —
para eles não há chuva que impeça. E, para completar,
no toca-discos, a obra completa
de Chico Buarque, presente do meu
amigo José Luiz.
O
que quero mais
da vida?! Nas coisas singelas é que encontramos o magnetismo
emotivo da vida.
As músicas do Chico são
verdadeiros poemas colocam nossas almas
(não terminou)
ADEUS,
DINHO
Envelhecer,
além de aborrecimentos corriqueiros como não saber onde esqueci os óculos de
grau, é não saber quanto tempo ainda viverei. Dessa forma, maiores serão minhas
tristezas e perdas. Um tributo caro pela longevidade. Assim, num 12 de dezembro
que eu não gostaria de ter vivenciado, perdi meu amigo Dinho das Rosas.
Um iluminado. Não
entendo nem compreendo nada de coisas intangíveis do imponderável,
e, lamentavelmente, sou um homem de pouca ou nenhuma fé. Sinceramente, invejo aqueles
que a têm em
demasia.
Com
o Dinho era diferente. Ali, naquele cômodo apertado e modesto, me sentia
protegido. Só em vê-lo, me alegrava. Aquela figura simples e carismática,
buscando dar conforto a todas as pessoas aflitas que o procuravam. Com sua
caneta traçou várias estrelas no papel e concluiu que minhas linhas do destino
haviam sido fechadas.
Certo
dia, após meus insucessos financeiros, perguntou-me por que não busquei ajuda
antes. Disse-lhe que ninguém era responsável pelos meus fracassos. Mandou-me
orar todas as manhãs para São Marcos. Expliquei-lhe, então, que minha fé era
quase nada. Ele, então, me disse:
—
Todas as noites eu rezo por você!
Fiquei
emocionado, pois além de minha mãe, já falecida, a única pessoa que rezava por
mim — que não deixa de ser uma forma de grande carinho e preocupação — foi-se
embora.
Mais uma grande perda para mim e
para todas aquelas pessoas carentes. Hoje, somos todos órfãos.
Superando
todos os “ses” (se existe céu e inferno? se existe alma?), certamente existirá
Deus e tenho a convicção de que fui amigo de um de seus emissários.
Descansa
em paz, Dinho, leva contigo o afeto e a admiração de todos nós. Nossa cidade
está mais triste.
ADEUS, ROBERTO
Quinta-feira
negra. Pela manhã,
no meu telefone, a mensagem
que gostaria de nunca
ter recebido. Desta feita,
meu querido amigo Roberto Riveti havia nos
deixado. Uma amizade feito casa, como diz o cantor e compositor Lenine em seu choro: “Amigo é feito
casa que
se faz aos poucos e com
paciência pra
durar pra sempre...”
Assim
foi com o Roberto. Tivemos um início de vida profissional
semelhante, porém,
em épocas
diferentes. Eu
vindo de Belém para o Rio
de Janeiro, lugar desconhecido,
e o Roberto também. Contava-me suas histórias com seu sorriso fácil, ingênuo e franco.
Saiu de sua cidade,
Oliveira, diretamente
para trabalhar numa farmácia na avenida Nossa
Senhora de Copacabana. Sua
perplexidade era com
o traje que
as moças usavam para ir à
praia. Um
verdadeiro escândalo,
que deveras
o sensibilizou, a ponto de, algumas vezes, esquecer do almoço para admirar
a plástica das cariocas.
Depois
mudou de emprego e foi trabalhar
na Marinha de Guerra até que finalmente voltou para São João, onde,
com seu irmão,
nosso querido
Mundico, fundou a Farmácia Santa
Terezinha, que aí está até hoje para orgulho da nossa cidade,
administrada com maestria
e a mesma simpatia
dos irmãos, pelo
filho do Roberto, nosso
também amigo
Calê.
Quantos,
como eu,
iam ali, não
com o intuito
de comprar medicamentos,
mas sim, para
ouvir os causos do Roberto. Pessoa
que a mim
transmitia muita tranqüilidade.
Tínhamos afinidades transcendentais.
Lembro-me do dia em
que ele
chegou a mim e disse:
—
O Celso Passos
me pediu para
fundar o diretório
do PMDB em
São João del-Rei.
Estou apertado porque
é preciso um número
grande de pessoas.
Me lembrei de você, que
trabalha na fábrica
Brasil e está envolvido com esporte lá no
Siderúrgica.
Imagine
se eu iria colocar
obstáculo ao seu
pedido. Concordei e, na data marcada, no sítio de dona
Amélia, esposa do Ministro Gabriel Passos
e mãe do Celso,
lá estavam todos. Na presença
do dr. Paulo Brossar, dr. Milton
Viegas, Pedro Salomé e outros, fundamos o diretório do PMDB.
Roberto
ficou agradecido com a solução
do problema do Celso
Passos, que era
seu amigo
íntimo.
Nossa
amizade vem desde
quando aqui
cheguei, por volta
de 1967 e quantas vezes o Roberto me ajudou como conselheiro e amigo.
Na minha retina
permanecerá a imagem dos dois
irmãos, pela
manhã, na hora
do almoço, na volta
do almoço e no final
do expediente, sempre
juntos, passando em
frente ao posto
de gasolina que
administrei durante 14 anos.
Uma
falta irrecuperável,
insubstituível.
Neste
velho coração
combalido, mais uma ferida
no meio de tantas cicatrizes.
À
família, minhas
condolências, especialmente
à dona Lígia e aos seus filhos.
Descansa
em paz, Roberto!
AMOR E AFETO
Sem
amor e afeto, ninguém é feliz. Sou uma das pessoas privilegiadas por ser
retribuído com amor e afeto pela pessoa que amo. Aos sessenta anos, cansado,
deformado pela obesidade, não posso ter a ilusão de que ainda posso agradar
alguém ou despertar amor e afeto em outra pessoa. Porém, acreditem, apesar de
todas as negativas contra mim, mesmo assim, ainda gozo de certos prazeres que
muitos homens próximos da terceira idade não têm. Na singeleza da casa em que
vivo, rodeada de árvores frutíferas, os passarinhos fazem sua festa e seus ninhos
no sótão inacabado e retribuem a pousada, me despertando com os mais diversos
chilreados e trinados que formam uma bela e alegre sinfonia. Dois pachorrentos
vira-latas montam guarda na soleira de minha porta.
Nesse
bucólico ambiente, às vezes, me afasto de casa, por puro masoquismo, só para
ser recompensado com a recepção no retorno. À porta, de olhos vivos e
excitados, recebo um carinhoso beijo e um meigo abraço. Suas mãos de seda
acariciam minha barba. Caminhamos para a cozinha, conversamos, brincamos e
jantamos. Subimos às escadas, onde nossa cama de casal nos espera. Após
fazermos nossa higiene e trocar nossos pijamas, finalmente, na nossa cama de
casal, deitamo-nos. Abraçados, ouço sua voz:
—
Boa noite, papai! Durma com Deus!
É
meu filho Pedro, de sete anos.
Recompensado,
durmo, o sono dos justos.
ALERTA MÁXIMO
Li,
via internet,
uma notícia que
me deixou estarrecido. O título era: “Estados Unidos aumentam o seu
território”. Curioso,
apressei-me em inteirar-me da notícia. Em princípio
imaginei tratar-se de mais uma anexação,
ou da tomada de algum território afegão ou paquistanês, onde
impiedosamente aviões
americanos despejam seus
artefatos de morte. Sob a desculpa de exterminar o terrorismo (com
terrorismo), os Estado
Unidos vão desovando seus estoques
de mísseis e bombas com
prazo de validade
vencido ou prestes a vencer.
Desta forma estão revigorando a maior indústria bélica
do planeta, criando novos
empregos para
produzir mais
mortes pelo mundo afora.
Enganei-me, porém. Trata-se de território do Brasil.
O
governo que aí está - não satisfeito em aviltar e depreciar nossos bens
públicos e depois presenteá-los a especuladores internacionais a troco de
verdadeiras bagatelas, como a Companhia Vale do Rio Doce vendida por US$ 3
bilhões - aproveitou a distração propocionada pela redes de televisão com a
exibição daqueles jogos de guerra ao vivo em Cabul, para, sorrateiramente,
entregar um pedaço de nosso território aos americanos do norte.
Situada
estrategicamente no melhor ponto para lançamento
de foguetes espaciais,
nossa Base
Aérea de Alcântara, no Maranhão, está
sendo vítima de um
acordo espúrio
assinado nos coxins
do presidente Bush. Trata-se de um contrato de aluguel, em que o Brasil receberá uma quantia anual do governo americano pelo uso daquela base aérea. Só que os americanos
poderão trazer seus
contâiners lacrados, sem qualquer tipo de fiscalização de nenhuma autoridade brasileira. Lá dentro, poderão vir
bombas, mísseis, armas
bacteriológicas e também cocaína, crack
e outras mazelas mais, quem sabe? A área “alugada” só
poderá ser usada pelos americanos – exclusivamente
–, sendo vedada a qualquer cidadão brasileiro. Não teremos acesso
aos seus lançamentos
de foguetes, pois
não haverá transferência
de tecnologia, mas eles poderão participar dos nossos
projetos e copiar
nossa tecnologia que, embora não
pareça, já é bastante
avançada. Perderemos nossa soberania
definitivamente. Será dado o primeiro passo para a
internacionalização da Amazônia com o agravante de atrair os inimigos figadais dos
ianques.
Existe
um fato macabro que aterroriza o mundo. Durante o período da guerra fria,
cientistas russos desenvolveram aproximadamente 50 bombas atômicas portáteis.
Cada uma cabe em uma maleta do tipo executivo. Quando acionadas, é impossível
desarmá-las e reverter seu comando. Boris Yeltsin, quando no governo, mandou
conferir os estoques. Conclusão: apuraram a falta de nada menos do que 28
bombas atômicas, desviadas graças à corrupção e suborno.
Osama
Bin Laden, inimigo público
nº 1 dos americanos, declarou recentemente que
possui armas atômicas e que os países que cooperarem com
os EUA serão considerados inimigos. Com o
acordo de Alcântara, poderemos estar assinando nossa
ficha de inscrição
no rol dos prováveis alvos de ataques terroristas. (Caso Osama esteja se referindo àquelas bombas desaparecidas do estoque
russo, o que é bem
provável, algumas, certamente, já estarão nos países inimigos, como
os Estados Unidos, Inglaterra e Israel.)
Resta-nos
apelar para o sentimento patriótico
dos políticos do Congresso para que eles impeçam este
governo entreguista de concluir
tão insano acordo.
A BANDALHEIRA
Após, aproximadamente, 15 anos
de mutismo, por
iniciativa do “Traia”, Suzana, João Luiz
e outros fundadores,
eis que
ressurgiu “A Bandalheira”, nossa alegre banda carnavalesca. A Bandalheira surgiu nos anos 1970. A ideia era criar uma banda para nós,
sãojoanenses, e da qual somente
participariam membros da nossa comunidade, fato impossível
durante o período
momesco.
A
reclamação da turma era que durante o carnaval, não se conhecia ninguém na
esquina do Kibon. A cidade era invadida por uma verdadeira turba de turistas,
daqueles indesejáveis: “Me dá um gole da tua cerveja!”, “Me dá um cigarro!”,
“Deixa eu tomar banho na tua casa!” era o que se
ouvia de mais comum. A cidade virava um verdadeiro mictório, exalando um cheiro
insuportável de amônia, e os cabeludos batendo nas latas vazias de cerveja,
gritando em uníssono: “Galo! Galo! Galo!”
Quem
visse aquele quarteirão do Kibon naquele período não reconheceria São João.
Na
Cantina do Ítalo, na “mesa zero”, entre os debates sobre os destinos da nação e
o que o Arthur Nogueira deveria beber, decidiram os comensais
(mais “bebensais” do que propriamente
comensais) que o carnaval
deveria ser antes
da invasão dos vândalos vindos de outras
bandas.
É
claro que estou generalizando, pois até hoje ainda é muito gratificante
reencontrar os são-joanenses ausentes, que aproveitam os longos feriados para
matar a saudades de sua terra, seus amigos e familiares.
Assim foi que, por
unanimidade, decidiu-se criar a banda
com o compromisso
de sair à rua
sempre uma semana
antes do carnaval
propriamente dito. Todos
contribuíram.
O sucesso
foi grande e decidiu-se criar
um fundo
para o ano seguinte. Todos
os meses vinham contribuições de
Brasília, Rio e Belo
Horizonte para
as mãos de nosso
austero tesoureiro Arthur. Sempre foi
uma banda, apesar do nome, de família.
No
primeiro ano em que a banda saiu, surpreendi-me ao ver minha filha Lia, com uns
cinco anos, sentada na capota do tradicional jipe do João Luiz, o Aranha, a
jogar confete nos foliões. Nunca houve um tumulto, uma briga ou uma desavença
nos anos em que a banda saiu às ruas.
Este ano não foi diferente, pelo menos neste aspecto. Foi emocionante
reencontrar velhos
companheiros encanecidos, alguns com seus filhos, outros
com netos.
As crianças, como
sempre, deram o toque
da ingenuidade. Dona Zininha e dona Guegué foram os destaques, comandando suas proles na folia. Momentos
de intensa alegria
e grande emoção.
A maioria dos músicos,
participante desde a fundação, estava muito
feliz. Recebi
um emocionado abraço
do meu bom
amigo Sílvio. Um
minuto de silêncio
para Manoel Arthur, Suzana, Arthur Nogueira, Pedro Marreco,
Bené, Salvador e Netinho. Não
estiveram presentes materialmente,
mas desfilaram conosco
em nossos
corações. Onde
estiverem, certamente, estão se
regozijando.
De
volta de seu tradicional percurso, sempre pequeno, a grande confraternização na
loja do Luigi, antiga Cantina Calabresa, lugar do seu nascedouro.
Obrigado,
Tráia, pela iniciativa e a todos os que colaboraram. Que o grande exemplo de
amizade e civilidade seja assimilado por todos.
BASTA
Vou
vendar meus olhos, tapar meus ouvidos, amordaçar-me e trancar meu coração.
Prefiro a lembrança dos versos do poeta Gonçalves Dias quando diz na Canção do
Exílio: “Minha terra tem palmeiras/Onde canta o sabiá/As aves que aqui
gorjeiam/Não gorjeiam como lá”, numa referência clara de amor à pátria, nossa
pátria.
Tempos
românticos. Amávamos nossa pátria e ufanávamo-nos de nosso país.
Têmporas
encanecidas eram sinal de austeridade e respeito, mas, lamentavelmente, não é o
que se vê no episódio do painel de votação do Senado. Um homem de cabeça
branca, um senador da República, diante da nação, de seus eleitores e de seus
pares, mentindo, omitindo, procrastinando descaradamente, faltando com a
hombridade e a dignidade inerentes ao cargo que ocupa.
Basta!
Não
quero mais ver nem ouvir esses “vendilhões do templo”. Aqui, nosso sabiá não
canta mais. Em seu lugar, somente corvos crocitam. Uma verdadeira pantomima
diante das câmaras da televisão, onde se dá um péssimo exemplo à juventude e
causa uma profunda decepção aos mais velhos.
Foi
necessário que os rombos da Sudam e da Sudene ultrapassassem os bilhões para
que se resolvesse liquidar aqueles órgãos, que nunca tiveram outra finalidade
que não a corrupção e o aumento do patrimônio dos políticos daquelas áreas.
Grandes
projetos não necessitam de intermediação de ninguém. Tenho a convicção de que a
Sudene nunca matou a sede de nenhum nordestino e a Sudam nunca ajudou a
desenvolver a região Norte. Se esses bilhões de reais desviados tivessem sido
aplicados em projetos sociais, de educação e saneamento, talvez as estatísticas
daquelas regiões fossem hoje mais alentadoras e positivas.
Basta!
Sou
admirador dos parnasianos e poetas líricos repletos de devaneios. Minha
presença na terra hoje é anacrônica. Este não é o Brasil que, de alguma forma,
ajudei a construir.
P.S. Vale a pena relembrar:
“Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!”
I-Juca-Pirama
Gonçalves Dias
BATIZADO
Nesta
vida efêmera, nem percebemos como o tempo passa
rápido. Assim é que,
de ouvinte das histórias
dos mais velhos,
hoje, assumindo o lugar
deles, sou eu quem conta as histórias.
Foi
numa certa semana de um certo ano, já não tão recente, que fui convidado pelo
meu dileto amigo Demônio — alcunha do Luiz Antônio Mauro — a comparecer ao
batizado de sua filha que seria na casa dele, no sábado seguinte. No horário
estipulado, lá cheguei com alguns companheiros, vindos de uma pelada no campo
do Siderúrgica, na Vila Santa Terezinha. Desta forma, nossos trajes não eram os
mais adequados para aquela cerimônia, mas, como se tratava da pessoa do
Demônio, um cidadão liberal e sem formalidades, adentramos ao recinto. Fomos
recebidos com muito carinho e distinção pelo casal e nos sentimos à vontade. Os
convidados formavam um grupo altamente eclético: eu, Sô Lobo, Asa Quebrada e
muitos outros – a memória agora me trai – misturados
a autoridades do Exército (o coronel comandante, o major Wagner); do Ministério
Público (o promotor dr. Salomon); e do Legislativo (os deputados José Luiz
Baccarini e Wainer Ávila).
Após
umas bebericagens de boas bebidas e excelentes tira-gostos, anunciaram o
momento para o qual estávamos reunidos ali. Finalmente, a criança seria
batizada na religião católica, fazendo parte do ritual o exorcismo do pecado
original e a unção com os santos óleos dos catecúmenos.
Naquele
momento, entra em cena
o ator principal, o que
procederia o batizado, ninguém mais
ninguém menos do que
nosso querido
e folclórico Padre
Lopes, pároco da cidade
de São Sebastião da Vitória.
Mulato de estatura
privilegiada, óculos de lentes grossas, gestos largos, voz postada e riso
fácil, era
uma pessoa carismática.
Fora dos santos
ofícios da igreja,
Padre Lopes era
um grande
apreciador de uma boa pinga e freqüentador
assíduo do Pedro Pasteleiro. Mas, então, naquele dia,
todos os convidados se postaram lado a lado na sala da
residência da família,
ali na rua
Matheus Salomé: o casal anfitrião com a
criança no colo
ao lado dos padrinhos,
dr. Salomon e esposa. Ele, promotor de justiça
do Fórum Carvalho
Mourão, figura
respeitável e de grande
simpatia que
lhe legara a admiração
e o carinho de todos.
Padre Lopes, de posse
de um bastão
de água benta, aproxima-se da criança e com sua voz de tenor, ao lançar a água sobre a criança, acho que
de caso pensado, bradou:
—
Afasta-te demônio!
O
Luiz Antônio, que assistia ao ato de forma constrita e circunspecta,
assustou-se e deu um pulo para trás, obedecendo à imperiosa ordem.
Ninguém
conteve o riso. Dr. Salomon dobrou-se em gargalhadas naquele momento de
descontração. Mas, logo em seguida, restabeleceu-se o clima do batizado e
Iocana foi ungida com os santos óleos e hoje é uma bela moça e boa filha.
Mais
uma vez parabéns. Parece que foi ontem.
EUNICE E BRAZ
Decorridos
cinqüenta anos desde
a união pelo sacramento do matrimônio
entre Eunice e Braz, perante Deus, estamos
aqui, reunidos em
família, para
regozijar e dar graças a Deus.
Desse
casamento nasceu uma frondosa árvore, de boa cepa e saudáveis frutos: Vicente,
Sônia Maria, Maria Eunice, Francisco Carlos, Marco Antônio, Elaine Valéria e
Júlio César.
Criar
essa grande prole não foi sem sacrifícios. De origem humilde, como os doze
preferidos de Cristo, lutaram com grande denodo e dedicação.
Outros
tempos. Grandes dificuldades e desconfortos. Quantas noites, Braz, no seu
mister de mecânico, com as mãos calejadas, esmerilhava válvulas de motores,
rompendo a madrugada, adiantando o serviço do dia seguinte, enquanto Eunice
debruçava-se em sua faina diária nos serviços domésticos, dando o melhor de si
para que nada faltasse aos seus pequenos rebentos. Como toda união, não foram
raros os momentos de divergência. O comandante de um navio não escolhe somente
os dias de calmaria para navegar. Ele tem que levar seu barco são e salvo ao
porto seguinte e, desta forma, navegará também enfrentando as grandes
tormentas. Assim foi a trajetória deste casal que não poupou sacrifícios para
alcançar seu objetivo, criar e educar os filhos dentro da fé cristã.
Gostaríamos
que estivessem aqui presentes para comungar conosco esta felicidade nossos
entes queridos que já nos deixaram, mas temos certeza de que suas almas
descansam em paz junto dos justos e bem-aventurados.
Finalmente, em nome de todos os
filhos, pedimos a Deus, com sua infinita misericórdia, proteção para nossos
pais e agradecemos o privilégio de termos
nascido seus filhos.
Obrigado.
BRAZ RIZZUTI
Filho de pais
italianos, oriundos de Vibonati, em 1926, nasceu Braz Pompeu Bartolomeu Rizzuti. Trouxe
consigo, na sua genética
de imigrante, a inteligência e a habilidade com as mãos,
tornando-se um homem
talentoso. Na sua
saga, desde
pequeno, conforme
contava com graça
e orgulho, catava esterco
nos pastos,
vendendo-os a fim de poder
assistir aos filmes
passados nas salas
de cinema. Outras vezes, vendia
pirulitos, tornando o prazer do cinema
ainda maior,
pela maneira
que conquistava seu
lugar na platéia.
Logo se percebia que
aquele seria um
vencedor. Não sem
razão.
Um dia arranjou
emprego na fábrica
do Seu João Lombardi a quem gostava de exaltar a simplicidade, pois tinha prazer em dar carona
nos seus
carrões, aos empregados que, de tamanco, muitas vezes, constrangidos, sentavam-se ao lado do patrão.
Braz não se fazia de rogado, pelo contrário,
sentia prazer de conversar
com Seu
João. Certo dia pediu férias ao Seu
Juca, naquela época ainda
rapaz, mas
já administrador
da fábrica. Percebendo que o Braz tinha
mais desenvoltura que os outros, o Juca, com sua
visão de empresário,
disse:
—
Vou fazer teu
acerto todo,
pois tenho certeza
que tu
não voltarás.
Assim foi. Montou uma casa
de bicicleta, mas
a sociedade não
deu certo.
Firmou-se no que
de melhor sabia fazer: mecânico
de automóvel.
Trabalhava
até alta
madrugada para
criar uma prole
de sete filhos.
Alcançou seu objetivo: educar
todos. Bom
pai, não
deixava de fazer umas pequenas
caçadas, quando levava sua criançada toda junto, com
isso mantendo a união
de sua família
da qual foi o esteio
mestre. De alguns
anos para cá, aposentou-se e mudou-se para
a represa de Camargos, fazendo ali um imenso círculo
de amizades. Muito
querido, um verdadeiro diplomata, servia como
árbitro de pequenos
conflitos entre
amigos e vizinhos,
atuando como um
conciliador, um juiz
de paz.
Deixou
uma imensa lacuna.
Sua falta
não será superada. Estou muito triste.
Ficou a lembrança da sua alegria contagiante. Gostava muito
de cantar, apesar da voz rouca
massacrada pelo uso
do cigarro. Para
fazer uso de estrofes de músicas
que ele
admirava, no fundo do meu coração
tenho me lembrado:
“Velho,
meu querido
velho/ Seus olhos são
tão serenos/ Sua
figura é cansada/ Pela
idade foi vencido”... ou “Naquela mesa tá faltando ele/ E a saudade
dele tá doendo em mim./ Eu
não sabia que
doía tanto,/ uma mesa no canto, uma sala, um
jardim”...
Adeus,
amigo.
TEMPO DE CHUVA
As
chuvas chegaram trazendo consigo a esperança. Esperança de fartura, de encher
nossos mananciais, de respirarmos melhor.
No
meu pedacinho de terra, onde moro, a renovação da vida é um espetáculo à parte.
No período de seca, as plantas hibernam e ficam naquele estado letárgico,
sonolentas e tristes, como se agonizassem. Perdem o viço, as folhas caem,
despem-se, mostrando, acabrunhadas, seu interior. O brejo fica mudo. Somente os
passarinhos cantam, não sei se como uma súplica ou lamento por falta do
precioso líquido que vem do céu. Nossa Serra de São José de Tiradentes
apresenta um aspecto sisudo, amarronzado, suas árvores retorcidas não
sobressaem ante a coloração das pedras. Sua silhueta em contraste com o céu
límpido do inverno nos dá uma sensação melancólica de aridez. Olho para ela,
engulo seco. A impressão que se tem é a de que ali não há vida. Felizmente,
este ano não houve nenhuma queimada, senão o espetáculo seria ainda mais
horroroso. Às vezes, essas queimadas não são provocadas pelas mãos devastadoras
do homem, e sim, pelo sol causticante que, refletido nas pedras, provoca a
autocombustão da mata seca.
Agora
chegaram as chuvas e com elas, o espetáculo da renovação. É deslumbrante.
A sensação é que as plantas
dançam e sorriem, num ritual de
agradecimento à mãe natureza.
Os melros, belos
pássaros que
voam em bando,
manifestam-se de forma escandalosa,
numa verdadeira algazarra. Sanhaços interrompem seus
belos trinados
para se banquetearem num fruto maduro do mamoeiro.
As cambaxirras catam pequenos insetos
entre as telhas
da varanda e não
se assustam com a minha
presença. Parece até
que os pequenos
pássaros perceberam que
com a nova
educação preservacionista o homem está deixando de ser
o famigerado animal
que tudo
destrói. Um dia
ainda viveremos em
sintonia.
Os pardais, indesejáveis
para alguns,
aprendi a admirar. Sua convivência
com o homem
é muito harmoniosa.
Habitam os beirais das casas,
protegendo-se contra os predadores. Criaturinhas de muita
personalidade. Não
gostam de viver dentro
da mata, pelo contrário, são tremendamente urbanos
e amantes da liberdade.
Se presos em
uma gaiola, fatalmente
estarão mortos na manhã
seguinte. O sabiá,
que não
precisa de satélites
para prever a chegada das chuvas,
canta e dança,
batendo as asas num galho ainda seco de
uma árvore de muxoxo,
que eu
mesmo plantei e vi crescer.
Hoje, adulta, solta todas as folhas para dar
lugar a uma bela
florada vermelha. É um
ornamento na entrada
de minha modesta morada,
assim como as quaresmeiras e os ipês. A azaléia
branca não tem lugar
para folhas, é
só flores e botões.
O pé de romã também
está viçoso. O jasmim
do cabo e o manacá
ainda aguardam mais
chuvas para nos premiar
com suas
flores perfumadas. As árvores se preparam, de roupagem
nova, para receber a primavera,
a soberana das estações.
Renasce a vida no outrora
silencioso e mudo
brejo. Sapos, rãs,
jias e todos
os tipos de batráquios,
num coral desafinado, entoam todo tipo de coaxar, iniciam sua festa, acompanhada pelo canto agudo do quero-quero, um
pássaro que não
sei a que horas dorme, pois
tanto canta
à noite como
durante o dia.
Saracuras, curiangos e corujas também
participam. Quanta vida naquele brejo.
A
serra de São
José de Tiradentes, aos poucos, vai perdendo sua austera
roupagem marrom para se transformar num esfuziante vergel, provocando uma imensa
inspiração para o amor.
Deitado na varanda,
em minha
rede que
trouxe do Norte, fico horas inteiras a admirar esse espetáculo gratuito à
minha volta.
Pego-me com o pensamento
longe, nas mais
belas e agradáveis fantasias.
Felizmente, ainda tive tempo para apreciar
amor e vida nas coisas
mais simples. Não
tenho cofre, ouro,
dólares, nem ao menos conta em banco, mas
tenho o tesouro dos meus
olhos e o privilégio
de me embevecer
com o que
a natureza me
dá.
CONTRASTES
Após
anos de luta, ora galgando degraus, ora descendo-os, buscando sempre mais
vitórias e, principalmente, ser feliz, estou chegando ao meu ocaso de maneira
melancólica, cheio de dúvidas e de perguntas, talvez mais até do que quando
iniciei minha jornada.
Foram
momentos de profunda tristeza aqueles, quando me despedi de meus companheiros
de regata. Eles voltavam para minha terra natal e eu ficava no Rio de Janeiro,
naquela época, uma terra estranha cheia de gente estranha.
Dezenove
anos, recém saído da adolescência, cheio de temores, abdiquei do regaço de
minha mãe, da convivência com meu pai e meus quatro irmãos para tentar ganhar a
vida, sozinho.
Um
caminho muito difícil aquele que escolhi para trilhar. Inóspito, muitas vezes
asqueroso. Resistindo ao assédio de homossexuais e das drogas, das mulheres
infelizes, coroas mal-amadas com contas bancárias recheadas, compradoras de
amores. Quem compra amor colhe tristeza e quem dá amor colhe carinho.
Felizmente, não me prostitui. Resisti às tentações do vício. Tive disciplina.
Nos empregos que trabalhei nunca perdi a hora. Meus alicerces foram calcados em
sólida rocha, composta por uma família simples e bem estruturada, a quem devo
meu berço e educação.
Falar de si próprio
é perigoso. A vaidade, inerente
ao ser humano, induz enaltecer nossas virtudes e omitir nossas fraquezas, erros
e defeitos. Procuro me vigiar para não cometer esse engano. Pecados,
erros e defeitos,
possuo-os em demasia,
porém o maior
deles é amar demais. Amar intensamente
a vida, a mesa
farta, as mulheres
e os amigos. Após
sessenta anos, pode-se imaginar
quantas derrotas, desilusões e
desenganos vivi. Não foram poucos. Espero que
não cessem. Mesmo
assim é viver.
A pergunta é: valeu a pena?
O contraste que
apaga todo sacrifício está na alegria de ter gerado meus filhos, Lia, Nara e
Pedro. Por eles
faria tudo outra
vez, mesmo
que fosse penalizado com mais espinho. O amor
deles compensa qualquer outra falta de carinho ou de amor.
Envelhecemos.
Embora ainda
tenhamos nossas fantasias, os afagos e carinhos
vão sendo substituídos pela indiferença e os
galanteios, por insultos
e rabugices. Em uma de suas célebres
canções, o poeta Lupicínio Rodrigues disse: “Esses moços, pobres moços...”
e eu diria: “pobres velhos!...” O desprezo e a indiferença tornam-os
verdadeiros e incômodos trastes. Um dia, certamente
tudo cessará. Aqueles
que deixam grandes
heranças serão
lembrados de forma efêmera
com farras
perdulárias e extravagantes. Aos humildes
e fiéis, restará o pranto emocional e a eterna
lembrança de quem
com eles
dividiu a miséria. Parece que a necessidade
consolida o caráter, enquanto a riqueza em excesso leva à leviandade. São
contrastes que
a vida nos
reserva.
P.S.: Saudades
do sempre elegante
e solícito dr. Cid Rangel que nos deixa. Tive a honra
e o privilégio de gozar
da sua amizade.
À dona Ruth e filhos, meus sentimentos.
Em nossa
memória ficarão lições
de caráter, profissionalismo
e simpatia.
OUTRA COPA
Sobrevivi
a mais uma Copa
do Mundo de Futebol.
Minhas lembranças
me levam de volta
ao ano de 1950. Menino,
ainda com
meus nove
anos de idade,
passava férias em
nossa casa
em Mosqueiro, uma ilha
bucólica na foz
do Rio Amazonas,
no Pará. Sensibilizava-me com a angústia de meu pai com o ouvido
colado em um
rádio de válvulas,
atento à voz
intermitente do locutor,
se não me
engano, Oduwaldo Cosi, que transmitia, através
das ondas curtas da Rádio
Nacional do Rio
de Janeiro, a partida
decisiva entre Brasil e Uruguai, a final da Copa
de 1950. Afligia-me a angústia de meu pai, porém ainda não tinha sido
contagiado pela febre
verde e amarela
que contamina os brasileiros
de quatro em
quatro anos.
Naquele
lugar paradisíaco,
passávamos as férias escolares todos
os anos. Assim
nos tornamos amigos
de todos aqueles
pescadores que
enfrentavam a baía feroz,
de águas barrentas, na luta diária pela sobrevivência,
indo em busca
dos peixes para
seu sustento.
Muitos não voltavam, sendo tragados junto com suas frágeis embarcações
por aquelas impiedosas águas. Na minha
inocência de criança, aqueles homens que
venciam o mar eram como gigantes imbatíveis.
Naquele
dia saí à rua e encontrei um desses intrépidos e destemidos super-heróis a
chorar. Não acreditei na cena e, timidamente, perguntei-lhe:
—
O que aconteceu, Batelão?
Respondeu-me,
inconsolável:
—
O Brasil perdeu!
Esse foi meu primeiro encontro com a Seleção brasileira.
Quis saber que
coisa tão grandiosa poderia
comover e atingir de maneira tão grave aquela musculosa criatura.
Daquele momento em
diante me
apaixonei pela Seleção, inebriado por esse clima que
arrebata o nosso país
de ponta a ponta
a cada quatro anos.
Em
1954, outra decepção, porém, em 1958, já com 17
anos, minha explosão de alegria foi tanta, que minha foto saiu estampada na
primeira página do principal jornal de Belém.
Em
1962, já no Rio, comemorei com minha turma, aos goles dos primeiros chopes, a
conquista do nosso bi-campeonato.
Em 1966, nova decepção, porém, em 1970, no México, lavamos nossa alma com Garrincha, Pelé e companhia,
trazendo a Taça Jules Rimet definitivamente
para o Brasil (muito embora
eu mesmo,
tenha vaiado a Seleção, em sua despedida, num jogo
treino no Maracanã.
Que enorme
irresponsabilidade! Vaiar Pelé, Garrincha, Rivelino, Gerson, Tostão e os outros.
Coisas de torcedor!)
Em 1994, novamente
conquistávamos o caneco pela quarta vez graças a, entre
outros, Romário, Bebeto, Branco e
Baggio.
Desta
feita, 2002, lá para as bandas do Oriente, nas terras de nossos antípodas
sul-coreanos e japoneses, a história se repetiu. Nossa Seleção partiu
desacreditada. O horário dos jogos deixou todo o Brasil bocejando e de
olheiras. Desacreditada é uma coisa, porém deixar de torcer, isso nunca!
A
cada jogo
um sofrimento. Parece que para o Brasil tudo é mais difícil. Será que
estava escrito nas estrelas,
que em
algumas partidas teríamos que sair em desvantagem no marcador para depois virar o jogo? Será? O sentimento
patriótico e a valorização dos símbolos da pátria
como a bandeira
e o hino nos deixam emocionados. Uma coisa é o Brasil, outra
coisa é Brasília. Chorei lágrimas
de esguicho! Obrigado, Luiz Felipe, por ter escolhido pessoas de talento
e de boa formação moral,
que transformaram um
grupo em
uma célula só.
Caso contrário,
bastaria um só para
desunir o grupo.
Uma laranja podre
em um
cesto contamina o resto.
Diria Nelson Rodrigues: “Foram os deuses” que
escalaram Kleberson para eliminar
os problemas da nossa
defesa. E o Oliver Kahan ganhou o troféu de melhor
da Copa. Mesmo
“batendo roupa” à frente
do Ronaldo Nazário, que resultou no primeiro gol do Brasil contra a Alemanha. Preterir
o Rivaldo, Ronaldo, Ronaldinho, Denílson? Todos
atacantes de habilidade
incontestável para premiar um goleiro? Um estranho no jogo? Todos
jogam com pés
e cabeças, somente ele
joga com
as mãos. Goleiro por
goleiro o nosso
Marcos fez muito
mais bonito.
Não sei qual
foi o critério para
a escolha, mas
que foi injusto,
foi. Faltou coragem. Não
liga Rivaldo, teus
súditos brasileiros,
uma unanimidade, te elegem como o Melhor do Mundo.
P.S.: Hoje não falarei de tristezas. Estou
muito feliz com nossos atletas. Se critiquei algum ou o Luiz Felipe, me
penitencio e lhes reverencio com tapete vermelho. Eles merecem.
REFERENDUM
Tenho
assistido sem o menor
interesse e convicção
os argumentos dos protagonistas
das propagandas pró
e contra o referendo do desarmamento. Os nossos
legisladores do Congresso
Nacional, acostumados a promover
farra com
o dinheiro público,
fugindo de suas responsabilidades,
jogaram para cima
da população a decisão sobre a permissão
ou proibição do comércio de armas de fogo
e munição no território
nacional.
Aqueles
privilegiados senhores que ali estão como “nossos representantes” e que
ganham muito mais
do que merecem, entre
outras coisas auxílio
moradia, auxílio
paletó e 14º salário,
não tiveram a dignidade
de chamar para si a responsabilidade
de decidir entre o sim e o não, gerando,
desta forma, uma despesa adicional para os cofres públicos
de mais de 600 milhões
de reais com
a tal votação.
Dinheiro esse que
poderia ser
aplicado em outra
premência.
Quanto
à discussão de fabricar ou não fabricar armas no
Brasil, sou inteiramente favorável
que se continue como
está. Esses senhores a que me referi anteriormente agem por
impulsos criando leis a toda hora
açodadamente. A legislação que aí está é pertinente. Você já
experimentou comprar uma arma?
Pois então tente. Verá que a responsabilidade
assumida pelo cidadão
às vezes não
compensa. Aí o poder de decidir
é seu. Você é
quem sabe se terá condições
emocionais de possuir
uma arma.
Preste
atenção. Você pode estar
inclinado a fechar mais
de 1.300 lojas de vendas
de armas e munições.
Sem contar as
fábricas que
abrigam centenas de operários.
Quantos chefes de famílias
você vai colocar na rua? Quantas crianças
vão ficar sem ter o que comer? Aí sim, você estará cometendo um crime, pois aqueles postos de trabalhos
brasileiros migrarão para outros
países, como por
exemplo: Paraguai e Estados
Unidos.
Se
o Brasil for proibir a fabricação e o comércio de tudo
que mata,
voltaremos à condição de país do quarto mundo. A quem interessa isso?
Cigarro mata.
Fechem as fábricas. Automóvel
mata. Fechem as fábricas.
Cerveja e todo
tipo de bebida
alcoólica matam. Fechem as fábricas. Agrotóxicos
matam. Fechem as fábricas. Mísseis matam
e são fabricados aqui
no Brasil exclusivamente para
matar. Fechem as fábricas.
Aviões também
matam. Fechem a Embraer. Eletricidade mata. Fechem as usinas.
Isso tudo
é uma grande farsa.
A verdade é que
esse comércio
milionário é muito disputado e nossos patrões
do Hemisfério Norte não admitem concorrência. No caso
de proibição, talvez
só pudéssemos importar
armas via Mercosul. Não
duvido nada, pois
nossos representantes no Congresso são capazes de tudo.
Ninguém tem coragem
de admitir que
vivemos numa guerra civil.
Os bandidos fazem o que
querem. Não se pode mais
ir ao Rio de Janeiro em determinada hora
da madrugada que
se corre o risco de ser
interceptado por bandidos,
agindo à solta de maneira
descarada, cobrando pedágio
na Linha Vermelha.
Tenho
um conhecido
que vai à sua casa
na Itália de 15 em 15 dias. Ele pega o avião em Roma (é Roma? Estava Itália de novo, achei melhor usar o
nome da cidade, mas fiquei sem saber, chutei Roma) e, em vez de ir
direto para o Rio, vai a São Paulo e de lá pega a ponte
aérea, que desce no aeroporto Santos Dumont. Só para não passar na Linha Vermelha, caminho de quem desembarca no aeroporto do Galeão.
Mata-se
mais aqui
do que no Iraque. E o que é pior: os bandidos continuarão a ser bandidos e o cidadão
de bem que insistir em possuir uma arma de fogo em casa passará a ser proscrito, sujeito às penas da lei. Não estou falando somente
do cidadão comum,
os oficiais das forças
armadas também
estarão sujeitos à lei.
A
Austrália está lá com
um enorme
pepino nas mãos. Promoveu o desarmamento e a criminalidade
aumentou em 32%. Imaginem isso num país em
que armas recolhidas voltam às mãos dos bandidos
via policiais
corruptos e o dinheiro
apreendido pela
Polícia Federal desaparece misteriosamente de dentro
de sua sede.
É demais.
P.S.: E os nossos
relógios digitais? Até
hoje não
foram restabelecidos. Que vergonha, que descaso com São
João del-Rei
CRÉDITO
Ouço
lamúrias e tenho visto pessoas desesperadas com dívidas contraídas e impossibilidade
de quitá-las.
Entre
as pessoas entrevistadas a respeito do que farão com o 13º salário, há quase
uma unanimidade: o 13º salário será usado para liquidar ou amortizar dívidas.
O
cidadão comum precisa estar atento às armadilhas preparadas pelos avarentos
banqueiros que não têm o menor escrúpulo em transformar honrados cidadãos em
desesperados fantasmas a correr de Herodes a Pilatos em busca de solução para as
dívidas. Uma vez emaranhado nessa teia é impossível desvencilhar-se.
Não
compreendo. A taxa de juros anual, praticada pelo governo, está em torno de 17%
ao ano. Se há um aumento nessa taxa, nem que seja de 0,25% ao ano, a grita é
geral. O mundo desaba. Essa decisão gera desemprego, desacelera a economia e a
Fiesp se manifesta de forma ostensiva trazendo em seu bojo resquícios da
política antiga de reserva de mercado, quando a indústria era protegida e
ninguém falava em produtividade.
Enquanto
isso, descaradamente, as administradoras de cartões de crédito e bancos cobram
até 12% de juros ao mês. As pessoas de classe média, alvo dos marqueteiros,
vendedores de ilusões, engolem o anzol com o engodo de um cartão de plástico
reluzente, verdadeira jóia da engenharia visual, ou talões de cheque que
sugerem prestígio. Essas mercadorias são exclusividade de pessoas abastadas,
inatingíveis por taxas de juros altas e que administram com maestria e
parcimônia os saldos de contratos. Esses são os principais causadores de
verdadeiras desgraças para o cidadão de bem que não foi preparado para conviver
com a inadimplência e a desonestidade.
Os reflexos são lamentáveis no
seio da família, desestabilizando uniões duradouras e, em alguns casos, de
forma definitiva.
É
ilusão querer galgar mais um degrau na escala social, usando desses artifícios.
Deveríamos nos conscientizar de que o objeto de qualquer transação comercial é,
de um lado, mercadoria ou prestação de serviços; do outro, moeda, isto é,
dinheiro vivo.
A
receita para uma vida mais saudável e menos angustiante, seria picar o cartão
de crédito, rasgar o talão de cheques e jogar no lixo. Banco? Só para receber
salário, aposentadoria ou pagar algum compromisso. A facilidade de crédito, na
maioria das vezes, leva ao fracasso. Ninguém suporta taxa de juros de 12% ao
mês, enquanto a inflação gira a menos de 1%. Significa dizer que o cidadão está
pagando juros 12 vezes acima da inflação, o que é um verdadeiro absurdo. Não
existe negócio no mundo, por mais lucrativo que seja, que resista a esse tipo
de extorsão.
É
o que eu penso.
P.S.: E os relógios
digitais das nossas praças?
Até hoje!
Onde estarão? Será
que serão
lembrados na hora de aplicar
a Lei de Responsabilidade
Fiscal? (não entendi a relação da LRF...)
DESILUSÃO
Cheguei
ao final de mais um ano sem esperanças de conseguir realizar o principal
objetivo que persegui anos a fio obstinadamente: entregar aos meus filhos um
país mais justo, menos corrupto, menos violento, com mais empregos, menos
miséria, mais sorrisos e menos lágrimas. Entretanto, o que se vê? Chefes de
famílias serem executados impunemente. Agora
os bandidos não contentes de chacinarem pessoas pobres, tripudiam também das
autoridades matando prefeitos, promotores, vereadores. Dá a impressão de que
quem não participa do grande esquema de corrupção que envolve a administração
pública tem que ser eliminado.
Não
temos a mínima segurança, e quem mais sofre são os pobres. Sem dinheiro para
levantar muros, guaritas de segurança, instalar cercas elétricas e câmeras de
circuito interno para proteger o pouco de têm, são eles o alvo mais freqüente do
banditismo.
Estou cheio de assistir a passeatas
contra a violência. Essas passeatas terão que ser dirigidas, não contra a
violência, mas sim contra os bandidos. Chega de blá-blá-blá. Estamos numa
guerra.
Em vez de desarmar as pessoas,
deveríamos armá-las. Hoje quem tem uma arma em casa para se defender é um
proscrito cidadão à margem da lei. Enquanto isso os bandidos exibem seu arsenal
de armas muito mais sofisticado que o da própria polícia. Até logotipos de
organizações criminosas são instalados nos morros acintosamente, iluminados a
gás néon. Onde chegamos?
Já
que as instituições criadas para fazer a segurança da população, prender,
julgar e punir, estão desmoralizadas e falidas, façamos justiça com nossas
próprias mãos. A Polícia Federal está com
boa parte das viaturas paradas por falta de combustível, ao contrário do helicóptero
que resgatou um bandido de dentro do pátio de uma penitenciária de segurança
máxima sem ser importunado. Vamos esperar por quem?
É necessário que nos organizemos
da mesma forma ou melhor que os criminosos. Ou será que eles são mais
competentes que nós? “Olho por olho, dente por dente.” Da forma como as coisas
estão indo, as ruas serão ocupadas pelos bandidos, e os cidadãos de bem, livres
e de bons costumes terão que ficar aquartelados em suas casas. Para defendê-la,
de acordo com a lei, terão que usar porretes, tacapes e bodoques contra os
potentes AR15 dos bandidos. Chega de ver nossos filhos serem fuzilados
barbaramente, nossas filhas e esposas serem estupradas e os idosos indefesos,
assaltados.
Essa
mídia que aí está, a tal formadora de opinião, deu muito mais ênfase à morte do
bandido Fernando Dutra Pinto (eu até sei o nome dele todo) do que à de uma
senhora empresária (cujo nome não sei) cruelmente assassinada em frente à sua
residência em São Paulo. Está
tudo errado. Há havendo uma mudança de comportamento das pessoas. O sagrado
direito de ir e vir está sendo impedido pelos bandidos.
Esse
governo bêbado que aí está, inebriado pelo vírus de uma vaidade deletéria, que
não sabe tomar conta nem dos estoques estratégicos de água para gerar energia
elétrica, poderá oferecer um mínimo de segurança à população? Acho que não,
embora nosso representante máximo, com seu séquito perdulário do dinheiro
público, em viagem à França, servia de galhofa perante aquele parlamento com um
despropositado “Vive la France!”.
É
uma falácia demagógica proibir venda de armas. Só servirá para fomentar um
mercado negro de produtos importados e promover o desemprego dos nossos
operários. Se estão preocupados com as mortes produzidas por armas de fogo,
como então não se preocupam com a manutenção das estradas de rodagem que se
encontram em estado caótico, colocando-nos como campeões mundiais de mortes em
acidentes de trânsito? Por outro lado, alguns órgãos se ufanam de raros índices
positivos do progresso do nosso país. “Somos a oitava economia do mundo.”
Ótimo! “Maior exportador de soja do mundo” – para engordar porcos no exterior,
mas nunca vi um grão de soja na mesa de um trabalhador. “O índice de
mortalidade infantil diminuiu drasticamente”. Ótimo! Mas que futuro esperam
essas crianças que sobreviveram? Isso não é sadismo? Será que não seria melhor
que elas tivessem seus sofrimentos abreviados, morrendo prematuramente, já que
a incidência de óbitos ocorre na camada mais miserável da sociedade? Futuro?
Não existe. Se não tiverem a sorte de se transformar em um ídolo do futebol,
certamente engrossarão a imensa massa de excluídos que nosso país abriga.
Li na revista Tudo que Eu Quero,
edição nº. 47, de 21/12/01, um artigo que, pelo seu conteúdo, transcrevo uma
parte:
Os contrastes que levam ao crime
As estatísticas são geralmente
frias e difíceis de entender para a maioria de nós, que vivemos uma vida
privilegiada nos países desenvolvidos. Considere, por exemplo, o fato de que
356 indivíduos mais ricos do mundo hoje desfrutam de uma riqueza coletiva
superior ao rendimento anual de 40% da humanidade. Enquanto nós falamos
entusiasticamente de globalização, comércio eletrônico e revolução das
telecomunicações, 60% das pessoas do mundo não fizeram nem uma única ligação telefônica
em suas vidas e um terço não tem sequer eletricidade. Nesta era de mais e mais
relacionamentos econômicos globais, cerca de 1 bilhão de pessoas continuam
desempregadas ou subempregadas, 850 milhões estão subnutridas e outras centenas
de milhões não dispõem de água potável ou de combustível suficiente para
aquecer suas casas no inverno. Metade da população mundial está excluída da
economia formal e é forçada a trabalhar na economia informal de trocas e
subsistência. Outros acabam caindo no mercado negro ou no crime organizado.
Como se não bastasse, há também a
cruel agressão da globalização à diversidade e à identidade cultural. Segmentos
inteiros da humanidade se ressentem ao ver a história peculiar e os valores de
seu povo serem atropelados pelas empresas multinacionais. Eles sofrem os
efeitos da perda de coerência e significado de um mundo cada vez mais dominado
pela produção cultural, pelas marcas, pelos logotipos e pelo estilo de vida
dessas corporações. Temem, com razão, a imposição desse estilo de vida e de um
tipo de homogeneização global do pensamento e das atividades. E têm medo de
que, nesse novo mundo, a sua própria essência esteja sendo irrecuperavelmente
perdida em nome do comércio e do lucro corporativo.
Jeremy Rifkin
presidente da Fundação de Tendências
Econômicas, de Washington, EUA, e autor do livro A Era do Acesso (Makron
Books).
P.S.: Meu
adeus, desta vez,
vai para Tio Oswaldo, o Oswaldo Magaldi, bom
amigo, coração
generoso. Exagerado em
tudo, principalmente
no prazer de gozar a vida. Caçador por
excelência. As aventuras
de Indiana Jones perto
das dele eram apenas cantilenas de ninar. Depois que
proibiram as caçadas, seu espaço ficou reduzido, ele
se sentiu como um
pássaro na gaiola.
Sua alegria
deu lugar à melancolia.
Descansa em paz, amigo
Oswaldo. Tuas lembranças permanecerão para sempre no meu coração.
CREPÚSCULO
Nasci
cercado de carinho
e fazendo a alegria da minha casa, de meu pai, de minha mãe e de meus irmãos.
Fui o quinto e último
de uma prole masculina.
Do dia não
me recordo, mas
posso desenhar, por memória de retina, a cena, reproduzindo o sorriso da minha
mãe e a felicidade
do meu pai,
exultantes por
mais um
filho sadio.
Vivi cercado de carinho
e, por isso
mesmo, vivia uma felicidade
que parecia infinita.
“Não sei por
que a gente
cresce”, já disse o poeta
Ataulfo Alves em sua
linda canção
Saudades de Miraí.
Assim foi, até
que um
dia, ela,
a felicidade, começou a me abandonar. Aos 19 anos vim para o Rio, deixando para trás as lágrimas
de minha mãe
e o silêncio conivente do meu pai, que achava correta
minha atitude,
pois na minha
pequena Belém daquela época,
as oportunidades de emprego
eram limitadas.
Deslumbrado com
o Rio de Janeiro,
inexperiente, tendo a meu favor a juventude
e o ímpeto da mocidade,
não percebi que
deixava para trás
uma das melhores coisas
da vida, o convívio
familiar.
Tornei-me um
nômade, boêmio,
emotivo, sem
naturalidade e identidade.
Nossas raízes é que consolidam a solidez
e a paz interior.
Numa
Quinta-feira Santa,
recebi a notícia que
temia por todos
os anos da minha
vida. Minha
mãe agonizava e chamava por mim. Não tive tempo
de encontrá-la com vida,
por isso
carrego esse remorso
por todo
o resto dos meus
dias. Não
pude satisfazer seu
último pedido.
A
felicidade foi-se esvaindo, como a areia de uma ampulheta que marca a marcha
inexorável do tempo, até que um dia, ao chegar em casa, recebi a notícia de que
meu pai me chamava para se despedir, pois estava morrendo.
Não titubeei. Temendo o mesmo desfecho
de minha mãe,
entrei no carro com o Neném
motorista e fizemos aquele
percurso em 29 horas.
Recordo a imagem alegre
de meu pai
quando me
viu.
Sentou-se e disse:
—
Que bom, meu filho, que você veio!
Pediu
que lhe tirassem a barba, que lhe dessem um banho e lhe vestissem um pijama
limpo.
Deitou-se e se despediu:
—
Adeus, Pedro!
Virou-se
de lado e morreu.
Estava
eu ali
diante da morte,
assistindo-a de perto, e, o que era pior,
testemunhando-a levar uma pessoa que amo e respeito.
Um verdadeiro
homem.
Caráter inflexível.
Poderia ter
sido milionário, aceitando a proposta
de contrabandistas que
comercializavam produtos ilegais vindos das Guianas, desde
relógios a automóveis
americanos.
Preferiu
a vida honrada daqueles que abdicam do dinheiro, pela singeleza
de uma vida calcada na dignidade.
Estava ele
ali, imóvel,
numa modesta cama patente
à minha frente.
Minhas
reflexões tomaram conta
de minha cabeça
num turbilhão de recordações e interrogações. Será que a morte é o prêmio para quem
lutou a vida inteira
com integridade
e lealdade? De repente, aquela imagem de
felicidade que
povoava minha cabeça dissipou-se.
Fiquei órfão.
Hoje,
aquela felicidade do convívio familiar foi substituída pela
alegria que
meus filhos
Lia, Nara e Pedro me
presenteiam e, obedecendo à ordem natural da vida,
ocupei o lugar de pai.
Como tal,
não tenho sido o melhor
em gestos
e atitudes, porém,
os amo imensamente.
Minha
expectativa de vida,
chegando ao fim. Meus
olhos já
não vêem as maravilhas
da natureza e se atêm apenas às dores
do mundo, melancolicamente. As esperanças ficaram para trás, restaram apenas
desenganos, e minhas lembranças de outros
tempos me entristecem.
As
árvores frondosas já
não me
despertam interesse, nem tampouco suas sombras. Admiro apenas
aquelas árvores desgalhadas, sem folhas e sem viço. Um sintoma do meu crepúsculo,
do meu ocaso.
INDEPENDENCE
DAY
12
de setembro de 2001. O dia que eu não gostaria de ter vivenciado. A ficção do
cinema tornou-se realidade para a nação americana, vítima do mais brutal e
hediondo ataque de algum famigerado grupo terrorista. Não teria significado
algum se aquelas duas torres imensas, desafio da engenharia moderna e cartão
postal de Nova York, tivessem simplesmente desabado. Seria apenas uma perda
material e certamente logo estariam de pé tal o poder econômico daquela nação.
Mas não. O que pranteamos, eu e o mundo civilizado, são as vidas ceifadas e a
forma cruel com que foram executadas. Dentro dos aviões que se chocaram contra
as torres, pessoas indefesas ligaram pelos seus aparelhos de telefonia celular,
despedindo-se de suas famílias. Que desespero!
Hoje
é o dia seguinte. Não sabemos ainda quantos morreram. O que me deixa perplexo é
que esses fanáticos suicidas cometem essas atrocidades todas em nome de Deus,
Alá ou outro nome deus qualquer. Será que o deus desses bastardos é o mesmo das
pessoas que vejo contritas, fazendo suas orações nas igrejas, acompanhando os
ofícios da Semana Santa, comungando durante a missa? Não, não creio. Acho que
os super-heróis da ficção americana não estavam de plantão ontem. O gigante
americano foi atingido no seu âmago. Não sei quais serão os desdobramentos.
A
intolerância, a miséria,
a legião de excluídos e a perversa concentração
de riqueza nas mãos de poucos está
levando o mundo ao caos.
Uma verdadeira Torre de Babel. Ninguém mais se entende. Pobres
dos muçulmanos que
moram lá! Uma caça às bruxas deverá começar. O beligerante
presidente já
prometeu vingança. Existe uma linha
de investigação nos Estados Unidos que
atribui os atentados a grupos de extrema-direita que
agem na América. São fanáticos da Klu Klux Klan que
pregam a discriminação racial
e que tiveram participação direta nos assassinatos de J. Kennedy, M. Luther King e no atentado de Oklahoma. Mesmo
que não
encontrem culpados, provavelmente escolherão um
bode expiatório e lá despejarão toda sua ira,
desovando seu estoque
de bombas com
datas de vencimento
por expirar e
assim poderão revigorar
sua indústria
bélica (a maior
do mundo) com
o fabrico de novos artefatos
que, talvez,
poderão ser usados na destruição
de outros símbolos
nacionais americanos,
na destruição de mais vidas.
De
nada adiantou a fábula de dólares gasta com projetos antimísseis para proteção
do solo americano. Foram feridos com suas próprias armas. Cadê o inexpugnável
sistema de segurança? Os americanos foram feridos na sua arrogância e
prepotência, talvez tenham sido vítimas da violência que eles mesmos propagam
pelo mundo afora. A lição de Pearl Harbor e do Vietnã de nada valeu.
Disse
o embaixador Afonso Arinos: “Você cutuca o diabo, um dia, ele aparece”.
Nossas
crianças são expostas diariamente a todo tipo de violência nos programas de
televisão, quer seja em desenhos animados ou vídeo games oriundos daquela
plagas.
Resta
aos americanos reconstruir o que foi destruído e repensar a maneira de olhar o
restante do mundo. A lucidez no lugar da arrogância e a humildade em lugar da
prepotência. Que dirijam seu olhar de piedade para as crianças que morrem de
fome na África, no Brasil e no resto do mundo.
Basta de
globalização. Todos trabalhando para enriquecer um só? Basta dessa sangria
agiota e infanticida do Fundo Monetário Internacional (FMI). Os portugueses, na
época do império, levavam nosso ouro em galeões, arriscando-se através dos
mares e oceanos. Hoje, o FMI, sem disparar um tiro sequer, leva só com os juros
da dívida, nossas riquezas, o sangue, o suor e a dignidade da nossa gente,
através de simples transferências bancárias sem risco nenhum de naufrágio.
Divergências
à parte, manifesto aqui meu profundo pesar e minha indignação pelo ocorrido com
o povo americano. Que descansem em
paz. Que suas mortes não sejam em vão. Que sepultem de vez
a intolerância e a incompreensão.
DESILUSÃO
Há
cerca de três anos, venho acompanhando a recuperação da frágil vegetação da
encosta da Serra de São José de Tiradentes, pois nesse período não houve fogo
que a destruísse. À distância, é possível se ver algumas árvores timidamente
maiores, dando sinais claros de que ali, futuramente, voltará a vicejar uma
mata peculiar à serra, trazendo consigo todo tipo de vida e biodiversidade,
principalmente em se tratando de Área de Proteção Ambiental (APA).
Gostaria
de não ter
assistido. Que tivesse viajado ou que dormisse profundamente
por dois dias para que meus olhos não
vissem e meu coração
amargurado não sentisse a maior queimada já
ocorrida naquele local. Uma visão dantesca
do inferno. As chamas
vermelhas, contrastando com o fundo escuro da
noite, provocaram-me uma sensação de impotência
e insignificância diante
daquela monstruosidade. Pássaros em debandada, à noite, espavoridos, voando às cegas,
batiam contra postes,
árvores, paredes
e caíam mortos. E seus
ninhos? Seus
filhotes? Dizem que
a codorna não
abandona o ninho. Num ato estóico, prefere morrer
queimada a abandonar
seus filhos.
Que tristeza!
Que maldade!
O
clima estava terrivelmente seco e a umidade do ar, baixíssima. (Prefiro
acreditar em autocombustão.) Um caco de vidro deixado próximo à vegetação,
refletindo e ampliando os raios solares, pode dar início a um foco de incêndio.
Não creio que alguém, um ser humano, muito embora o mundo esteja pontilhado de
bestas humanas, pudesse ter iniciado aquele crime ambiental. Quero ressaltar o
esforço debalde da Brigada de Bombeiros Voluntários de Tiradentes, do Corpo de
Bombeiros de São João del-Rei, das pessoas comuns e amigas da natureza que, em
vão, tentaram debelar as chamas.
Desta
vez minha querida serra não deu sorte. Ardeu em chamas durante dois dias e duas
noites até que chegou a chuva. Os ventos poderiam ter dado uma mão empurrando a
frente fria com mais velocidade. Mas, quem somos nós para palpitar sobre a
velocidade de chegada da chuva? Minha preocupação é exclusivamente com a
natureza que aprendi a respeitar, pois sou um amazônico, e não quero entrar no
mérito de quem é a responsabilidade pela guarda daquele patrimônio. Parece-me
que projetos como a Trilha dos Inconfidentes e a Estrada Real, que pretendem
auferir lucros com o ecoturismo, preservar e desenvolver a região, correm o risco
de se inviabilizarem. Os responsáveis terão, primeiramente, que investir em
segurança preventiva no alto da serra e não deixar que esposa
de turista seja violentada na presença do marido (isso aconteceu?), que as pessoas sejam assaltadas por bandidos
drogados que ali fazem ponto e que ninguém mais ateie fogo na floresta,
deixando de recolher o próprio lixo.
“Quem não pode com o pote, não pega na
rodilha”. Está se tornando moda nestes tempos, a criação de muitos Conselhos,
reuniões, debates, palavrórios e prolixidade, quando, na verdade, se precisa de
uma atuação mais firme e efetiva para enfrentar os problemas. Deixemos as
escrivaninhas e as salas de reuniões, arregacemos as mangas e partamos para a
produção. Às vezes, com soluções criativas, resolva-se o problema de forma
racional, em vez de ficar choramingando falta de verbas.
Minha
serra, da tua atual paisagem desolada e calcinada, brevemente, restará somente a
má lembrança. Tenho certeza que voltarás com toda tua exuberância e um dia
terás dos homens o respeito que mereces.
P.S.: Contaram na mesa da Cantina:
—
Dois bons amigos nossos, um deles indo pela primeira vez ao Rio de Janeiro,
dirigindo-se ao outro, já mais escolado, durante um banho de mar em Copacabana,
disse:
—
Você falou que vai pegar um “jacaré”? (linguagem que o praiano usa para dizer
que vai descer de peito numa onda).
—
Vê se pega dois pequenos para eu levar em uma caixinha para São João del-Rei.
DESPERDÍCIO
(PAI, FAVOR CONFERIR COM O ORIGINAL.
ACHO QUE MUDEI MUITO, NÃO SEI SE ALTEREI O SENTIDO)
Reiteradas
vezes tenho manifestado minha alegria de ter conquistado o privilégio de morar em
casa própria na Estrada Velha das Águas Santas. Quando aqui me instalei, era um
lugar bucólico e romântico. Daquela paisagem constava uma estrada de terra que
infernizava a vida dos moradores – na seca, com a poeira, e no verão, com um
lamaçal infernal – porém tudo natural.
O tempo passou e aqui também
chegou o “progresso”. Sem meio-fio, sem água e sem esgoto, a Prefeitura
resolveu solucionar o problema, asfaltando a rua que vai desde o Alto das Águas
Santas até as proximidades da Escola do Bradesco. Meteu asfalto em tudo,
afirmando que o novo pavimento teria a durabilidade de, pelo menos, 15 anos. Só
se for para efeito de pagamento à empreiteira, porque o que se vê, após quatro
anos de inaugurada – quem quiser pode medir a altura do asfalto e conferir com
a fatura – é uma tintura negra misturada com brita, deixando a rua em estado de
calamidade pública.
Quando
inaugurada de pouco – nova eleição, outra demagogia – surgiu a notícia de que a
Copasa iria assumir o abastecimento de água na região, o que pareceu ser a
solução para o antigo problema de falta d’água nas Águas Santas. Para isso, o
asfalto teve que ser rasgado para a colocação dos tubos adutores que foram instalados, mas que até hoje não levaram
água a lugar nenhum. As casas, portanto, continuaram secas, o asfalto novo
ganhou um remendo de fora a fora e a confiança na durabilidade do asfalto
sumiu.
A história do desperdício, da
incoerência, da incompetência, imprevidência ou sei-lá-o-quê que testemunho
desde que me mudei, no entanto, não termina aí. Sem qualquer estratégia ou
logística, assentaram uma barreira policial na rodovia BR 283, que vem de Belo Horizonte,
em frente à Cia. Industrial Fluminense. O problema é que alguns metros antes da
presença ostensiva da polícia, está o trevo que dá acesso à Estrada Velha das
Águas.
O posto policial, portanto, serve
apenas para fiscalizar e incomodar os donos de veículos que não temem a
fiscalização, ou seja, que estão dentro da lei, perdendo seu efeito repressivo
aos marginais e contraventores que passam incólumes sem serem molestados pela estrada
velha, aquela com o asfalto rasgado. Se no local da barreira fosse montado um
pedágio, o faturamento não daria nem para o café. Enquanto isso, na estrada
velha, o esparso fluxo de pacatos moradores deu lugar a um tráfego marginal
preferencial para infratores.
Por ali passa de tudo, até
carretas com excesso de peso. Todo e qualquer motorista que esteja sujeito a
alguma infração ou precise driblar a fiscalização desvia pela estrada velha,
sobrecarregando o tráfego e acabando de vez com o asfalto de “15 anos” de expectativa
de vida útil que em certos locais só deixou vestígios. Nos finais de semanas,
motoristas alcoolizados e imprudentes fazem dali um verdadeiro autódromo. Os
pedestres, que deveriam ter a preferência, por falta de calçada e meio-fio, são
obrigados a se jogarem para o meio do mato, sujeitos ao perigo e ao incômodo de
cobras e lagartos. Antes que algo de mais grave aconteça, as autoridades devem
olhar por aquele pedaço da cidade, onde vivem eleitores e contribuintes.
P.S.: Fim
de governo lamentável.
O diabo mostrou suas
unhas. Gás
a quase 30 reais,
gasolina a dois reais.
O maquiavélico se vingou exatamente em cima dos pobres e adubou o abacaxi
para Lula.
DIVAGAÇÕES
Hoje acordei cedinho, com
o chilrear dos passarinhos.
Entrei na internet — que grande invenção
também para
os velhos! — e ali estava uma linda mensagem com paisagens
maravilhosas. No fundo, a melodia do filme Ghost. Sem
perceber, entrei no labirinto da minha memória e
comecei uma longa caminhada
por uma estrada
de terra batida
ladeada por canaviais.
Embalado pela música, fui revendo meus antepassados, mas
de uma maneira diferente da que costumo vê-los, sempre cabisbaixos
e distantes - talvez por interferência da saudade. Nesta minha
elucubração momentânea,
eles estavam ativos, vigorosos e sorridentes.
A sensação que
tive é a de que eu
os tocava, todos sorridentes
amáveis e satisfeitos.
Foi um momento
de paz! Busquei lá
nos recônditos
da minha memória
meus avós com
seus tipos
peculiares e inesquecíveis.
Ele, italiano, moreno, bigode
espesso, terno,
chapéu gelo
e pernas arqueadas com
sua risada
rouca e intermitente
que sempre
procurei e nunca mais
ouvi. Minha avó também ali estava.
Italiana de Veneza, alta, alva, olhos
azuis, grandes, amatronada, a tecer renda de bilro e me pedir um beijo.
Meu
pai, esguio
e elegante, dono de um
sorriso cativante, participava alegremente da conversa com meus avós. Eis que surge minha mãe. Com seu inesquecível avental,
próprio para a lida à beira do
fogão a carvão,
pois naquele tempo
não havia gás.
Mulher austera
e de fibra. Bem
nascida, filha do coronel
da Guarda Nacional,
Hilário Barroso, de finos
dotes, professora diplomada
e pintora clássica compulsiva.
Dela, o que eu
mais apreciava eram seus
dotes culinários e não
me esqueço de seus
afagos nos
meus cabelos
finos e dourados
do sol. Absorto naquela viagem, fui me enveredando pelo labirinto da minha
memória.
De
repente, estava lá
eu no timão
do barco do meu
pai, enfrentando um temporal
na perigosa travessia da Ponta Negra, já no rio Pará,
que é o estreitamento
da baía de Guajará, onde
fica a cidade de Belém. Essa travessia é feita por pilotos com muita perícia, mas vi
meu pai
e seu capataz
fazerem aquilo tranqüilamente,
desde criancinha.
Ao
ver o capataz
do papai, seu
Feliciano, com a face
sulcada pelas intempéries da Amazônia e também pelo avançado da idade,
ensopado pela
chuva torrencial
que caía naquela noite
tenebrosa, me
comovi. Pedi-lhe o leme da embarcação. Sua
única pergunta:
—
Tu te
garantes?
Aquiesci
com a cabeça. Meu
pai a tudo
assistia sem dizer
palavra alguma. Tomei o timão.
A sensação que
tinha era
a de que meu
coração batia na boca.
As pernas tremiam violentamente.
Não podia deixar
que eles
percebessem e, por outro
lado, tinha que vencer
meu medo,
vencendo, desta forma, a mim
mesmo.
Não se via quase nada, só algumas silhuetas
reveladas pelos raios
incessantes. Nessas horas, não se procura
o destino à frente, e sim,
uma referência aos lados,
seja à bombordo ou boreste.
A adrenalina quase
me sufocando, o rio
cada vez
mais encapelado, correnteza
forte da enchente
na cabeça da maré,
vislumbrei a silhueta de uma imensa castanheira
a bombordo, na margem
do rio. Num golpe
rápido, virei o timão para
boreste e deixei a margem
direita do rio, afastando-me com velocidade em direção à
margem esquerda.
Se errasse, daria de encontro com algumas pedras,
postadas no leito do rio.
Foram momentos intermináveis
de angústia e de tensão.
O mar e o rio
são para os valentes e destemidos,
porém não
admitem erro. Um
erro naquele instante
seria fatal. O barco
soçobraria e não sei se alguém se salvaria.
Finalmente, após uma hora de tensão a chuva
amainou e pude ver as luzes
de uma pequena cidade
chamada Guaramucu. Eu
tinha acertado. Que
alívio. Sem
palavras, recebi os abraços do meu pai e do
Feliciano. Naqueles gestos, queriam dizer que eu havia sido aprovado
pelos destemidos
e aventureiros e daquele dia em diante compreendi que
havia dominado o medo e nunca
mais seria o mesmo.
Agora
a música acabou. Despertei das minhas divagações, caminhando naquela linda estrada que cortava lindos
canaviais.
Obrigado
à minha amiga
remetente da mensagem
que me
proporcionou uma volta ao passado.
P.S: E os nossos
relógios digitais?
Que desleixo!
O aeroporto será inaugurado e os relógios digitais
que marcam hora
e temperatura continuarão ali, como monumento ao desleixo, fazendo propaganda
do Governo Estadual e da Cidade de Tiradentes.
DOMINGO
Domingo é domingo
em qualquer
lugar. É um
dia especial
com suas
peculiaridades. Na minha
cidade não
é diferente. Antes
do sol aparecer
por detrás
das montanhas, a cidade começa a despertar. Os padeiros são
os primeiros e, para que
a padaria abra suas
portas, servindo a clientela
com pães
frescos e quentinhos, é necessário que aqueles profissionais comecem a trabalhar
às três horas da madrugada.
É uma lida dura.
Deixar a cama aconchegante, enfrentar o
frio da madrugada
e depois encarar
o calor dos fornos não
é para qualquer
um. Muitos
destemperam após esse
tipo de pasteurização e sucumbem prematuramente. Mas,
segue o domingo.
As senhoras devotas, de mais
idade, preparam-se com
carinho e respeito,
de véu na cabeça
e terço em
punho, para cumprir sua obrigação cristã perante
Deus, dirigindo-se à igreja para assistir
à missa. Pelas ruelas estreitas, sob o olhar sonolento
do casario barroco,
vão caminhando silenciosamente,
pisando delicadamente nas pedras seculares
da minha São
João del-Rei. As luzes ainda nem se
apagaram e aqueles vultos
vão tomando vida
quando adentram à igreja.
Num ambiente de meditação
e prece surge o padre,
na frente do altar,
com seus
paramentos coloridos, para
iniciar o Santo
Ofício. As orações
propostas pelo
sacerdote são respondidas em
uníssono. Um
canto gregoriano
ajuda a criar
um clima
de misticismo e enlevo,
sugerido pelo maravilhoso
barroco secular.
Ao final da missa,
aquelas senhoras se transformam em grandes
banqueteiras. Dali para a cozinha.
Vão preparar com
esmero o tradicional almoço do domingo.
Que maravilha essa cozinha
mineira! Cheia
de tantos truques,
panelas de pedra,
de ferro, fogão
a lenha. Costumo dizer
que a melhor
invenção de Minas,
sem dúvida,
são as mineiras e em
segundo lugar
o pão de queijo.
Em outros
cantos da cidade,
no mesmo horário,
em alguns
bares, os cozinheiros
ou cozinheiras preparam o tradicional mocotó ou a dobradinha para saciarem o apetite dos adeptos
de Baco e agnósticos. Alguns, bons
católicos, só chegam depois da missa. O mais importante
disso tudo é o ambiente criado nos bares. Todos se
conhecem. Se por acaso
há algum deslocado num canto do bar, certamente no próximo domingo já
estará fazendo parte das conversas, que são as mais
variadas. Acreditem, já ouvi discutirem até política internacional, mas
os assuntos preferidos são as gozações
entre os amigos
e, inevitavelmente, o futebol. Nunca presenciei uma briga
ou desavença,
embora a quantidade
de pinga ingerida, sob
pretexto do mocotó,
seja imensa. Ninguém
se exalta. No máximo, ri mais alto que os outros. Zé
Oreine é testemunha, lá no Tia Maria,
e o Marcos Alberto, no Penna’s. Tradição gostosa
essa! Na praça, alguns
aposentados se lagarteiam, “quentando” sol,
enquanto os moleques
ferram numa pelada de bola de borracha,
aproveitando o gramado da praia do Córrego do
Lenheiro.
Na Estação Ferroviária,
a bela e romântica “Maria Fumaça” dá seu último apito chamando
algum turista retardatário
que se dirige a Tiradentes. Dizem que esse
trenzinho foi o culpado pela evolução de Tiradentes e a involução
de São João. Isso porque o turista vem até
São João, pega o trem
e passa o dia
em Tiradentes, gastando o dinheiro
por lá, com almoço,
doces e artesanato, comprando aquelas coisas
que, muitas vezes, ao chegar em casa, não sabe nem o que fazer com elas. Dessa maneira
o turismo enriqueceu Tiradentes.
As
manhãs dos domingos são-joanenses, já foram mais alegres quando nós promovíamos
bingos nos campos de futebol. Era uma festa para a comunidade carente de
eventos. Sorteávamos, muitas vezes, cinco carros zero quilômetro. Tudo dentro
da maior lisura amparados pela lei. Não sei porque ou com que interesse o chefe
da Fazenda Estadual não simpatizava com aquele tipo de evento e dificultava o
que podia. Talvez porque fosse promovido pelo Pedrão & Cia. Se fosse do
Silvio Santos ou a Azulzinha, que não tem nada a ver com a nossa comunidade, só
vem aqui para levar nosso pouco dinheiro para fora, provocando uma verdadeira
sangria em nossa frágil economia, aí sim, está liberado. Nossos eventos
representavam empregos para nossa cidade, geravam ICMS nas compras dos carros e,
finalmente, faziam muitas pessoas felizes. Até que veio uma ordem do Eduardo
Azeredo, então governador, suspendendo os bingos, se antecipando à uma Lei
Federal. Governo “austero” aquele!
Talvez porque estivéssemos
fazendo uma pequena concorrência com o cassino oficial do governo, cheio de
Loterias, Pimbas e outras roubalheiras mais ou por não termos contribuído para
sua caixinha de campanha. Manda quem pode, obedece quem tem juízo!
Hoje
é um domingo cinzento. Dia propício para o mocotó. Deixem-me apressar, senão
perco o meu e o bate-papo. Aí, domingo à tarde também é domingo em qualquer
lugar do mundo. Muito chato!
P.S.: Dizem que nosso país não é sério. Disso
já sabemos, mas vindo da Itália, berço da civilização e precisamente da Ferrari,
a atitude contra nosso Rubinho, no GP da Áustria, é, no mínimo, uma
cafajestada. Indignado, revidarei: não mais comprarei uma Ferrari, só vou de
fusca.
EDUARDINHO
Dias
atrás, quando voltei de Camargos, fiquei sabendo do falecimento do meu amigo
Eduardo Lopes, tratado por todos, carinhosamente, por Eduardinho. Sua morte não
me surpreendeu já que seu estado de saúde vinha se agravando. Um macho da
qualidade dele não foi feito para se decompor numa cama. Após enfrentar, na
selva e nas aventuras de que participou, tantos perigos e adversidades, não
seria justo permanecer prostrado num leito de hospital. Aquela situação sem
dúvida o incomodava. Porém, a notícia abateu-me profundamente.
Dizia
meu amigo Dinho das Rosas:
—
Quando nós fazemos falta lá em cima, o Senhor nos chama.
Talvez
tenha acontecido isso mesmo. O paraíso estava monótono e o Oswaldo Magaldi,
sentindo falta do velho companheiro de caçadas e churrascadas, convocou-o.
Quando
faleceu seu pai, Eduardinho chamou para si a responsabilidade de acabar de
criar os irmãos menores. Assim sendo, só foi constituir sua própria família
mais tarde, quando se formou professora sua última irmã.
Dotado
de grandes virtudes, Eduardinho possuía a maior delas: sabia ser amigo dos
amigos. Sempre solidário, alegre e contador de causos. No ambiente em que
chegava, formava roda. Tive o privilégio de
desfrutar da sua amizade e, algumas vezes, acampamos lá pelas bandas do Mato
Grosso e do Araguaia. Apreciava o seu jeitão.
É
sabido que todos os caçadores e pescadores têm pressa de chegar ao lugar de
destino. Com Eduardinho era diferente. Parávamos em algum posto de gasolina e
ele sumia. Os companheiros aflitos, com pressa de seguir viagem, iam a procura
dele. Não foram raras as vezes que o encontramos tomando uma pinga, comendo um
tira-gosto e curtindo um bom papo com aquele que tivesse tempo disponível,
fosse ele da elite ou pé de chinelos. Tratava todos com alegria e sem distinção
de categoria social.
Não
sei por que a vida nos reserva essa punição, esse tributo tão estressante de
ver nossos amigos e pessoas queridas nos deixarem. Quando embrionários, se nos
dessem a chance de responder se gostaríamos de nascer, talvez a resposta fosse
não. Lembro-me da infância feliz que tive, junto aos meus pais, avós, tios,
primos e irmãos. Hoje, com raras exceções, restam apenas pó e saudades. Aqueles
já são saudades velhas, o meu amigo Eduardo é uma saudade nova. Não sentirei
mais o aroma do seu cachimbo, que o tornou um tipo inesquecível. Poucos dias
antes de morrer encontrou-me e disse de chofre:
—
Na política não temos inimigos, mas adversários. Talvez tenha lembrado do seu companheiro de amenidades Dr.
Tancredo.
Descansa
em paz, amigo, você merece.
O ENGODO
Há
anos, quando ainda não existia TV por assinatura, atendendo a um apelo de
marketing, fui um dos primeiros em
São João a me filiar ao sistema recém inaugurado da Globosat,
que oferecia seis canais a um preço mensal de 20 reais.
Para usufruir daquela programação, tive que
investir a quantia
equivalente a três mil dólares na compra de uma antena
parabólica e um
decodificador de sinal.
Passado algum
tempo, a qualidade
da imagem vinha
caindo, quando, certo
dia, liguei a televisão
para sintonizar o canal de desenhos
animados para
meu filho
e fui surpreendido com uma mensagem na tela:
“Encerramos nossas atividades”. Não
acreditei. Entrei em contato com a empresa e, de lá,
obtive a informação que
eu receberia “inteiramente grátis” uma moderna antena parabólica e um
novo decodificador
de satélite para
captar a nova
programação que
constava de 140 canais ao preço de 52 reais. Mentira.
De verdade, somente o preço, quase triplicado. O contrato anterior
foi feito dentro
de minhas posses
de aposentado. Como iria arcar
com uma prestação
dessas, se meu aumento
anual é de 3 ou
4%? De resto, na fatura
dos aparelhos, veio
a expressão “em comodato”, o que significa dizer que passei a ser apenas um depositário e não
um proprietário,
como dizia a frase
“inteiramente grátis”. Os 140 canais a que se referia a propaganda também
era mentira. Somente 70 canais são de vídeo
(de gosto duvidoso
e linguagem indecifrável)
e 70 de áudio.
Não
conheço ninguém que ligue um aparelho de televisão para ouvir música - uma
coisa de gosto muito pessoal, que obedece a um ritual de escolha próprio,
muitas vezes não disponível naquela programação.
Sentindo-me
lesado, procurei meu direito. Fui ao Procon, onde me deram ganho de causa, mas
justificaram sua incapacidade de prosseguir com a demanda, visto que a empresa
era de São Paulo, fora de nossa jurisdição. Recorri ao Juizado Especial de São
João del-Rei e, nesse ínterim, veiculou-se num desses jornais de televisão, a
notícia que uma empresa prestadora de serviços, nos moldes da Globosat, lá nos
Estados Unidos, talvez até a matriz da nossa, foi condenada a indenizar uma
família de negros americanos com a bagatela de quatrocentos mil dólares,
somente porque o equipamento daqueles consumidores tornara-se obsoleto. Meu
sentimento de vitória na ação aumentou. Como é comum copiar o que nosso patrão
do Hemisfério Norte dita, por que então não copiar o que é benéfico para o
consumidor tupiniquim? Na última audiência da minha ação, aqui no fórum, o juiz
responsável manifestou-se, inverteu o ônus da prova, penalizou a Globosat e
ainda acrescentou: “Se eu der minha sentença, agora, em cinco minutos, o Brasil
inteiro saberá”, insinuando que decidiria a meu favor. Saí da audiência
aliviado. Finalmente se faria justiça. Não queria nada além do que aquilo que
gastei. Ledo engano. Trocaram o juiz e eu, um reles consumidor brasileiro, fui
condenado.
Manda
quem pode, obedece quem tem juízo.
Até
quando, Catilina? Obrigado, ilustres julgadores.
P.S.: Mais
uma vez o Brasil no topo
do pódio. Desta vez o Wanderlei deixou os
quenianos para
trás e faturou o primeiro
lugar na Maratona
Internacional de S.Paulo e a Severina
repetiu o feito entre
as mulheres. Parabéns
para ambos que baixaram a marca
da pista. Daqui a pouco
o hino brasileiro
substituirá a Aquarela do Brasil, a música brasileira
mais tocada pelo
mundo afora.
21 DE ABRIL DE 2000: BRASIL
500 ANOS
Comemorar o quê? O extermínio dos primeiros brasileiros, habitantes
desta “Terra de Vera Cruz”, como a chamaram os invasores? Que eram mais de três
milhões de indivíduos e hoje são apenas 300 mil? (E ainda dizem que nossa
colonização foi pacífica.) As carnificinas das guerras encarniçadas como a da
Cabanagem, liderada por Avelino, cognominado Angelim — uma referência à
inflexibilidade de seu caráter, comparável à rigidez daquela madeira amazônica
—, que representou a resistência dos caboclos brasileiros à invasão lusitana? O
saque de nosso ouro, remetido à coroa portuguesa depois de arrancado de nossas
minas com o suor e a chibata no lombo dos índios e negros feitos escravos?
O
enforcamento de Tiradentes, com requintes de crueldade, na Praça da Lampadosa?
Aproveitaram do seu sangue e lavraram uma certidão de que a sentença do
enforcamento havia sido cumprida. Metidos em salmoura, seus restos mortais
voltaram a Minas Gerais. A cabeça foi exposta em Vila Rica e os quartos espalhados
pelo Caminho Novo — em Cebolas, Varginha do Lourenço, Barbacena e Queluz (ex
Carijós), chamada às vezes Sítio das Bananeiras — naqueles lugares, enfim, onde
o “malvado alferes” fizera suas “infames prédicas” pela liberdade da pátria.
Os
400 anos de escravidão impostos aos negros, arrancados de sua terra natal além-mar,
submetendo-os a humilhações e maus tratos, como o vexame do tronco, onde eram
açoitados a mando de seus senhores até à morte? Que comemoração macabra! Os que
trucidaram e dizimaram vidas humanas são exaltados e reverenciados como heróis
descobridores?
O
que comemoramos? A entrega de nossas riquezas minerais, como a da Serra do
Navio, no Amapá? A sangria produzida na maior reserva mineral do mundo, na Serra
de Carajás, onde até uma ferrovia e um porto
foram construídos em tempo recorde para escoar o minério extraído antes que algum
brasileiro pudesse se dar conta?
O
assassinato de milhares de jovens, a maioria universitários que seriam o futuro
da nação e representavam “perigo” para a “revolução moralizadora” de 31 de
março?
A
geração de 13 milhões de desempregados, 30 milhões de analfabetos, 44 milhões
de miseráveis e 22 milhões de pobres?
As
chacinas produzidas contra cidadãos indefesos, desempregados e sem terra?
O
roubo na Previdência Social? Aliás, esse um dos maiores fundos do mundo em
arrecadação, pois passou 30 anos recolhendo uma parcela significativa do
salário de cada trabalhador brasileiro sem pagar uma única aposentadoria, a não
ser as por acidente? Descaradamente, dizem que está falida. De quem é a culpa? O
dinheiro foi descontado religiosamente de nossos salários, mas colocados à
mercê da gastança perdulária do governo.
Devemos
comemorar a “venda” da Cia. Vale do Rio Doce e de suas jazidas, empresa pública
classificada entre as melhores e mais eficientes do mundo, cedida pela bagatela
de três bilhões de dólares? Ou talvez devêssemos festejar o repasse de um
bilhão e meio de dólares, metade do que foi faturado com a venda da companhia, aos
banqueiros internacionais donos dos bancos Marka e Fonte Sindan, sob o pretexto
de que esses bancos desconhecidos ameaçavam o sistema financeiro brasileiro?
O
salto da nossa dívida, que saiu de 70 bilhões para 500 bilhões, provocando um
pagamento de juros da ordem de 300 milhões de reais por dia, também pode render
alguma alegria hoje?
Preferiria
o Brasil colônia. A sangria era menor, pois levavam somente o ouro. Hoje levam
o ouro, a dignidade, o sangue e o suor desse povo humilhado e ultrajado.
O
FHC com F de “Fantoche” está lá. Todo empertigado, travestido de estadista,
satisfeito de ter pago o preço que pagou para deixar seu nome na história do
Brasil como o presidente dos 500 anos.
Não.
Para muitos brasileiros, certamente para a maioria, ele passará como o mais vil
e covarde deles. Um genocida maquiavélico que não deu ouvidos ao clamor de
tanta gente que morreu de fome por falta de trabalho, mas deu fábricas de
automóveis de presente para as multinacionais produzirem meia dúzia de empregos
de baixa qualificação, enquanto os cargos mais elevados são ocupados por
estrangeiros.
Comemorar
três milhões de reais por uma caravela que não funcionou? Ela está na medida
certa para uma viagem do presidente e sua equipe econômica. É onde deveriam
ficar, onde o mar é mais profundo e inóspito, num mausoléu submerso, onde
construíram sua própria incompetência.
Fora
FHC! Este país não é teu.
CARTA AO MEU
FILHO
São João del-Rei, 18 de junho
de 1997.
Meu
filho,
Ao
sentir aproximar-se o final da minha jornada, gostaria de deixar consignadas
algumas considerações úteis na tua caminhada que se inicia. Peço-te perdão pela
ousadia de te colocar no mundo sem ouvir tua opinião. Assumo metade da culpa.
Pela
tua herança genética, certamente lidarás com muitos defeitos e algumas virtudes
de teu pai. O dia em que nasceste foi de grande alegria e profunda reflexão.
Ser teu pai com a idade já avançada seria irresponsabilidade ou desafio?
Talvez, um certo egoísmo. Usufruir do teu sorriso inocente, do teu terno
abraço, da tua pequenez angelical. Vieste preencher minha vida.
Gostaria
de te falar sobre muitas coisas que nossa diferença de idade não permite. Um
momento só e uma folha de papel não basta. Gostaria de caminhar a teu lado, às
vezes contigo no colo, sangrar com prazer, pisando nos espinhos que por ventura
a vida te reserve. Faze da vida uma trajetória de sorrisos. Deixa que as
pessoas te procurem pela tua alegria e não te evitem pelas tuas tristezas. Nunca
sejas subserviente. Caminha de cabeça em pé. Não aceitas humilhação e nem abdicas do teu
direito. Protege tua mãe. Não deixa que a façam infeliz. Ela enfrentou a
maledicência de uma sociedade vil e austera para te ter.
Se
a indagares se valeu a pena, certamente ela não hesitará em te abraçar e, sem
palavras, sentirá as lágrimas dela umedecerem teu ombro.
Se
puderes ter dinheiro, será bom, porém, se faltar, não te maldigas; ele é o
grande culpado das mazelas do mundo. Nas mãos de pessoas fracas, a riqueza
acaba por eliminar o que o ser humano tem de mais admirável: a dignidade.
Respeita
os idosos. Quando por eles passares, reverencia-os. Ali vão anos de experiência
vencidos pelo tempo, e quando fores senil, lembrarás do que hoje te falo.
Somente aí, nessa época, entenderás.
Te
amo.
Teu pai.
FRANCAMENTE
Sopravam
ares benfazejos de austeridade e ética sobre o Congresso Nacional,
especialmente nas duas últimas gestões de sua presidência, exercidas por Aécio
Neves e, posteriormente, por João Paulo Cunha(?). Tinha-se a sensação de que
finalmente o Brasil caminhava para se alinhar entre as nações mais sérias do
planeta. A imagem desgastada do Congresso começava a se recuperar e,
conseqüentemente, a dos políticos que ali atuam. Por um momento, chegamos a
acreditar que aqueles deputados sem projeção política alguma, que usam seus
mandatos apenas para satisfazer interesses pessoais, estavam ficando para trás.
Mas na hora da votação, como a da eleição do presidente da casa, vimos que esse
chamado “baixo clero” ainda é uma fatia expressiva dos nossos “representantes”
e o presidente eleito, Severino Cavalcanti, o líder desses bonifrates.
Não
foi difícil se eleger. Enquanto aqueles de retórica brilhante, com os holofotes
sobre si, preocupados com a mídia, se digladiavam lá por cima, sorrateiramente,
pelos subterrâneos do Congresso Nacional, Severino corrompia seus pares com a
promessa vil de aumento de honorários. Na primeira entrevista após a vitória,
com a imagem de “coronel de engenho”, vociferou que daria aumento aos deputados
e aqueles que não concordassem, abdicassem, através de documento próprio. Em
seguida, com o objetivo claro de bajulação, declarou-se favorável à prorrogação
do mandato do presidente Lula. Que vergonha!
Quando se fala em políticos corruptos no Congresso,
logo nos
vem à mente a imagem daqueles que pontuam o ranking. Mas eles não são poucos e, talvez por isso, nem todos, conhecidos.
O Severino, por exemplo,
está na décima legislatura
seguida, mesmo depois de ter sido protagonista, juntamente com Inocêncio de Oliveira, de um
dos maiores escândalos
da história da República, que ficou conhecido
como o “escândalo
da mandioca”. Fizeram um projeto de plantio de mandioca em floresta e apresentaram-no ao Banco
do Brasil para obter o
financiamento. Era tanta
mandioca que se o projeto
realmente fosse executado, não caberia no pequeno
município indicado. O pior é que o dinheiro foi liberado
e a mandioca nunca se viu, enquanto esses ratos
continuam aí a vilipendiar
as leis, impunes
e superiores a tudo.
Resta-me
o consolo de que aquela velha política de São Francisco, de que “é dando que se
recebe”, praticada corriqueiramente no Congresso, está acabando, pois, caso
contrário, o partido dono da chave do cofre nunca perderia eleição.
O FÜHRER
O
“Anjo da Morte”, que dizimou na Alemanha, de maneira cruel, milhões de judeus
no passado, volta agora travestido de presidente dos Estados Unidos, na figura
arrogante de George W. Bush, e no lugar de judeus, desta vez, o alvo são os
muçulmanos.
Interessante:
em 1918, o Führer fora internado em um hospital, vítima de um gás tóxico
disparado pelos aliados, dos quais faziam parte os Estados Unidos. Esse mesmo
país que hoje condena tal tipo de armamento e usa-o como desculpa para cometer
assassinato em massa contra populações civis indefesas, como as do Vietnã, do
Afeganistão e do Iraque, embora nunca tenha conseguido seus objetivos.
Os
EUA alegam que o Iraque possui armas químicas de destruição em massa, porém,
até ontem, não apontou essas armas. Se forem gases letais, quais são eles? De
que tipo? Qual o nome do gás? Pura desculpa esfarrapada.
Apesar
de todo o equipamento bélico - oito porta-aviões, 80 aviões de caça com ogivas
nucleares, 280 mil homens, mais tanques, aviões espiões de última geração e
outras parafernálias -, quase sempre os americanos não conseguem seus
objetivos.
Contra
o Japão, a meu ver, os vencedores foram os nipônicos que, num ataque
estrategicamente perfeito a um alvo militar, destruíram a frota americana
baseada no Pacífico, em Pear Harbor. Num
ato de vingança, o presidente Truman determinou
o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, provocando o maior genocídio da história
da humanidade.
Se
não tivessem a bomba atômica e fossem obrigados à uma guerra convencional,
talvez o desfecho fosse outro.
No
Vietnã, foram derrotados e humilhados. Usaram todos
os tipos de arma
química, inclusive
o desfolhante laranja (o que isso?) contra os pobres vietnamitas, que
os enfrentaram usando armas, algumas delas artesanais, feitas de bambu. Foi uma
guerra que
serviu para produzir aqueles jovens rapazes americanos,
fantasmas assassinos,
que vivem disparando seu medo e seu sofrimento mental, através de armas
de fogo, contra
seu próprio povo pelas ruas
de Nova Yorque.
No
Afeganistão, nada. O tal de Bin Laden continua dando entrevistas, tripudiando
sobre a parafernália bélica americana, que, inclusive, fabricou uma bomba
especial, de não sei quantas toneladas, para matá-lo dentro das cavernas.
Agora é a vez
do povo iraquiano sofrer
por ter o privilégio de possuir petróleo. O que o
Bush quer é o petróleo.
Ele está pouco
se incomodando se o Sadam Husseim é ditador, se fabrica armas
de destruição em
massa e se oprime o povo.
Ele quer
é roubar, assaltar o petróleo que não lhe pertence. Se não,
por que
ele não
intervém nas atrozes ditaduras africanas? Por
que não
invade Cuba? Porque
lá não
existe petróleo. Será que
esse fanfarrão não
vai atender aos protestos
contra a guerra
realizada no mundo inteiro?
Será que não
tem alguém de bom
senso naquele governo
capaz de demovê-lo dessa idéia macabra?
Será que quem
governa é a KKK? Por
vontade do seu
vice-presidente, o Iraque seria bombardeado por
bombas atômicas. Que
tragédia! O mundo
está à mercê de um
louco covarde.
Primeiro, manda desarmar
a nação que
vai atacar e depois despeja
seus foguetes
e bombas num país desprotegido.
Os americanos
podem possuir qualquer
tipo de armamento
condenado pelo tratado
de não proliferação
de armas nucleares,
o resto do mundo
não. Interessante. Por
que a ONU não
manda fiscalizar
os arsenais norte-americanos? Por que a ONU não exige o desarmamento
dos Estados Unidos?
Segundo
um porta-voz da rede Al Qaeda, existem instaladas dentro das sete principais
cidades americanas, sete bombas atômicas que poderão ser disparadas a qualquer
momento. Verdade ou mentira? Ninguém sabe. E se os muçulmanos estiverem
esperando o primeiro tiro? Aí terão uma justificativa: “Apenas revidamos”.
Certamente a opinião do mundo ficará dividida e o sentimento anti-americano se
ampliará. Poderão dominar o mundo pela força, mas, pela simpatia, está difícil.
P.S.: O Lula
tem meu voto
de confiança por
quatro anos,
afinal, foram 500 anos de domínio da elite. Mas daí a dizer que
não sabia do poder
das agências de controle do governo de alterar os preços das tarifas
públicas sem seu
conhecimento vai uma grande distância. Por
enquanto, “tudo como dantes no quartel
de Abrantes”.
HONDURAS
3x0
Na
Copa América de futebol, disputada na
Colômbia, fomos derrotados pela equipe de Honduras. Apesar dos protestos
de nossos patrióticos
narradores contra a arbitragem, quem
saiu prejudicada foi a equipe adversária,
pois o árbitro não
consignou em sua
súmula um gol
legítimo dos hondurenhos,
terminando o jogo com
o placar de 2 x 0. Prolfaças aos hondurenhos.
Já
me acostumei a ver nossa Seleção de futebol ser derrotada. Fato raro
antigamente. Não me abato mais e já consigo assistir às derrotas até o final.
Na
minha maneira
de ver, várias razões
têm que ser
consideradas. João Saldanha, o melhor comentarista e técnico
de futebol que
vi, responsável pela
conquista do tri, dizia que a escassez de terrenos baldios
com as peladas
de bola de meia estava prejudicando a formação
de novos craques,
na maioria, emergentes
desses lugares. Sim,
porque controlar
uma bola de meia não era para qualquer cabeça de bagre. Perguntem ao Batistinha.
Dizia também o João que, desde a criação
do futebol, a medida da trave e a do campo
de jogo mantiveram-se estáticas, enquanto
o homem vem, desde
então, superando suas
marcas atléticas em
todas as Olimpíadas. Como é difícil aumentar o campo de jogo,
sugeria que se tirasse um jogador,
passando uma equipe a ter
dez em
vez de onze jogadores,
a fim de se criarem mais
espaços.
João sempre
combateu o que se chamava de “futebol força”,
praticado pelos países
europeus e principalmente
pela Inglaterra. Esse
tipo de futebol
beneficia o atleta de baixa
qualidade, o tal
do “botineiro”, que, no lugar de jogar futebol, vai ao campo
para aleijar os adversários. Um
desses quase acabou definitivamente
com a carreira
do último craque
extra-clase do Brasil, o Zico. O nome
dele ninguém guardou, o do Zico, felizmente, continua a fazer
eco pelo mundo afora, em favor da arte
de bem jogar futebol. Além disso, temos que
considerar que nossos
jogadores, do futebol “moleque” cheio
de ginga e de firulas, são comprados a peso
de ouro pelos
países que
têm seu futebol
organizado e lucrativo. Não
é essa baderna que
se vê por
aqui. Em
lá chegando, são
adaptados a esquemas impostos pela filosofia dos técnicos
daqueles países, adeptos
do estilo “futebol força”. Na época de competições como
a Copa do Mundo,
são convocados para
representar o futebol
do Brasil. Eles podem até representar como garotos propaganda de umbros e nikes à vontade,
mas o futebol
do Brasil não.
Nossos
técnicos saíram daqui e foram para nações praticamente virgens em futebol e
ensinaram-lhes aquele futebol arte. Hoje quem pratica nosso futebol de outrora
são os africanos que já classificaram cinco equipes para a Copa do Mundo de
2002, enquanto nós, professores, estamos capengando na beira da eliminação.
Ficaremos de fora, pela primeira vez, de uma Copa do Mundo?
Fico
espantado ao ouvir o ufanismo de alguns comentaristas, quase a unanimidade:
“Temos a melhor técnica”, “a equipe adversária não tem tradição futebolística”,
“o placar será 4x0”. Isso dito pelos mais modestos. Inventaram que o Alex é
craque. Para mim é o maior “chupa-sangue” dos companheiros. Em outras épocas
nem banco pegaria.
E
tem mais: escalar Walmar, Rockenbach, Guilherme? Só se for para subir o preço
do passe deles no mercado internacional e, na hora da venda, o treinador ou o
Ricardo Teixeira receberem suas comissões.
É
demais. Para quem viu Dino Sani, Gerson, Riva, Pelé, Garrincha, Zico e toda a Seleção
do Telê Santana, dá sono e calo na vista assistir a esses “cabeças de bagres”,
dando trombada no meio do campo, carrinhos escandalosos. Não dá!
Colocaram
um cabeceador dentro da área, mas os alas, laterais e outros bichos não
acertaram um cruzamento sequer para que ele pudesse ser testado. Incrível. Acho
que teremos que naturalizar o Petkovitch ou nos
veremos na repescagem contra o que sobrou da Concacaf.
Não
se assustem. Vão virar a mesa. Copa do Mundo sem o Brasil não faz sentido. O
Havelange ensinou o “jeitinho” brasileiro ao seu sucessor na Fifa. Sem o
Brasil, o número de telespectadores no mundo cairá drasticamente. Como nas
antigas arenas romanas, todos querem ver o leão derrotado. Só que neste caso, o
leão, atualmente, é apenas um gato.
P.S.: Obrigado
à Funrei, pela edição
do 14º Inverno Cultural. Está igual ao vinho: cada
ano que
passa, fica melhor.
Mais cultura,
mais alegria,
mais turistas e mais
empregos.
IMPRENSA
Para a civilização ocidental, a técnica
de imprimir teve início
na Europa do século XV, mas os chineses, japoneses e coreanos, há muito, conheciam-na e usavam-na.
Os
mais remotos vestígios de imprensa de que se tem notícia são os amuletos que a imperatriz
Shotoku, do Japão, mandou confeccionar antes do ano 770 de nossa era, dos quais
ainda restam alguns exemplares pelos museus da Europa. Em 1900, numa caverna em
Tunhuang, na China, foi encontrada outra relíquia desta natureza, conhecida
pelo nome de “sutra do diamante”. É o mais antigo livro datado que existe (16-V-868) (sugiro: 16 de maio de 868, é isso mesmo?).
A arte de imprimir
utilizando blocos entalhados é a forma clássica da imprensa chinesa. Entre 971
e 983, foi impresso o Tripitaka, a Bíblia budista, cuja consecução exigiu o
entalhe de nada menos do que 130 mil blocos de madeira.
A
imprensa foi introduzida no Brasil com a corte de D. João VI. O material
gráfico, que pertencia à Secretaria dos Estrangeiros e da Guerra, foi colocado
no porão do navio Medusa pelo conde da Barca, e, posteriormente, instalado em
sua casa. Depois de um ato real, a casa passou a funcionar como Imprensa Régia
e de lá saiu, a 10 de setembro de 1808, o primeiro jornal editado no Brasil, a Gazeta
do Rio de Janeiro, dirigida por frei Tibúrcio José da Rocha. Depois de passar
por várias direções e denominações, sempre porém com caráter oficial, tornou-se
em 1º de janeiro de 1892, o Diário Oficial, que se conhece até hoje.
INDIFERENÇA
Uma
noite dessas, quando entrava na Rádio, às 21h30, fui abordado por um menino,
que devia ter entre dez e doze anos. Com
vários argumentos - não me cabe julgar se falsos ou verdadeiros – pediu-me um
“trocadinho”. A primeira reação – resultado desses anos todos de Brasil patrão,
de “minha empregada”, “meu empregado” em vez de minha auxiliar e meu auxiliar,
palavras menos ásperas e menos discriminatórias - foi de desconforto e
indiferença.
Felizmente, sou uma pessoa que
respeita a cidadania e tenho ouvidos e educação para os meus irmãos menos
favorecidos pela sorte. Caí em mim e dei atenção àquele pequeno ser
desprotegido, talvez pelo pai, pela mãe e pelo Estado, com certeza. Meu dever
não é julgá-lo nem expulsá-lo, mas sim ouvi-lo e acudi-lo. Não quero saber se
mente, do que duvido. Ninguém queira saber o que é pedir, principalmente quando
se pede o que comer. Na minha retina veio a figura do meu filho, na mesma faixa
etária, no lugar daquela criança. Ele que vive brigando para não comer.
Naqueles olhos a súplica cruel de um ser humano aos pés de outro ser humano.
Agindo como um robô, dei-lhe uma ou duas moedas, ao que me agradeceu e saiu sem
perceber que deixara para trás uma verdadeira estátua.
As infalíveis perguntas voltam a
massacrar meu coração. Por que 500 anos de colonização de um país tão rico e
belo produziram 50 milhões de miseráveis? 500 anos não são 500 dias! Um país
que tem mais de 500 deputados federais e mais de 80 senadores com honorários
altíssimos. Para que? Não querem saber se em algum lugar do Brasil existe
alguém morrendo à míngua, de desnutrição e indiferença, quando também estão
entre suas missões, proteger e amparar os descalços e descamisados.
Vai menino! Talvez, um dia, tu serás
presidente da República!
P.S.: Fugindo dos alimentos industrializados,
sobrecarregados de agrotóxicos, a população, que não é idiota, foi se refugiar
nos “produtos da roça”. Pois bem, de uma hora para outra, o mercado se viu infestado
de “ovo caipira” com embalagem, rótulo e filme de PVC, porém, quase não se
distingue a clara da gema de tão pálida que é. Já tem até multinacional
brasileira do ramo de alimentos vendendo “frango caipira”. Parece-me que não podem ser contestados,
afinal de contas, nunca vi uma granja em centro de cidade, por tanto elas estão
todas na roça. Agora, que a diferença é brutal entre o – digamos assim –
legítimo caipira e o caipira de gravata, isto é verdade. O legítimo caipira dá
banho!
LI
Li na rede internacional o seguinte: o assassino do índio pataxó agora
é funcionário federal e ganha 6,6 mil reais por mês. A informação foi publicada
pelo Correio Brasiliense, em 22/12/2002. Sob a manchete “Nomeado com louvor”, a
reportagem contava que Bruno, o rapaz que matou o índio Galdino queimado, foi
libertado, “passou” no concurso público e agora ganha esse salário.
A matéria dava outros detalhes. Contava que Bruno, filho do presidente
do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, fez concurso público para o cargo
de segurança (12 vagas disponíveis; salário de 1,3 mil reais; nível exigido 2º
grau) e ficou em 65º lugar. Depois do resultado, o número de vagas aumentou
para 70. Após 12 dias no cargo, ele foi promovido a dentista do TJDF para
ganhar 6,6 mil. O presidente do Tribunal, o pai, juiz (?!) Edmundo Minervino,
ainda teve a cara-de-pau de afirmar na entrevista: “Não houve ato ilegal
nenhum”.
Depois dessa vergonha toda, nós,
cidadãos brasileiros, perguntamos: se Bruno é tão bom assim, por que não fez
concurso para o cargo de dentista? Por que aumentar o número de vagas
exatamente para 70? Como estão se sentindo as outras pessoas que foram mais bem
colocadas que Bruno no concurso? O que se pode esperar de um país que tem na
sua justiça um juiz federal com esse comportamento? Que julgamento foi esse,
que pena foi essa que o assassino cruel de uma pessoa já cumpriu, já foi solto
e até teve tempo de fazer concurso? Assassinos podem fazer concurso público?
Incrível,
abominável e revoltante.
A
União é o maior, melhor e mais benevolente patrão. Vá um de nós, míseros
mortais, cometer um delito dessa monta e ver o que acontece. No mínimo
apodreceríamos num cárcere até o final de nossos dias.
Infelizmente,
nosso país ainda é o país da “carteirada”. Recentemente, um outro juiz, desses
que julgam nossos atos e deslizes perante a lei, assassinou a sangue frio um
pai de família dentro de um supermercado no Recife. A cena foi toda filmada
pelo circuito interno de televisão. O canalha executou sumariamente um chefe de
família no cumprimento do dever. O desespero do filho da vítima, um menino de
oito anos, foi de cortar o coração. Para esses casos deveria haver um rito
sumário e pena máxima.
Nosso
país é tão interessante que os “insignes” legisladores (aqueles que receberam
aumento de 25% de verba de gabinete, dado pelo gnomo Severino Cavalcanti na
barganha para sua eleição) criam leis que beneficiam delinqüentes, como é o
caso daqueles que têm curso superior e direito a cela separada. Por quê dar
regalia a bandido? Não somos iguais perante a lei?
Enquanto
esses exemplos de impunidade continuarem a prosperar em nossa sociedade nunca
seremos nada.
Levaram
a capital do Brasil para Brasília para que esse bando de ratos pudesse se
lambuzar com o dinheiro público, arrancado, muitas vezes, de uma legião de
trabalhadores que recebem o miserável salário mínimo.
Cuidado!
Tudo tem limite. Brasília hoje está ficando sitiada pelas cidades satélites.
Quem sabe, em breve, teremos uma versão moderna da Queda da Bastilha?
P.S.: Cadê os relógios digitais das
nossas praças?
Vamos mudar o nome da Avenida 31 de Março
para Avenida dos Imigrantes?
FINAL DE SEMANA EM MACAÉ
Depois
das festas comemorativas dos 70 anos do primo Lysis, inconformados com o fim daqueles
momentos de intensa alegria, combinamos a ida até a casa do primo José Geraldo,
em Macaé, cidadela dos Barrosos, naquelas plagas.
Muitas
dificuldades eu teria que superar, tais como locomoção e distância. Não tendo
carro, apelei para minha filha Lia, visto que ela também contém em seu código
genético, alguns cromossomos de seus antepassados Barroso.
Desde
minha separação, nunca mais havia convivido com minha filha por tantas horas.
Criei a expectativa dentro de mim e fiquei na dúvida de qual seria a sua
reação. Foi maravilhosa. Combinamos tudo e na sexta-feira comprei uma passagem para
Belo Horizonte, onde nos encontraríamos. Peguei o ônibus, às 16h, perto de casa
para não ter que ir à Estação Rodoviária.
Quando
o coletivo parou, já veio lotado. Mas eu tinha a passagem na mão e com meus
joelhos em frangalhos, atacados por uma velha artrose que os vem corroendo
desde a juventude, aceitei constrangido que a moça se levantasse para ceder-me
o meu lugar. (Em outras épocas isto seria um acinte.)
A
passageira da poltrona em frente à minha, mais próxima à janela, entabulou uma
conversa com sua amiga que estava na mesma fileira, mas na janela oposta, do
outro lado do corredor. As duas pessoas que serviam de anteparo para aquele diálogo
tão animado reclinaram as poltronas para facilitar o “olho no olho” das duas e
não levar algum perdigoto fortuito em suas ventas.
—
O tio Nerso morreu!
—
Ele tava doente?
—
Não. É que dentro da cabeça da gente tem uma cuinha com um líquido e quando
aquilo entorna dá o tar do derrame.
—
Ah, é? Interessante. Ele tava muito véi?
—
Não, sô, rapava os 80.
Aquilo
foi me deixando aflito. Só uma pessoa estava desconfortável: eu. Então, quem
estava fora de lugar era eu, com meus resquícios de burguês individualista e
egoísta. Se quisesse fazer uma boa
viagem teria que mudar o pensamento. Assim o fiz e passei a admirar aquela
gente modesta com sua maneira simples de viver e conviver com o próximo.
A
situação em que me encontro, morando retirado da cidade, dentro de um espaço de
cinco mil metros quadrados, tornou-me uma pessoa isolada, circunspecta e
reflexiva. Isto é bom para a alma, mas não é bom para a vida prática, pois ao
nos isolarmos, tornamo-nos pessoas desatualizadas e inseguras.
Imaginei
que pegaria um
coletivo dos meus
tempos, isto
é, aquelas jardineiras pachorrentas, que
já no pé
da subida obrigavam o motorista cambiar as marchas até chegar à segunda e muitas vezes
à primeira, gerando a sensação de que o motor explodiria,
mandando pelos ares
parafusos, porcas
e virabrequins. Ledo engano. O ônibus deslizava pelo asfalto na mesma velocidade, para subir e para
descer, sem
se dar conta do grau de aclive
das longas subidas. Coisas
da tecnologia evolutiva
dos motores do ciclo
Otto. Senti firmeza. Uma boa surpresa. Uma viagem
muito agradável.
Em Belo Horizonte,
minha querida filha Lia me esperava em frente ao BH Shopping. Ótimo. Como
acontece sempre quando nos encontramos, umas cervejinhas na conversa e vãs
filosofias até meia noite. Teríamos que partir cedo para Macaé, onde meus
primos e família nos aguardavam. Levantamos cedinho, e, após um bom banho,
pusemo-nos na estrada. Manhã chuvosa, tempo fresco, céu plúmbeo. Ideal para
viajar. Lia conduzia o carro calmamente e fomos papeando tanto que esquecemos
de entrar em Macaé no lugar próprio e só o fizemos após rodarmos 70 km a mais. A bem da
verdade não existe nenhuma sinalização indicando o acesso a Macaé. Um
verdadeiro absurdo. Consigno meu protesto. Amélia deve alertar o prefeito para
melhorar a sinalização daquele trevo mal situado logo após uma curva. Isto é
apenas detalhe. O importante estava para acontecer: o reencontro com pessoas
tão queridas.
Infelizmente, são
momentos raros
em nossas vidas
efêmeras. Amélia havia anotado seu endereço e pelo celular da Lia
nos comunicamos. Estávamos exatamente em sua porta. Devido ao erro em nossa entrada na cidade,
não pudemos ser
recepcionados pela turma
Lysis, Cenira, Lysia, Roberto, Alfredo, Tales
e Túlio, no trevo próximo
à casa. Foi uma pena,
mas em
seguida estávamos todos
juntos e aninhados em
torno de uma farta
mesa. Adrenalina
nas alturas, coração
apertado, olhos
marejados, coriza provocada pelas lágrimas silenciosas, desviadas para
o duto nasal.
Pura emoção.
Estava diante de pessoas
tão queridas e que
o destino me
empurrou para distante
delas. José Geraldo com quem convivi na minha
infância e juventude
no velho sobrado do Largo
da Sé, na casa
da Dindinha. Lysis, o neto mais velho dos Barroso, por
quem nutro um
imenso carinho
e amizade desde
1951, quando ele foi a Belém, acompanhado de seu
irmão Lúcio. Naquela época
eu ainda
andava de calças curtas. Estávamos ali três galhos grisalhos remanescentes
da frondosa árvore
genealógica dos Barroso. Hoje já se
tornaram troncos de novas
árvores que
vicejaram e produziram lindos ramos e certamente
se tornarão caules de outras tão viçosas quanto
as nossas. Quantas recordações! No aconchego
daquele verdadeiro lar, sentamo-nos em
volta da mesa
e nos deliciamos com
os pratos da Amélia e Socorro. Verdadeiras delícias.
Arroz com
camarões, moquecas
e as sobremesas supimpas
de graviolas, muruci e torta de bananas.
Horas de alegrias
intermináveis, regadas a cerveja gelada.
Barrosão, preocupado em não deixar faltar
nada, me
fez beber muita
cerveja.
A
tristeza passou longe dali. Aliás, os Barroso têm a característica de não se
lastimarem, pelo contrário, fazem da adversidade motivo para galhofa. Todos já
com suas mazelas pelo avançado da idade, vivendo sem se lamentar, dão boas e
sonoras gargalhadas.
À
noite, fomos prestigiar a apresentação
do Barrosão no karaoquê, incentivado por
ele para cantores anônimos.
Atacou de Índia, do Cascatinha e Inhana,
e finalizou com uma bela música
do Dick Farney que, em
sua voz,
ficou muito bonita.
Aplausos!
Dali,
fomos arrematar uns chopes no “Marisco”. Sim, porque segundo minha simpática e
querida comadre Cenira, “festa sem chope não é festa”.
Na
comemoração dos 60 anos do Lysis, após tomarmos quase a Escócia toda de whisky,
quando saímos, ela disse:
—
Compadre, festa sem chope não é festa.
Sentamo-nos em uma pizzaria, na
praça da Paz, e nos entupimos de chope. Conclusão: fiquei tão tonto, que
durante a madrugada, cismei que o gaveteiro do impecável guarda-roupa do hotel
Marina, na esquina de Bartolomeu Mitre com Delfim Moreira, no Leblon, o metro
quadrado mais caro do Brasil, era mictório e ali mesmo me aliviei. Que
vergonha! Levantei aflito. Com todas as toalhas do apartamento, enxuguei o que
pude. Com a mala em punho, alegando uma emergência, fechei a conta e bati em
retirada acompanhado de um medo enorme de perceberem aquele acidental
despropósito. Coisas da minha comadre.
No
Marisco não foi diferente. Nos
levantamos após os garçons
colocarem as cadeiras sobre as mesas
e apagarem as luzes. Ainda nos
desejaram “Boa noite”. Imagino.
Na
manhã seguinte, juntaram-se a nós meu amigo Carlos Alberto e Ana Lúcia, sua
esposa. Nova emoção. Invadimos a acolhedora casa da Amélia e Alfredo, casal
singular. Simpatia e carinho. Emocionante.
Eu
e Lia já havíamos desalojado seus “pequerruchos”, Tales e Túlio, “meu irmão”,
ao dormirmos em suas camas, e agora, às
dez horas da manhã, nos apossamos da sua cozinha e de seu whisky. Tomei uma
talagada para dar trote ao coração descompassado, no que fui acompanhado pelo
Lysis e Carlos. Em poucos minutos de batalha, o Royal Red Lable havia sucumbido, expondo seu fundo seco.
Segundo o Geo:
—
Só tem “rebocador”! – alusão ao preparo físico da encanecida “rapaziada”.
Daí em diante, o que se viu foi a
repetição do dia anterior: comer, beber e gargalhar. Após horas de trabalho em
volta da mesa, Ana Lúcia, preocupada com o Carlos, alertou-o que teriam que ir
embora. Naquelas alturas, a qualquer distância do bafômetro, ele já estaria em cana. Ainda mais
quando Amélia colocou um teclado musical à sua frente, o homem virou Jobim
Brasileiro e quando Cenira recitou o poema do Vinícius, não nos contivemos.
Choramos lágrimas de esguicho.
Carlos,
o recalcitrante insistia em ir embora, tonto. Já o conhecia. É o amigo mais
antigo que tenho. Amélia, que pensa em tudo, tratou de colocar sua camioneta
atrás do jipe dele e fechar a garagem.
—
Vou embora.
—
Pois vá. Você está com a chave do carro?
—
Estou.
—
Pois estou com as chaves da garagem, retruquei.
Assunto
encerrado. Barrosão com seu jeito, após algumas considerações maçônicas,
colocou o rapaz em decúbito dorsal na sua confortável cama. Todos exaustos.
Dia seguinte, “dia de branco”.
Levantamos cedo e já encontrei Amélia e Alfredo, prontos para a luta,
despachando o Tales para escola.
Para
toda chegada há sempre uma partida. Macaé me perdoe, voltarei para admirá-la.
Desta vez, os olhos do meu coração estavam voltados exclusivamente para meus
amigos e familiares.
Amamos todos vocês: José Geraldo, Socorro, Amélia, Alfredo e filhos;
Geo, esposa e filhos; Lysis e Cenira; Roberto e Lisia; Carlos Alberto e Ana
Lúcia.
Tenho
certeza de que
as lembranças desse final
de semana permanecerão indeléveis em nossos corações,
para sempre.
Desculpem
o transtorno.
Até
breve.
Aceitem nosso
carinho e admiração,
Pedro e Lia.
MAMÃE
A
natureza, após
presentear sua
obra prima,
o homem, com
todas as suas maravilhas,
ainda assim
achou sua criação
incompleta. Decidiu, então, dar-lhe um
presente que
o emocionasse, que o embevecesse de ternura, que lhe despertasse o amor.
Com toda
sua sabedoria, colocou o homem dentro
das entranhas de uma mulher para que ali fosse plantado, e para
que ali germinasse, paralela
à criação de um
ser humano, uma relação
de profundo afeto
e carinho entre
duas pessoas. Inicialmente,
alimentado via cordão
umbilical, posteriormente com leite, o soro
da vida, por meio dos seios desse anjo, que
se convencionou chamar de mãe.
A
sábia natureza não discriminou, e estabeleceu: todo ser humano, para existir,
terá que ter mãe. Negros, brancos, amarelos, pobres, ricos e miseráveis têm
direito à mãe, um tesouro natural e uma generosa oferenda da natureza.
Também
tive a minha. Hoje são somente lembranças que guardo na minha memória já
enfumaçada daquela que me embalou e no seu regaço me protegeu do frio.
Ensinou-me os primeiros passos. Preocupou-se em demasia com alguma febre
corriqueira, perdeu noites de sono ao me esperar voltar da boemia altas horas
da noite a fim de me defender com sua benção e eu, abençoado, dormir em paz. Esse era o ritual
de todas as noites. Mãe de uma prole de cinco rapazes, só dormia ao abençoar o
último a chegar. Não porque era a minha mãe. É o estigma de todas as mães.
Lembro-me
de um dia infeliz em que a fiz chorar por uma discussão banal de adolescente.
Imediatamente lhe pedi perdão, porém me ufano das infinitas vezes em que lhe
provoquei aquele sorriso terno que só as mães possuem.
Não
a tenho mais. Entre as perdas, feridas e cicatrizes que arrasto pela vida, ela
é, sem dúvida, a mais sentida. Ainda a tenho na minha retina, às vezes no
fogão, outras no ferro de engomar ou à frente de seu cavalete de pintura na
sala do casarão em que morávamos, na tradicional cadeira de balanço, traçando
em sua tela o que somente sua ótica de artista percebia e, aos poucos, com as
suas pinceladas, ia dando vida e movimento, aos detalhes do velho cais do
Ver-o-Peso, em Belém do Pará.
De
herança, guardo com todo carinho, emoldurada na minha sala de jantar, uma
dessas telas. Uma pequena lembrança material que vi sendo produzida. Ainda ouço
sua ordem:
—
Filho, compre uma bisnaga de tinta verde da marca Le Franc.
A
imagem esmaecida de minha mãe me acompanha, numa visão de um anjo entre nuvens.
Infelizmente, não a tenho mais. A última imagem que guardo é da figura serena
de seu rosto, rodeado de flores e seu corpo inerte dentro de uma urna funerária
com destino à sua última morada. Para toda chegada haverá sempre uma partida.
Esse desenlace ocorreu numa certa Quinta-Feira Santa! Que ironia! Se eu
soubesse que ao morrer voltaria à sua companhia, certamente anteciparia minha
morte.
MÃE
Já não te tenho mais.
Órfão, sinto-me desprotegido.
Diferente do tempo em que existias.
Eu nada temia.
Não havia perigo nem adversidade que eu não
enfrentasse,
às vezes de forma inconseqüente.
No meu mundo só vida. Morte era coisa dos
outros.
Sabia que ao voltar
para casa, tinha a me esperar a benção e a doçura do meu anjo maternal que
apagava todas as imagens ruins, dos fracassos, das desordens e das orgias
trazidas da rua.
Lembro-me bem do
dia em que deixei minha casa rumo ao Rio de Janeiro, onde disputaria um
campeonato brasileiro de remo.
Minha
demora seria efêmera. Apenas 15 dias.
O coração materno
não se engana. Da forma que me abraçou, comovida entre sentidas lágrimas e
abafados soluços, instintivamente sentia que aquilo era um adeus.
E eu, ainda
inocente, não me dei conta daquele momento.
Era
realmente uma despedida.
Movido pelo ímpeto
da juventude não percebi que deixava para trás, definitivamente, minha querida
mãe.
Até hoje seus
soluços ecoam dentro da minha alma vazia do seu carinho.
Várias
vezes voltei para visitá-la, e ela dizia:
– Voltou a
alegria da minha casa!
Ingênuo,
também não percebia o bem que lhe fazia.
Se tivesse
uma chance hoje, mudaria de atitude.
Deixaria que suas
mãos me afagassem e dormiria junto com ela o sono eterno.
MÃE INÊS
Esse
era o nome da velha mucama que ajudara a criar minha mãe e seus irmãos e também
ajudou a criar a minha geração: eu e mais quatro irmãos. Todos homens.
Mãe
Inês, essa angelical criatura, faz parte das doces lembranças da minha distante
infância, lá pelas bandas de Belém do Pará.
Sua
imagem permanece indelével na minha retina. Negra centenária, pernas arqueadas,
baixinha, com a carapinha esbranquiçada, voz mansa e pausada, recebia de todos
nós de casa, o respeito e o carinho dedicados às pessoas mais caras. Todos lhe
tomavam benção, inclusive minha mãe. Um costume respeitoso que hoje está em desuso.
Oriunda
de escravos — foi escrava de meu avô — quanto sofrimento deveria carregar
naquele generoso coração. Seus ancestrais? Quem seriam? Qual deles teria
resistido ao banzo e gerado aquela criatura maravilhosa.
Morava
conosco. Tinha seu aposento privado dentro do sobrado. Casarão antigo no Largo
da Sé de propriedade da família Barroso, à qual pertencemos.
Quando
me cansava das traquinices de criança, buscava o quartinho da “Mãe Inês”, nunca
sem antes pedir licença. Sentado no chão, ouvia suas histórias, enquanto ela
pitava seu cachimbo. Absorto, envolto nas fantasias produzidas pelos contos
daquela figura ímpar, a vida passava serena e eu não percebia que aquele era o
meu paraíso.
Ninguém
preparava aquelas comidas da culinária paraense com o paladar que tinham as da “Mãe
Inês”.
Nas
grandes festas no sobrado, ela era a mais solicitada. Com todo respeito, um a
um, tiravam-na para dançar. Com sua cabecinha encostada em meu peito, ali
naquele instante, hoje percebo que naquela hora, era ela quem sonhava. Quanto
carinho e quanta saudade da minha querida “Mãe Preta”.
Hoje
estou lembrando dela com mais intensidade devido ao Natal. Família grande,
cozinha imensa. “Mãe Inês”, com sua filha de ajudante, dava conta do recado.
Burlando a austeridade da mamãe, que não deixava nenhum de nós entrar na
cozinha, ela sempre conseguia nos adiantar um pedacinho de seus quitutes.
Vim
para o Rio com 19 anos.
Maravilhado com a vida
de jovem, naquela cidade
linda, sem
querer, fui me afastando um pouco de minhas origens,
muito embora,
não deixasse de ir
todo fim
de ano à minha
casa. No afã
de ser feliz, sem olhar para
trás, entristeci dois
corações que
amava tanto: mamãe
e “Mãe Inês”.
Numa
noite de Natal recebi a notícia de que ela havia descansado e suas últimas
palavras: “Adeus, menino Pedro”.
MAMÃE
Mais um ano sem ti.
No dia em que vim ao mundo, na minha
imaginação, transporto-me para aquele momento e vejo minha mãe querida.
Não era bela nem feia, nem rica nem pobre,
era apenas a minha mãe. A mais bela a mais rica e a mais santa. A melhor.
A nossa será sempre a melhor,
inigualável.
Posso ver sua serenidade e seu sorriso de
anjo, sentir sua emoção de ter um filho.
Um filho saudável. Apenas, um filho.
O que eu terei representado para ela naquele
momento? Sinto-me orgulhoso.
Qual dos dois era o mais feliz?
Por seu intermédio vi a luz pela
primeira vez.
Que emoção terei sentido?
Após o parto, me terão colocado deitado junto
ao seu coração para que me desse conta do compasso da vida? Certamente naquele
momento seu coração pulsava forte de emoção por ter seu rebento, ali, em
silêncio, num diálogo que somente os anjos escutaram.
Me vejo, mais tarde, com cabelos loiros
cacheados, os braços roliços estendidos em sua direção a lhe pedir colo, sugar
de seus seios o suco da vida para, em seguida, com a cabeça apoiada em se ombro,
dormir o sono dos inocentes.
Alguns poucos anos a frente, com medo do
escuro da noite, aproximava-me dela, que cochilava. Pedia-lhe que me deixasse
dormir agarrado à suas costas.
Muitas vezes me negava, obedecendo à
determinação de psicólogos, pedagogos e outros mais, que não conhecem nada de
coração de criança. Ou não tiveram mãe ou se esqueceram rapidamente,
concordando com seus compêndios.
Mas, mãe é sempre conivente com os filhos.
Havia noite que ela, obedecendo seu instinto, aquiescia e deixava que eu
desfrutasse daquele doce regalo. Agarrado a ela dormia ao som das trombetas dos
querubins e serafins. Aí eu achava até que existia Papai do Céu.
Nesse clima de paixão recíproca, fomos
vivendo a vida. Não percebia que envelhecíamos.
Um dia levaram-na de mim.
Por quê? Se eu a amava tanto! Não me
consultaram e nem a ela, muito menos. Só porque eu queria dormir agarrado a
ela? Só porque ela me amava? Eu não tinha fortuna, mas aquele era o meu
tesouro.
Por quê? Quantas perguntas sem
resposta.
Não é justo!
Não entendo porque temos que pagar um preço
tão alto por ter vindo ao mundo, se o que temos de mais precioso nos levam.
Mamãe, nunca te esqueci.
Nem que eu viva mil anos tua imagem jamais me
sairá da retina. Fui feliz e me sinto muito mais
feliz por ter te feito feliz.
Como Barrabás, aquele
trocado por
Cristo, o homem
que não
morria, apesar dos sofrimentos que lhe foram impostos, eu também viveria mais
100 anos miseráveis,
sofrendo todo tipo
de humilhação e covardia, a troco de apenas
poucos minutos
em teus
braços.
Não desisti. Ainda te encontrarei.
P.S.: Faleceu Dª Ione, moradora do Bonfim,
mãe de meus amigos Gil, Marcinho e Valdir Gomes e esposa do Seu Jair, a quem devo
inúmeros favores na construção de minha casa. É com profundo pesar que
apresento meus sentimentos à família.
TIA MARIA LUIZA
Envelhecemos
e, desta forma, nossas perdas se tornam mais próximas e mais freqüentes. Não
foi diferente com Tia Maria Luiza que somou mais um pedaço dilacerado em minha
alma.
Não fui surpreendido. As notícias
que recebia eram as de que vinha definhando, lentamente. Nós, sobreviventes,
ficamos com o consolo de quem passou pela vida e cumpriu suas tarefas com
dedicação. Em vida, abraçou uma
das profissões mais nobres, sem dúvida, que é a de ensinar as primeiras letras
e os primeiros passos às crianças e que, certamente, lhes servirão de alicerces
preciosos na jornada de suas vidas.
A
mim, pessoalmente, Tia Maria Luiza me relembra momentos felizes que
permanecerão indeléveis em minha memória, quando sua família ainda não tinha
sido atingida por nenhuma perda precoce, como a do Robson, Paulo Maurício e
Rominho, e a alegria ainda era plena.
Lembro-me
perfeitamente do casamento
da Conceição com o Zé
Lica e do tradicional lanche da tarde na presença do patriarca, seu
José Carmelo. Fica em mim a imagem de
candura de uma pessoa especial. Mas seu coração bondoso de pessoa temente a Deus
conspirava contra sua
saúde.
Resta-nos
o consolo de que, sem dúvida, hoje estará entre os bem-aventurados do reino de
Deus. A nós, míseros mortais, resta-nos a terrível sensação do nunca mais.
Muitas vezes temos um pequeno tesouro guardado, uma jóia ou um relicário, que
não usamos diariamente, mas sabemos que ele está ali guardado nos esperando.
Com a morte de um ser querido, a sensação de não o ter nem o ver nunca mais,
entristece-nos profundamente.
O
tempo, reparador de todas as mazelas do mundo, há de dar o consolo àqueles que
hoje choram sua falta.
Meu
abraço afetuoso pela irreparável perda. Sinto-me privilegiado de, em algum
tempo de minha vida, ter pertencido indiretamente, a uma família de pessoas tão
discretas e honradas — o que é uma raridade. Criadas com dificuldades, não se
corromperam com o fausto nem com o consumismo exagerado do mundo moderno.
Quero
deixar aqui meu abraço especial à Tia Beatriz que entre outras coisas boas,
serviu de inspiração para o nome de minha primeira neta. A vida que se renova!
MEMÓRIA
Memória
é essa nossa companheira inseparável, que nos segue ao longo da nossa
trajetória de vida. Às vezes amena, às vezes, severa, porém sempre melancólica e triste. À medida que o tempo passa, nosso arquivo aumenta.
Quando menino, nossa memória não ultrapassa os dez
anos, pouco diante do que ainda se tem
para viver. Mas na velhice é o contrário.
São dezenas
e dezenas de anos
acumulados, cheios de recordações e principalmente de saudades.
Infeliz do homem
sem memória.
Pensava
Marcel Proust:
—
O mundo é a idéia que cada qual tem dele, e, assim, a vida tem que ser vivida
através da memória, pois só no passado é que se encontra a essência da
personalidade. A memória funde a experiência do passado, que não está morto,
mas apenas em estado latente, e precisa ser reacordado, unindo-se ao presente.
Concordo
plenamente com Proust, e assim é que sempre estou fazendo incursões pelo
labirinto da minha memória em busca de respostas no passado para problemas do
presente. É intuitivo sempre buscarmos lembranças alegres, deixando as mais
tristes em um arquivo separado num cantinho do inconsciente. Todos têm uma
concepção do fato de envelhecer. Eu, particularmente, não tenho dúvida de que o
maior tesouro que levamos no decorrer dos anos é a nossa própria memória, que
alguns preferem chamar de experiência. Por esses meandros, voltei a 1959.
Dia de regata
na baía de Guajará, em Belém do Pará. Festa. A baía enfeitada de pequenas
embarcações engalanadas, decoradas com bandeiras multicores. Nas grandes
barcaças, vindas do Mississipi, propriedade da Port of Pará, impulsionadas por aquelas imensas rodas traseiras,
muito conhecidas nos filmes de New Orleans, se realizavam grandes bailes
durante a realização da regata. Cada clube alugava a sua. Tudo com muito
glamour, com direito ao suave balanço da maré e à brisa vinda do leste. Não
imaginava o que me esperava, naquela manhã festiva.
Minha guarnição de remo, composta
de quatro remadores e um timoneiro, correria dois páreos, sendo que num deles o
troféu vinha sendo disputado havia 19 anos. A posse definitiva só aconteceria
no caso de três vitórias consecutivas, que poderia acontecer naquela manhã. Eu
estreava na posição de voga, aquele que sob a orientação do timoneiro comanda o
ritmo das remadas. Nossa guarnição estava muito bem preparada. Nosso forte era
a remada picada, rápida. Alinhamos. A baía estava revolta. Foi dada a partida e
eu caí num ritmo lento de remada para reservar as forças para o final. Nosso
timoneiro não me orientou corretamente, porém quando percebi que não havia mais
ninguém atrás de nós, alterei o ritmo. Já era tarde. Perdemos o páreo. Foi a
maior decepção da minha vida no esporte. No páreo seguinte, com os mesmos
concorrentes, ganhamos com sobra. De um páreo para o outro já estava mais
maduro. Havia aprendido a lição que minha memória me ensinou.
O
esporte é, sem dúvida, um grande conselheiro. Com ele aprendemos a conviver
pacificamente com sucesso e derrota. Uma parte da minha personalidade e do meu
caráter foi fundida com a prática do esporte, que exigindo muito do físico não
abre espaço para outros caminhos que degeneram a juventude.
MINHA ALMA
CIGANA
Hoje
cedo, como é de rotina, abri minha caixa de correio no computador e lá estava aquela bela
mensagem de minha
amiga Terezinha: O Despertador
do Tempo. Além
das suas palavras
produzidas pelo seu
talento, a música de fundo, como se
fosse uma ária cigana,
me transportou imediatamente
aos meus nômades
ancestrais caucasianos.
Era uma grande trupe comandada pelo
intrépido Nicola. Convidados pelo general Giuseppe Garibaldi, migraram todos (de onde?) para a
Itália com o objetivo
de lutar pela
unificação do país. Depois, emigraram para o Brasil,
juntamente com
Garibaldi, e lutaram ao lado de Bento Gonçalves no Rio Grande do Sul (na Revolução
Farroupilha).
Nicola
Maria Parente era
um gênio. Amigo pessoal dos irmãos Lumière, já
dominava (quando?) a técnica
de fazer cinema
com iluminação
de carbureto. Assim é que, fazendo cinema itinerante
pelo interior
do Brasil, chegou até Belém
estabelecendo-se posteriormente em Abaetetuba, também no Pará. Essa foi a saga de meus ancestrais paternos.
Aquela
música me
comoveu e interpretei calmamente tudo aquilo que estava escrito
no texto. Uma linda
reflexão a respeito
do ser humano,
sofrendo os efeitos da marcha inexorável
do tempo. Pele
sem viço,
cabelos ralos
e quebradiços.
Olhos opacos,
envolto em
meus pensamentos,
através da lente
enfumaçada dos meus cansados olhos, ainda
pude ver a neblina se
dissipando e descobrindo o exuberante verde do vargedo que
nesta época do ano
salta aos olhos.
O contorno da serra
aos poucos se foi desenhando no céu ainda nublado. A brisa
fresca soprando suavemente do rumo nordeste
prenuncia bom tempo.
A relva tenra
deita-se aceitando sua carícia. A passarada se agita em busca de alimentos
para os filhotes
que piam incessantemente
nos ninhos.
Um belo espetáculo,
num grande cenário
desse maravilhoso teatro
da natureza.
Despertar
já é um
privilégio, dessa forma
então é uma sensação
indescritível. E pensar
que somos figurantes
desse grande espetáculo!
O
MISERÁVEL
Há
aproximadamente 40 anos, nasceu numa pequena cidade mais um brasileiro, oriundo
de família operária de fábrica de tecidos, batizado com o nome de João Diogo.
Como a maioria de seus conterrâneos, cursou o grupo escolar e parou. Ingressou
na fábrica, casou-se e teve um casal de filhos.
Para
alguns, constituir família é ser feliz e, no caso do João, foi exatamente o
contrário. Com pouco dinheiro, a mulher sempre exigindo além de sua capacidade,
as desavenças começaram. Certo dia foi ameaçado de traição pela própria mulher.
Achando que ela havia chegado ao máximo na sua humilhação, juntou alguns trapos
e saiu de casa. Aí começou sua desdita. Todos os dias ela ia até a porta da
fábrica esperar ele sair e ali, na frente de todos seus colegas, lhe dirigia os
piores impropérios e as piores ofensas.
João
deu para beber e perdeu o
emprego. Como
não se tratava de um
vadio, passou a fazer
bicos, ora como
chapa de caminhão,
ora como
jardineiro, servente,
pintor. Homem das dez
profissões e onze necessidades.
Até que um
dia foi trabalhar numa chácara.
Três vezes
por semana
tratava das coisas da propriedade, em
troca de um
casebre, onde
morava sozinho, na mais
cruel solidão,
recebendo 70 reais por mês. Sua ex-mulher, já
com um
amante dentro de sua ex-casa, levou-o às
barras da lei, exigindo pensão alimentícia
para os filhos.
Nada mais
justo, não fosse a condição
subumana em
que se encontrava. No dia da audiência, o inocente
João, desprovido de qualquer
malícia, achando que
o juiz iria entender
sua situação,
foi sozinho. Sem
qualquer companhia
ou orientação.
Ludibriado
pela desonesta
esperteza do advogado
da outra parte,
assinou um documento
em circunstâncias
absolutamente contrárias a ele, comprometendo-se a dar
um salário
mínimo de pensão
alimentícia para
sua família.
Como? De que
jeito? Se o que
ganhava não dava para
ele se manter. E, mesmo
assim, ele havia ido
à presença da autoridade
imbuído do espírito de dividir
sua miséria
por dois,
doando a metade dos 70 reais a título
de pensão alimentícia.
Passaram-se alguns meses, chegou uma intimação para que pagasse algo
em torno
de dois mil reais ou seria
recolhido à prisão. Aquele pobre
homem desesperou-se.
—
Não foi isso que assinei.
—
O acordo que o senhor assinou é esse. Vou dar-lhe três dias de prazo, disse-lhe
o oficial de Justiça.
Sem
ter a quem recorrer, sentindo que o único tesouro que tinha, sua própria
liberdade, estava ameaçado, tomou sua decisão. Com as mãos calejadas de
trabalhos árduos pela lida diária, com o dinheiro da passagem para São Paulo no
bolso, com o coração cheio de revolta, foi-se embora, misturar-se aos
descalços, desesperançados, descamisados, delinqüentes ou quem sabe bandidos
daquela metrópole.
Escapou
da cadeia da sua
cidade, mas
provavelmente não escapará da cadeia da cidade
grande, onde
essas pessoas inocentes
e sem maldade
são um
prato cheio
para aquelas polícias.
Parece
que desta feita a justiça não foi justa. Jogou um trabalhador miserável para a
marginalidade e para o crime, fruto da sentença de um leguleio.
Enquanto
isso, lá naquela cidade que o João escolheu para tentar a vida, bem pertinho
dele, se discute, se um poderoso magistrado, que roubou cento e tantos milhões
de reais de dinheiro público, é culpado ou inocente; se poderá ser julgado em
liberdade; e outros “ses” mais a seu favor.
Obs.: Os fatos aqui relatados e o personagem
são ficção do autor e caso se encaixem na vida íntima ou pública de qualquer
pessoa é mera coincidência.
MISÉRIA
Ouve-se muito falar em “perversa
concentração de renda”. De fato, em 504 anos de descobrimento (?) do Brasil, a
sociedade dominante conseguiu produzir mais de 55 milhões de brasileiros
miseráveis. Pessoas que, segundo a FAO, a Organização das Nações Unidas para a
Agricultura e Alimentação, sobrevivem com uma renda diária de dois reais.
As conseqüências são desastrosas: aumento
desmesurado da violência, pessoas disputando alimentos com ratos nos lixões,
prostituição infantil e as crianças, cada vez mais, sendo vítimas de
traficantes que as usam como “mulas”, graças à sua imputabilidade penal pela
menoridade.
Há de se refletir. Um pai de
família, após dias, buscando trabalho para ganhar algum dinheiro, chega em casa
exausto, encontra os filhos famintos, clamando por comida. Esse pai miserável,
que não teve oportunidade de se educar e nem certamente seus filhos, não terá
equilíbrio mental para suportar aquela cena. Nessas horas, me parece que o
instinto animal latente no ser humano se sobrepõe a
qualquer resquício de racionalidade e ele passa a lutar com todas as forças e
com todos os meios pela sobrevivência de seus filhotes. É uma lei da natureza.
Desesperado, sairá de casa e voltará à rua em busca de alimento. Aí os meios
justificarão o fim. Seja qual for o preço.
Por que essa barbárie com nossos
irmãos brasileiros? Devido à elevada carga tributária, o governo finge que
arrecada e o empresariado finge que paga. Aí se criou a cultura da sonegação –
até um senador da República, de terno branco, meia branca e alpercata, se não
me falha a memória, Ney Maranhão, afirmou outro dia diante das câmeras de
televisão, em alto e bom som: “Todo brasileiro sonega”.
Ora, aonde vai o dinheiro da
sonegação? Enriquecer (concentrar renda) as famílias dos empresários via caixa
dois. O dinheiro sonegado não pode aparecer. Então compra-se um carrinho aqui,
no nome de um filho; um sitiozinho ali, em nome da mulher; outro no nome da
amante, com direito a uma caminhonete importada; um jatinho; um iate; um
apartamento em Miami; uma conta CC5 (em que não há necessidade de se identificar o correntista?)
etc.
Dinheiro que, se arrecadado, deveria
ser revertido em benefício da população com serviços sociais, saúde,
transporte, educação, saneamento básico e segurança.
Por outro lado, a maioria das
pessoas não gosta de pagar impostos porque não recebe de volta do governo serviços
essenciais satisfatórios e também porque não há controle sobre aquilo que
arrecada, permitindo que se proliferem Nicolaus, Silverinhas etc.
Com uma carga tributária justa e
maior rigor na aplicação do dinheiro público, parece-me que o problema da má
distribuição de renda no Brasil estaria quase que totalmente resolvido. É o que
penso.
PEDRO SALOMÉ
Dentre
os bons e queridos
amigos que
fiz aqui em São João del-Rei, um, sem dúvida, mereceu destaque: meu
inesquecível amigo
Pedro, que a morte
sorrateiramente tirou de nosso convívio.
Está
se tornando rotina escrever
meu adeus
a amigos que
partem. Foi assim recentemente
com o Roberto Rivetti e desta feita o Pedro. As luzes
dos refletores de nossa
ribalta, aos poucos, vão se apagando e nosso
espetáculo da vida
vai chegando ao fim.
Bom
filho, bom
marido, bom
pai, bom
companheiro e bom
amigo. Acompanhei seu
início de carreira
como advogado
em
São João, enfrentando as dificuldades
próprias de um iniciante, porém mais tarde sobressaiu-se com
desenvoltura e de maneira
brilhante, tendo sido o responsável
pela criação
do Departamento Jurídico
da Docegeo, empresa subsidiária da Companhia
Vale do Rio Doce.
Naquela
época, o tradicional casarão
do Largo de São
Francisco era só
alegria. Principalmente
na época de Carnaval e Semana Santa. Família numerosa,
dona Aura tinha
sempre uma palavra
de carinho para
os amigos de seus
filhos que
ali freqüentavam. Que saudades!
Numa
daquelas noites, encontrei-me com o
Pedro no Kibon. Eram 23 horas. Como bom
mineiro, convidou-me com aquele tradicional:
—
Xará, vamos tomar
uma cerveja. Sem
exemplo?
Eu adorava sua
prosa mansa
e inteligente, acompanhada do cacoete
de, mansamente, alisar
uns fios da barba espessa. Tratava todas
as pessoas pelo
nome, mesmo
que fossem de uma classe social inferior. Memória
invejável de um cidadão exemplar. Pois bem, nossa conversa foi se prolongando, tendo início
num domingo de carnaval
e terminando às 15 horas da segunda feira
gorda sem que o assunto tivesse ainda acabado...
Quando
nos encontrávamos no Rio,
era só
alegria. Sempre acompanhado
pelo seu tio,
o espirituoso, boêmio
e engraçado Arthur Nogueira.
Formávamos uma roda grande
no Alcazar, tradicional bar carioca, ponto de encontro dos
são-joanenses e deixávamos o tempo passar sob o som das ondas
do mar de Copacabana arrebentando na praia.
A
esquina do Kibon sem
ele está mais
triste e sem
graça. Nós
sentiremos sempre a falta
de sua opinião
ponderada e suas
tiradas hilariantes.
Seu
corpo foi incinerado no Rio
de Janeiro, bem
ao seu estilo,
e as cinzas depositadas aqui em sua terra natal, onde descansará eternamente.
A mim e a todos
nós, seus
familiares e amigos,
restou a saudade.
Adeus, amigo,
descansa em
paz!
PESCARIA
Há
muitos anos, lá pelos idos de 1974, reuni meus amigos que formavam uma turma
grande e nos preparamos para passar um final de semana em um rancho, nas
margens da represa de Camargos.
Perdoando
a já fraca memória, alguns nomes ainda permanecem intactos na minha lembrança:
Salvador (Dodô), Arthur (Leréia), Robenson (Asa Quebrada), Marco Antônio
(Judas), Maurílio (Bolão), Márcio (Parruda), Juarez (Juju), Waldemar (Valente),
Benedito (Bené) e Dunga.
Nos
preparativos, o exagero de sempre. Excesso de tudo, principalmente, cerveja e
pinga.
A
turma era eclética nos hábitos, na instrução e na cultura e, aproveitando a
ocasião, há sempre alguém querendo se sobressair como mais esperto ou o mais
inteligente. Daquela feita não foi diferente. Surgiu logo um “exímio”
cozinheiro que se prontificou a preparar a comida para o resto da turma. O
rapaz era boêmio inveterado e surpreendeu-me a disposição, pois não sabia dos
seus dotes culinários. Conhecia sim sua admiração pelos cariocas com quem
aprendera a tocar cuíca, usar camisa listrada e sapato branco. Um grande amigo
que eu muito admirava. Lá pela décima dose de pinga, disparava a falar “uai”,
“uai”, “uai”... e a passar a mão na nuca arrumando os cabelos e, assim, um
ombro ficava mais alto que o outro, motivo pelo qual foi apelidado de “Asa
Quebrada” ou simplesmente “Asa”. Aquele era o sinal de que já estava no ponto
de bala. Já durante a vigem, por sugestão do próprio Asa, teríamos um frango
com ora-pro-nóbis e, como se sabe, o ora-pro-nóbis é um mato comum em Minas e
dá pendurado em cercas ou barrancos. Argumentei que não tínhamos a tal da erva.
—
Que é isso? Só se eu não fosse mineiro para conhecer ora-pro-nóbis! Deixa
comigo.
Chegamos
ao rancho e imediatamente o Asa foi procurar o ora-pro-nóbis nas cercanias.
Como
todo rancho, era uma casa modesta, de alvenaria, com uma pequena cozinha, sala,
banheiro e um amplo quarto para acomodar muita gente. Descarregamos as coisas e
cada um se ocupou de algum afazer. Uns foram pescar, outros foram beber, outros
conversar em volta da mesa, num animado jogo de truco e eis que chega nosso cozinheiro
parecendo um bicho folharal, tal a quantidade de ora-pro-nóbis que trazia.
Alguém duvidou do mato e tomou uma bronca do Asa.:
—
Que é isso cara? Então eu não conheço ora-pro-nóbis?
Todos
distraídos e o nosso cozinheiro na lida, já mandando seu show de “uais” em
todas as entonações e modulações. Temperou três frangos caipiras que compramos
no Mercado Municipal e começou a fazer o almoço. Numa panela de pedra grande,
derramou azeite extravirgem até cobrir o fundo. Juntou dois dentes de alho
amassados e uma cebola de cabeça picada, um pouco de tempero caseiro e
adicionou aos poucos os pedaços do frango. Pingando água, foi dourando a carne
em fogo alto. Quando os frangos estavam dourados, adicionou algumas batatas
descascadas e mais um pouco de água. No momento em que as batatas estavam
cozidas, com a panela destampada e o molho reduzido, nosso mestre cuca ia
deitar as folhas já lavadas do tal ora-pro-nóbis, quando o Dodô interrompeu,
ajeitando com o dedo indicador os grossos óculos de grau.
—
Peraí! Eu não sou coelho pra comer mato. O meu frango é sem esse tal de
não-sei-o-quê pronobilis!
Mais alguns foram na dele e
comeram só o frango com batatas e arroz branco.
De
fato estava muito gostoso e nosso cozinheiro recebeu os aplausos da galera que
optou pelo frango com batatas.
Em
seguida, o Asa adicionou as folhas do ora-pro-nóbis e pingou algumas gotas de
limão a fim de evitar a baba.
A
turma do baralho, que estava faminta, caiu matando no frango do Asa. Ato
contínuo, só se viu a rapaziada encostando os pratos — aqueles menos íntimos —
e outros cuspindo fora devido ao paladar amargoso produzido pela tal erva, que
de ora-pro-nóbis não tinha nada.
Nosso
Asa, coitado, de cozinha até que entendia, mas de botânica mineira, estava
completamente por fora. Quem se deu bem foi o cachorro do caseiro.
PORQUE ME
UFANO DO MEU
PAÍS
Está
arraigada em nossa
cultura a mania
de exaltar o que
é estrangeiro em
detrimento, muitas vezes,
de produtos de melhor
qualidade feitos
aqui no Brasil. Se você
vai a uma loja comprar
alguma coisa, logo
oferece o atendente:
—
Este aqui
é importado — querendo dizer com
isso que
se trata de mercadoria
melhor do que
a nossa.
Isso
é uma mentira deslavada.
O Brasil é líder em
várias coisas, inclusive
um dos maiores
exportadores de alimentos
do mundo. Não se deixem levar
pelo pessimismo
leviano transmitido por
Miriam Leitão e Alexandre Garcia nos jornais
televisivos da Globo que só sabem exaltar o crescimento
da China em 10% e de outras ditaduras que
exploram o ser humano
em regime de
escravidão, pagando-lhes salários
aviltantes. No caso da China, explora-se
a mão-de-obra de presos e encarcerados, principalmente no ramo
têxtil, a ponto de as costureiras trabalharem a bordo de navios, costurando até
aportarem no destino da encomenda, em condições
subumanas. Não sei nem
se recebem salários pelo
trabalho.
Aí, desembarca aquela avalanche de produtos
de péssima qualidade
com preços
irrisórios, prejudicando trabalhadores e empresários
que pagam aqui impostos
de toda natureza.
Recebi
uma mensagem de um
amigo, via internet
e como condiz com
aquilo que
penso, peço licença
para retransmiti-la.
“Podemos citar
que o Brasil é:
1.
O único país
do mundo onde
se pode abastecer simultaneamente um carro com álcool, gasolina e gás.
Tudo isso,
com tecnologia
nacional;
2.
O primeiro país
do mundo a desenvolver
o biodiesel à base de mamona. Novamente
tecnologia nacional
que será a redenção
do Nordeste, pois
a mamona é praga
por lá
e a Petrobrás já está começando desenvolver o sistema
produtivo;
3.
Onde estão as mais modernas fábricas de produção de
automóvel;
4.
O único país do mundo a deter, via Petrobras, a tecnologia completa
de produção de petróleo em águas
profundas;
5.
Onde as empresas produtoras de aço estão
com sua capacidade
máxima instalada;
6.
Exportador de aviões (Embraer) para os Estados
Unidos, que se renderam à qualidade das nossas
averonaves e vão usá-las para treinamento de sua
força aeronáutica; (fonte: Antropos Consulting)
7.
Exemplo mundial no combate à Aids e outras doenças sexualmente
transmissíveis;
8.
É o único país
do Hemisfério Sul que está participando
do Projeto Genoma;
9.
Solidário, pois numa pesquisa envolvendo
50 cidades de diversos
países, o Rio de Janeiro,
sempre lembrado pela violência, ficou com o primeiro lugar em solidariedade;
10.
Exemplo de eficiência de sistema eleitoral, com votação informatizada em todas
as cidades e apuração total em tempo recorde. Um sistema que impressionou até
os Estados Unidos, onde a apuração dos
votos teve que ser
refeita, várias vezes, atrasando o resultado e colocando em xeque
a credibilidade do processo;
11.
Um país em
desenvolvimento e, mesmo assim, os internautas
brasileiros representam uma fatia de 40%
do mercado (consumidor?) na América Latina.
12.
Sede de 14 fábricas de veículos e tem outras 4 se instalando, enquanto alguns países
vizinhos não
têm nenhuma;
13.
Um país em que 97,3% das crianças e
adolescentes, entre 7 a 14 anos,
estão na escola;
14.
O segundo maior mercado de telefones celulares do mundo,
com 650 mil novas
habilitações a cada
mês;
15.
O quinto maior país do mundo em número de linhas de telefone fixo instaladas;
16.
Entre os países em desenvolvimento, o que tem o maior número de empresas
nacionais com certificado de qualidade ISO 9000 (6.890). No México, são apenas
300 empresas e, na Argentina, 265;
17.
É o segundo maior
mercado de jatos
e helicópteros executivos do mundo.
Por que esse
vício de só
falar mal
do Brasil? Porque não se orgulhar de dizer que:
1.
O mercado editorial
de livros é maior que o da Itália, com mais de 50 mil títulos novos a cada
ano?
2.
O Brasil tem o mais moderno
sistema bancário
do planeta?
3.
As agências de publicidade
ganham os melhores e maiores prêmios mundiais?
4.
O Brasil é o país mais
empreendedor do mundo
e que mais de 70% dos brasileiros, pobres
e ricos, dedicam considerável
parte de seu tempo
em trabalhos
voluntários?
5.
O Brasil é hoje a terceira
maior democracia
do mundo?
6.
Apesar de todas as mazelas, o Congresso está punindo seus
próprios membros, o que raramente ocorre em
outros países
ditos civilizados?
7.
O povo brasileiro
é um povo
hospitaleiro, que
se esforça para falar a
língua dos turistas, gesticula e não mede esforços para atendê-los bem?
8.
Seu povo faz piada
da própria desgraça e enfrenta os desgostos sambando?
É, o Brasil é um país abençoado de fato! Bendito este
povo que possui a magia
de unir todas as raças, de todos
os credos. Bendito este povo que sabe entender todos os sotaques.
Bendito este povo que
oferece todos os tipos
de climas para
contentar toda gente.
Bendita seja querida
pátria chamada
Brasil!
Divulgue esta mensagem para o máximo de pessoas
que puder, inclusive para as nossas crianças. Com
essa atitude, talvez
não consigamos mudar o modo de pensar de todo brasileiro, mas vamos
despertar, pelo menos por alguns momentos, a reflexão e, quem sabe, um pouco do orgulho
de ser brasileiro!
P.S.: 1. E os nossos
relógios digitais.
Até hoje!
O Cidinho sairá da Prefeitura e os relógios não
voltarão aos seus lugares.
2. Os moradores da Colônia
do Giarola pedem uma placa indicativa, ali
próximo às mangueiras, na avenida 31 de Março.
O PRESERVACIONISTA
No
dia cinco de junho, comemorando o Dia do Meio-Ambiente, FHC, entre sorrisos e
sem nenhuma preocupação, pois a CPI da corrupção já fora sepultada e o país
encontra-se às “mil maravilhas”, discursou para uma platéia de governadores e
políticos, que ali estavam com o objetivo de serem beneficiados com uma parcela
de novo financiamento do BID para despoluição de rios e proteção do
meio-ambiente. A fim de disfarçar um pouco a calamidade da falta de energia
elétrica pela qual ele, irresponsavelmente, é o culpado, dirigiu sua
preocupação para a falta de água doce que se abaterá sobre o mundo.
Os
mais otimistas dizem que o estoque de água doce do planeta, terminará dentro de
40 anos. Pois bem, para não dizer que tenho má vontade para com o governo, vou
fazer uma sugestão.
Nosso
conceito de higiene tem que ser revisto. Vamos considerar um exemplo hipotético
a título de ilustração. Sabe-se que cada descarga em um vaso sanitário consome,
em média, 20 litro
d’água. Se uma cidade como São João possui 25 mil casas e todas contam com as
condições mínimas de saneamento básico (água e esgoto) e considerando que essas
casas sejam habitadas por quatro pessoas (média das famílias brasileiras), se
cada uma dessas pessoas urinarem uma única vez durante a noite e derem descarga
no vaso sanitário, então, cada casa terá mandado pelo esgoto, só essa noite, 80 litros d’água doce e,
muitas vezes, tratada. Juntos, os moradores de São João terão jogado pelo
esgoto, numa única noite, dois milhões de litros de água para limpar a casa de
alguns mililitros de dejeto.
Mas,
se cada pessoa usasse o seu velho e esquecido penico e pela manhã todas elas despejassem
o líquido no vaso e dessem uma só descarga, cada casa economizaria, somente
durante essa noite, 60
litros d’água. Juntando a economia de cada casa,
evitaríamos o despejo de um milhão e 500 mil litros de água no esgoto em apenas
uma noite. Em um mês, São João pouparia 45 milhões de litros e, em um ano,
seriam 540 milhões de litros d’água economizados.
Consideramos
aqui, apenas a parte noturna de pessoas normais, sem contar os grandes
consumidores de chope e cerveja.
O
Brasil está com uma população próxima de 172 milhões de habitantes. O mundo tem
seis bilhões de habitantes. É bem verdade que muitos não têm casa, muito menos
vaso sanitário. Mas poder-se-á fazer uma projeção proporcional. Vou deixar por
conta dos calculistas, pois matemática não é minha praia. Desta forma, tenho
certeza, que estarei contribuindo com FHC e com o futuro da humanidade, resgatando
a utilidade do velho penico com sua vocação preservacionista, já aqui apelidado
de o “Salvador da Pátria”.
Que
esta sugestão não sirva para que empresários inescrupulosos corram atrás do
Sebrae a fim de levantarem empréstimos com a finalidade de montar fábrica de
penicos com dinheiro público, pois penico é coisa rudimentar feita de barro. Na
falta, uma garrafa de plástico descartável faz a vez.
P.S.: 1. Meu amigo Cláudio Salomé, fique
de olho na sugestão, pois o problema está afeto à sua Secretaria de
Meio-Ambiente e na sua fazenda tem barro de boa qualidade, à vontade.
2.
A taxa de iluminação pública, na conta da Cemig,
acho que por ordem da Prefeitura, dobrou de preço e o serviço piorou. Estou
cansado de ser roubado. Qual foi o critério usado para que houvesse esse
aumento? Qual foi o índice utilizado para se atualizar a cobrança? Não se
explica nada. A população não tem direito a ficar sabendo de nada? A ditadura
deixou suas marcas e alguns seguidores.
3. Esclareço que não sou eu que estou promovendo esse tal “Apagão”. O cara
lá da corte de Brasília, tem o mesmo nome meu, porém a diferença é brutal em
quilos e em dólares.
Somos iguais apenas, na falta de cabelo.
EU TIRARIA – já contou boa parte
dessa história no capítulo DESPERDÍCIO
QUEBRA-MOLAS
Foram
instalados, recentemente, no trajeto que
faço da Colônia do Marçal para
o Centro da cidade, mais
cinco quebra-molas:
três na avenida Leite
de Castro e dois na rua Luiz Giarola. No percurso para o Centro,
enfrento nada mais
nada menos,
do que doze quebra-molas.
Considerando que minha
mulher vai trabalhar
de manhã cedo,
volta para almoçar, volta novamente para trabalhar e retorna à
noite, e no final
do expediente, entrega-me o carro para que eu vá à rádio
fazer meu programa noturno
e retorne para dormir, nosso modesto veículo
transpôs em um
único dia,
72 quebra-molas. Em
um mês
de 20 dias úteis, ele
terá transposto 1.540 quebra-molas e no final do ano
18.480 quebra molas.
Dessa forma, creio que
os moradores da Colônia do Marçal estão
sendo penalizados. Por que só a Colônia? Na Oito
de Dezembro não
há quebra- molas. Quantos
já morreram ali?
A
maneira pela qual os quebra-molas são construídos está totalmente fora das
normas da lei, que determina três metros de largura e na parte mais alta 15 centímetros. Isso
quer dizer que aquele que se sentir prejudicado tem todo direito de recorrer à
Justiça para reparação de eventual dano material ao seu veículo.
Se
o quebra-molas é educativo e preserva a vida dos transeuntes, não discuto,
porém, às vezes é inócuo, só atuando nos motoristas prudentes. Os
irresponsáveis e imprudentes não são detidos por nada.
Hoje
existem barreiras inteligentes, como os redutores eletrônicos de velocidade que
não causam nenhum tipo de dano aos veículos. É claro que é mais barato deitar
esses postes no meio da via pública, pois não há dinheiro nem para restabelecer
o funcionamento dos relógios digitais que indicavam também a temperatura e que
hoje representam verdadeiros monumentos ao desleixo na nossa cidade.
Colocar
quebra-molas numa rua esburacada é no mínimo um deboche. Não sei de quem foi a
brilhante idéia de instalar um posto da Polícia Rodoviária em frente ao
aeroporto depois de um trevo. E ainda ridicularizam nossos irmãos lusitanos.
Ali só trafegam veículos regulares, o tráfego proscrito foi jogado para a Rua
Luiz Giarola, via trevo das Águas Santas, e desta forma, até carretas passaram
a transitar por ali com cargas duvidosas. Claro que os infratores da lei, optam
por transitar por ali, visto que não estão sujeitos a nenhum tipo de
fiscalização.
Conclusão:
o asfalto do Nivaldo que era para durar 15 anos, segundo ele, virou uma cratera
só. Não há automóvel que resista a esse tipo de situação. A solução é usar o
transporte coletivo e ficar à mercê de seus horários.
A
pista até o aeroporto está sendo duplicada. Vai ficar muito bonita. Mas, qual
será o objetivo? Fluir o tráfego com maior vazão? Seria uma incoerência
enchê-lo de quebra-molas.
Deixem
as mangueiras onde estão. Servirão como redutoras de velocidade, pois debaixo
delas tem um quebra-molas e ainda enfeitarão a entrada de nossa cidade para
quem vem das bandas de Belo Horizonte.
O
“Brasileiro profissão esperança” está encerrando seu ciclo. Nunca vi tanta
gente andando de cabeça baixa, falando sozinho e reclamando da vida. Sinal dos
tempos.
P.S.: Continuo lulista.
REFLEXÕES
Cheguei
ao topo da montanha
da minha jornada
pela vida.
Inúmeras batalhas, muitas derrotas e parcas
vitórias. Nessa caminhada,
muitas desilusões foram forjando uma carapaça
em torno
de mim de modo
a tornar-me um incrédulo
habitante do planeta
Terra.
As
alegrias, gargalhadas,
grandes mesas e inúmeros companheiros de farra foram escasseando por motivos vários: uns perderam a saúde,
alguns seu patrimônio
e outros a vida.
Para
que nascemos, se no dia
em que
nascemos começamos a morrer? Aniversário de nascimento não
deveria ser dia
de festa, pois
significa que é mais
um ano
próximo à morte.
Parece
mesmo que
somos um prêmio
de um ato
de amor e só.
Viemos para dar alegria aos nossos
pais. Os mais
felizes premiados com
filhos saudáveis,
outros castigados (não entendo porquê) com filhos doentes.
Os
doentes sucumbirão, dependendo da sorte, deixarão de sofrer.
Os sadios sofrerão mais
ainda. Amores, desamores, incertezas, desemprego, fome,
miséria, injustiça.
Luta, somente luta. E como prêmio?
A morte.
Pelo
caminho vamos deixando nossos pedaços
dilacerados e arrancados de nós, avós, pais, irmãos e amigos.
Quando
atingimos essa idade provecta, os obstáculos e as dificuldades
aumentam - no meu caso, devido à artrose que
me corrói os dois
joelhos, uma distância
de cinco metros parece tornar-se um obstáculo de 50. Ficamos vulneráveis
a qualquer tipo
de ataque, seja pelas doenças
ou por
pivetes e malfeitores.
Raros
são os afagos,
muitas são as ordens.
Alguns
nos olham como
se fôssemos ídolos de bronze, indestrutíveis,
imbatíveis, porém
esquecem que somos de carne e osso e
o que é mais
importante, emoção e coração.
Tornei-me
reflexivo, calado,
circunspeto e meditativo. Aprendi com os
anos a aceitar
muitas coisas que
não aceitaria em
outras ocasiões quando
tinha a meu
favor o ímpeto
da juventude.
Não
cheguei ainda a ponto
de virar o outro
lado da face
para receber outra bofetada como ensinou o Cristo.
Não sou perfeito, pelo
contrário, um cofre
de defeitos.
Hoje
tenho mais tempo
para contemplar a natureza a quem
considero a mãe de todas as coisas e meu
corpo inerte
certamente contribuirá para
adubar as árvores
que nela florescem e frutificam.
Olhando
as pessoas caminharem na avenida Leite
de Castro, imaginei: como
seria nossa cidade
se fosse habitada hoje somente
por pessoas
nascidas até
1905? A cidade seria um imenso deserto. Não
restaria ninguém, talvez
pouquíssimos anciãos centenários. E todos
nós, com
toda certeza,
um dia
faremos parte desse imenso
ossário. Detesto a morte. Amo
a vida.
ANTIGAMENTE
Era
1967 quando aqui chegamos, eu, Raul e Giovani.
Os dois me convenceram a deixar o
meu querido Leblon, no Rio de Janeiro, onde morava, a duas quadras da praia.
Relutei muito em perder meu fim de semana, fazendo uma viagem a Minas Gerais,
precisamente a São João del-Rei.
Nosso objetivo era extração de
areia, na estrada
velha de Tiradentes, na Candonga, onde, segundo nosso historiador Fábio Guimarães, emboabas e mascates
se digladiaram numa terrível carnificina tingindo as águas
do rio
de vermelho, tal
a quantidade de sangue
derramado, advindo desse episódio o nome de Rio das Mortes. Na cachoeira
onde hoje ainda corre um filete de água,
naquela época, na temporada
das chuvas, formava-se uma forte queda-d’água.
Viajamos
à noite, após o encerramento do expediente de nossas repartições. Numa velha
Rural Willys, vinham conosco o nosso inesquecível Arthur Leréia, que voltava
definitivamente do Rio, e o Márcio Cueca.
A
comissão de recepção formada pelos boêmios mais insones, na esquina do Kibon,
não era das mais recomendáveis, pois entre outros existia um trio tétrico, de
arrepiar: Judas, Demônio e João Diabo. De atemorizar o mais destemido dos
valentes.
Um
seminarista que viajava de carona conosco, na hora de ser apresentado ao
Demônio, com ar de terror na face, pálido como uma cera, colocou os dedos
indicadores das mãos em cruz na direção do apresentado e, com passos para trás,
gritou desesperado:
—
Vade retro, Satanás! — e desapareceu em desabalada carreira pelo Beco do Agá.
Pedro
Salomé, Etel, Mafra e Natal também ficavam de plantão,
aguardando nossa chegada, que passou a ser rotina nas madrugadas
dos finais de semana.
Dali mesmo
emendávamos para nossa
farra.
No
areal, onde funcionaria nossa indústria de extração de quartizita, tinha um
pátio cimentado, onde passamos a produzir um racha da melhor qualidade, apesar
dos conhaques e cervejas ingeridos. Servia como desintoxicante.
No
final, um banho nas águas geladas daquela generosa cachoeira. Pronto. Estavam
repostas nossas energias, e se alguém estivesse embriagado, sarava na hora. Um
bom sono à tarde e à noite, bailes, serestas e bares. Que maravilha era a vida!
Tínhamos a nosso favor a juventude. Éramos superiores às intempéries.
Comercialmente,
no entanto, éramos um fiasco. Nossa indústria sucumbiu diante do nosso
empirismo e da nossa inexperiência.
São João era manchete nas revistas
de maior circulação
do país, devido
ao seu belíssimo carnaval,
incentivado pelo Jota
d’Angelo (CONFERIR
GRAFIA D’Angelo ou d’Angelo?), com sua
escola e seus
sambas fantásticos.
São João, apesar
do ar provincial, era
uma cidade progressista.
Nas duas fábricas, onde mais tarde fui trabalhar, havia 2.700 operários,
mais uns 1.500 da São
Joanense e mais os da Fábrica Dom Bosco. O Regimento
Tiradentes possuía outros tantos, a Rede Mineira outros mais. Onde
foram parar esses
postos de trabalho?
Será que foram para
Barbacena? Que hoje nos olha com superioridade e desdém? Ou
será o resultado da tal
cibernética?
Na
verdade, naquele período todo, somente duas novas fontes relevantes de empregos
apareceram aqui: a Bozel e a Funrei, mas isto é um outro capítulo.
Quero
dizer, continuando minha
história, que sou são-joanense por opção. Não se
escolhe lugar para nascer, mas para viver e morrer, sim. O título de cidadão
honorário, que muito me honra, me foi entregue em cerimônia na Prefeitura,
pelas mãos do nosso saudoso “Cumpadre Vieira” que, na época, ocupava uma
cadeira na Câmara da nossa cidade. Belenense de nascimento, são-joanense por opção.
No
Clever’s Bar, do José Carlos, eu olhava com admiração e respeito uma rodinha
que todas as manhãs se formava em volta de uma das mesas do bar, para tomar
cafezinho, naquele mesmo horário. Vinagre, Chiquito, Dr. Antônio Reis, Major
Alvim e outros. Na hora do acerto da conta, cada um tirava suas moedinhas do
bolso, na exata. Se algum dos participantes tentasse levar vantagem, havia um
pequeno mal-estar, tudo, porém, dentro da maior educação.
O
tempo passou. Hoje, de certa forma, o lugar deles está sendo ocupado pela minha
turma que envelheceu. Parabéns ao amigo Altamiro Braga e dr. Walter Baccarini
que permanecem fiéis nas suas cadeiras cativas da, hoje, Confeitaria da Vovó.
Sempre que posso sento-me com eles para dois dedinhos de boa prosa.
A
Cantina Calabresa vivia seus dias de glória. Seu Ítalo no balcão, dona Lina
comandando a cozinha, onde produzia jóias da culinária italiana, a ponto do
vice-cônsul da Itália, sr. Umberto Bucci me dizer que na própria Itália não se
comia um caneloni igual ao de dona Lina.
Aos
domingos, tradicional mocotó. Os homens esticavam o aperitivo, esperando pelo
resto da família, para que juntos, no almoço, saboreassem as delícias da
Cantina.
Era
comum, após a missa, ainda de calça curta, Rogério Medeiros Garcia de Lima,
hoje ilustre magistrado, primeiro lugar no concurso para juiz de direito,
atleticano saudável, neto do dr. Garcia, orgulho de nossa cidade, pelas mãos de
dona Laís, ir ao encontro do Tidinho, seu pai, que, com o bom humor que lhe é
próprio, divertia os comensais nas matutinas reuniões dominicais da Cantina.
Domingo na Cantina era uma verdadeira confraternização da sociedade
são-joanense. Todos se conheciam. Os ocupantes de todas as mesas conversavam
entre si como se formassem uma só família. Muito bom!
Obrigado
São João del-Rei, por me haver acolhido. Tudo de proveitoso que produzi na
vida, como meus filhos, meus amigos que amo e meu pequeno patrimônio, foram com
tua aquiescência generosa.
Breve,
mais uma dádiva para mim. Minha primeira neta vem aí. E dá-lhe Nara!
P.S.: Alguém pode me explicar por
que o ICMS sobre as contas de energia elétrica, em Minas Gerais, é de
30%, quando o normal seria 25%?
Era assim antes do Eduardo Azeredo ser governador. Dizem
que o aumento de cinco pontos percentuais foi para financiar a campanha dele à
reeleição. Será? E aquilo que era provisório, transformou-se em definitivo.
TRISTESSE
Estudo
nº 3, op. 10
F. Chopin
Numa
certa tarde plúmbea de São João del-Rei, há muitos anos, quando desci do
apartamento onde morava, em cima do Restaurante Benegas, ali nas proximidades
do antigo Banco de Crédito Real, fui presenteado com a delicadeza de acordes
primorosos de um piano bem tocado, reproduzido por um aparelho de som de
primeira qualidade. Fiquei extasiado. E como não podia ser diferente, movido
pela curiosidade, como se levitasse, cheguei até a loja “O Palácio da Música”.
Não
resisti, entrei e me deparei com uma loja muito bem equipada de aparelhos de
som da mais alta qualidade. Segundo meu amigo Camilo, um sonho de consumo para
nós míseros mortais que circulamos pelo universo dos assalariados.
Fui
recebido pelas simpáticas e eficientes recepcionistas da loja que imediatamente
me apresentaram o proprietário, hoje meu dileto amigo Sílvio Assis, uma pessoa
que conhecia profundamente o produto com o qual trabalhava além de possuir a
sensibilidade de descobrir de que o cliente gosta. Tornei-me seu amigo e
freqüentador assíduo daquele lugar. Qualquer
cidade se envaideceria de possuir uma loja daquele gabarito – e eu estava vindo
do Rio de Janeiro, a Meca da música, com centenas de lojas tradicionais, tais
como a Guitarra de Prata, na Rua da Carioca.
Sua
discoteca era uma das mais famosas de Minas e talvez do Brasil. Lá dávamo-nos
ao luxo de conversar com o célebre maestro Waldir Silva, na época vendedor de
discos da gravadora Odeon, se não me falha a memória. Era difícil a vez que ali
entrava e saía apenas com um LP. Sílvio, como profundo conhecedor, sempre tinha
a melhor oferta para cada gosto e lá comprei uma jóia musical do Pixinguinha,
que meu amigo Cezar (era
mesmo com z?) Faria, pai do Paulinho da Viola, autografou. Guardo o
disco como um tesouro.
Assim
foi que construí minha pequena discoteca. O melhor disco que tenho, foi
sugestão do Sílvio. Conhecedor do meu gosto por árias clássicas, apresentou-me
Óperas do maestro Waldo de los Rios, considerado maldito pelos eruditos por
acrescentar instrumentos musicais à sua orquestra que não constam das
orquestras tradicionais e por modificar o andamento da música clássica para música.
Assim é que até hoje quando quero
chorar de emoção – sim porque chora-se pelos mais diversos motivos, tristeza,
desilusão, raiva, e, no meu caso, por pura emoção – coloco meu velho vinil na “vitrola”
e ouço a execução da ária da ópera Nabucco: Va.
pensiero, de Verdi (conferir grafia, minúsculas e maiúsculas).
Porém,
na vida, nada é definitivo, e o progresso, avassalador, nos transforma em
pessoas saudosistas e melancólicas. Não existe mais o Palácio da Música. Em seu
lugar uma loja reluzente de telefonia celular, que na minha época, soava como
ficção científica.
Ai
de nós se não fosse dona Mazinha, da Cia. Telefônica Sanjoanense, que com
carinho e dedicação, na sua mesa telefônica, colocava as pessoas em contato,
umas com as outras e São João del-Rei com o mundo.
Recentemente,
passando pelo Quatro Cantos, novamente, de longe, ouvi um som semelhante àquele
que ouvira anos atrás na avenida. Não podia ser diferente. Vinha da Casa Assis,
do nosso inestimável Jofre, falecido recentemente e que era irmão do Silvio.
Não resisti, entrei, fui recebido por uma de suas tradicionais atendentes que
me indicou o Sílvio. Ali sentado ao balcão com seu jeitinho peculiar,
selecionando as músicas para o deleite dos transeuntes. Perguntei-lhe pela
majestosa discoteca do Palácio da Música. Apresentou-me o pouco que restava,
apenas uns cinco mil discos, sendo vendidos a preço de feira. Disse-me:
—
Aproveita que semana que vem vou fechar.
Saí
às pressas para não deixar transparecer minha desilusão.
Em casa, envolto nas minhas
recordações, coloquei na minha “vitrola”, numa execução sublime de Pedrinho Mattar,
a valsa Tristesse, de F. Chopin, belo
fundo musical para um epílogo melancólico de uma fase esplendorosa da minha
vida e da minha cidade querida.
P.S.: Nosso irreverente Du Ferreira nos
pregou uma peça.
Isso não se faz, ô Du! Que
sacanagem! Nos privar da tua alegria? Nunca mais vou andar num Mercedes Benz!
Descansa em paz. Viveste 100 anos
em 50.
UFANISMO
“Ó meu Brasil, tão grande e amado/É
meu país idolatrado.”
Naqueles saudosos tempos, quando se
nutria um grande sentimento de amor ao nosso país, o poeta, através dessa
estrofe do samba exaltação — gravado, se não me falha a memória, pelo grande
Francisco Alves, o Rei da Voz, exprimia todo sentimento do nosso povo.
Era o meu “Brasil Brasileiro”,
segundo Ary Barroso na Aquarela do Brasil.
Gente altiva, alegre e laboriosa. O
sentimento de pátria era muito mais aguçado. Incentivado nas escolas, nas
competições esportivas e nos desfiles do dia 7 de Setembro. Os símbolos
pátrios, respeitados e muitas das vezes, idolatrados. Que o digam nossos
gloriosos pracinhas do 11 RI Tiradentes ( sugiro: 11º.
- não é cardinal? - Regimento de Infantaria Tirandentes).
Nosso hino, quando antecedia
competições desportivas no Maracanã, era saudado com todo respeito pelos
torecedores, contritos, de pé e em silêncio (não
cantavam? Se não cantavam, acho que vale repetir: “...em silêncio, ninguém
cantava, por considerar desrespeitoso.” Era isso?). Coisa bonita!
Minha
geração ficou marcada pela derrota da
Seleção brasileira de futebol, na decisão
da Copa do Mundo
de 1950, em pleno
estádio do Maracanã,
para a Celeste Olímpica uruguaia. O que era apenas uma competição desportiva transformou-se num ultraje nacional.
E nós, até
hoje, nunca
engolimos aquele revés.
Restou-nos a imagem do heróico Obdulio Varela. (acho
que vale acrescentar quem é ele. Eu não sei, foi o goleiro da Seleção
brasileira que trabalhou como ninguém, fez defesas incríveis?)
Nosso país merecia respeito. O que
fizeram contigo Brasil?
Era comum,
ao lado de uma mansão de milionário, um casebre de gente pobre. Conviviam em
harmonia, ricos e pobres. Era também comum, o pobre ao lado prestar serviços ao
vizinho milionário e os filhos dos ricos jogavam peladas com os filhos dos
pobres. Nessa convivência, ou intercâmbio cultural, os pobres aprendiam as
manhas dos ricos e vice-versa.
Parece-me que foi um erro confinar a
pobreza em guetos como as favelas e inúmeras Cidades de Deus sem as mínimas
condições sanitárias e urbanas.
Hoje, um
terço da população de nosso país vive abaixo da linha de pobreza
estipulada pela FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e
Agricultura, isto é, pessoas que recebem menos de dois reais por dia. Verdadeiros
miseráveis. Nessa miséria, os cidadãos disputam com ratos, restos de comida nos
lixões.
Brasil, te
transformaram no país que detém a maior
e mais perversa
concentração de renda
do planeta. Que
vergonha!
Apesar da idade, ainda tenho
esperança.
Tu não tens culpa.
Ainda te amo!
UM SONHO
Despertei.
Dia lindo, prenúncio de outono, manhãs claras. O contorno da serra de São José
de Tiradentes contra o fundo azul de céu límpido é uma paisagem deslumbrante.
Ano passado ela não foi incendiada e, desta forma, agradece com um vergel ameno
e romântico, dando-nos a sensação de que realmente os homens que a depredam,
desta vez, se sensibilizaram. Debalde esse cenário maravilhoso, acordei triste,
reflexo de um sonho que acabara de ter.
Muito além das lembranças, o
sonho é, de fato, o que nos coloca de volta na ribalta
da vida. É quando, como expectadores, assistimos
ao nosso desempenho
nesse grande teatro.
É interessante você se ver, não
como em
um espelho diante
do qual você
faz a caricatura que
lhe convém. No sonho, você
não tem domínio
sobre suas
ações, ali
você pode ver suas virtudes e
defeitos sem
que possa alterá-los. Você
não tem domínio
sobre os cordéis que
controlam os bonifrates, como nos teatros de pastorinhas. Foi assim, então, que me vi naquele filme
passado não
sei onde, com
personagens e cenários
desconhecidos. Ali, com
a juventude a meu
favor, eu
corria, remava, nadava, namorava, chorava e cantava. Tempos pretéritos.
Em
certo momento, encontrava-me de mãos dadas com uma moça sem rosto. Luzes de
todos os matizes. A música dolente acrescentava um clima romântico e lascivo.
Nos outros rostos via claramente o excesso de batons e maquilagem naquelas
mulheres que rodopiavam com seus pares ao som de um tango de Gardel. Fumaça de cigarro impregnando o ambiente
dava o toque de volúpia
ao cabaré. Nas mesas,
garrafas de cervejas
e aqueles boêmios,
entre uma música
e outra, a dedicar
juras de amor
à sua parceira,
ou talvez,
um gigolô
tentando impressionar a moça
a fim de lhe
tomar seu dinheiro, produto de um trabalho muitas vezes asqueroso,
aceitando em sua
cama seres abjetos e mal cheirosos. O cabaré
fervilhava. Sorrisos falsos e almas
vazias. Muitos, exacerbados pelo álcool, faziam tipo machões e cafajestes.
Naquele cenário,
estava eu. Terno
branco, magro,
cabelo louro
e fino em
desalinho, úmido
de suor, dançando, fumando, bebendo e
vivendo a vida, gastando-a de forma perdulária. Que sensação
maravilhosa! De repente, acordei. Desperto daquela letargia,
a realidade. Deformado pela obesidade e atingido por uma artrose dolorosa que
me corrói os dois joelhos, não corro mais e caminho com muita dificuldade. Meus
cabelos caíram e as esperanças deram lugar aos desenganos.
Avante! Devo agradecer aquele
momento de sonho onde minha performance foi marcante com minha parceira sem
rosto. Do irreal para o real, agradecer à mãe natureza por ter me dado o
privilégio de ver, enxergar e poder admirar o lindo dia de hoje, presente,
agora, lógico e real.
P.S.: 1. E os relógios digitais das nossas
praças? Quem os levou? Será que vai ficar por isso mesmo? Que pena!
2. Vamos trocar o nome da Avenida 31 de
Março? Avenida dos Imigrantes, Avenida dos Italianos ou Avenida dos Imigrantes
Italianos? Sugiram.
VERGONHA
Foi
necessário o assassinato de uma cidadã norte-americana para que o governo
brasileiro tomasse alguma providência e atentasse para a questão fundiária no
Estado do Pará. Ali vale tudo.
Em
30 anos, na pesquisa mais recente, já foram assassinados mais de 700 líderes
camponeses, lavradores, mulheres e crianças naquela área. Colonos expulsos de
suas terras por grileiros, verdadeiros chacais inescrupulosos que se alimentam
da carniça miserável dos menos aquinhoados pela sorte.
É
revoltante. Não se imagina o que passa o ser humano naquelas bandas. Meninas
impúberes são arrancadas de suas famílias, negociadas e iniciadas no comércio
prostituído de escravas brancas; homens com as mãos calejadas e faces
embrutecidas pelas intempéries são leiloados como escravos entre
latifundiários, grileiros e donos de paus-de-arara; donas de casa, mães de
famílias são verdadeiras escravas negociadas entre aqueles bandidos para cuidar
dos serviços domésticos. Desta forma, as famílias são destruídas, criando-se
assim a cultura do medo e da revolta.
Até
quando, Catilina? Parece que minha gente está fadada à exploração e ao sofrimento
desde a colonização. Haja vista que no local onde hoje é a cidade de Santarém,
habitava a nação dos Tapajós. Uma civilização que possuía mais de 200 mil vidas
e que, entretanto, foi aniquilada pelos tais colonizadores. E os selvagens eram
os donos da terra!
Das
reservas fundiárias da minha família,
herdadas de meus avós, ele, coronel da Guarda
Nacional, não
restou absolutamente nada. Todas as terras
foram griladas por um
baiano deputado federal pelo
estado do Pará, daqueles que a lei é ele, capitão de jagunços.
Está
comprovado: a Amazônia tem um ecossistema frágil. Somente o homem daquela área
sabe como lidar com a grande floresta. A fronteira da floresta está cada vez
mais longe. Lembro-me de que, em 1967, fiz uma viagem em um fusca do Rio de
Janeiro a Belém. De Ceres (onde é isso? Interior fluminense?) a Belém, uma
distância próxima de dois mil quilômetros, a estrada era toda de terra, cortada
no meio daquela imensa floresta. A estrada, muito larga, é uma reta só. Chega a
ser monótona. Pois bem, naquela época, às 17 horas, o leito da estrada já era
uma penumbra, projetada pela sombra das enormes árvores que margeavam a
estrada. Voltei anos depois, lá por 1980, também de automóvel. Que tristeza!
A
floresta desaparecera ao alcance da vista. Em certas áreas, imensos areais
desérticos. Comboios imensos de carretas transportando toras de madeira de
árvores seculares, 24 horas por dia. Dá vontade de chorar. A cobiça de
madeireiros inescrupulosos vai acabar com a floresta. Espero que não morra mais
ninguém, vítima desses famigerados grileiros, e que o governo consiga colocar
esses bandidos na cadeia, que é o seu devido lugar.
VIDA (INACABADO)
No
dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, encontra-se o verbete abaixo:
“Vida
[Do lat. vita] S.f. 1. Conjunto de propriedades e qualidades graças às quais
animais e plantas, ao contrário dos organismos mortos ou da matéria bruta, se
mantêm em contínua atividade, manifestada em funções orgânicas tais como o
metabolismo (2), o crescimento (1) a reação a estímulos, a adaptação ao meio, a
reprodução (1), e outras; existência.”
Há
alguns dias, me pilhei, pensando na carnificina diária que existe no mundo,
exterminando, simplesmente, seres vivos, com objetivo específico de atender ao
apetite voraz do também animal carnívoro chamado homem. São milhões de animais
abatidos diariamente para
nos alimentar,
a nós, seres
humanos: bois,
porcos, cabritos,
carneiros, frangos
e, dependendo do país, cães, gatos, cobras e
lagartos. Isso
tudo feito
em nome
de nossa sobrevivência.
Fui
me aprofundando naquele melancólico pensamento, tentando entender o ser humano.
Não será isso que incentiva a banalização da vida? O maior tesouro que a
natureza nos dá está definitivamente desprestigiado. Mata-se um semelhante por
motivos irrelevantes.
Na pacata
São João del-Rei, já
são 24 o número
de assassinatos no decurso deste ano. Jovens se
matam por motivos
fúteis.
OUTROS
ESCRITOS
RUMO À BAHIA
Rey
(apócope de Reynaldo), um astuto e, por isso mesmo, próspero
vendedor de livros,
já bem
situado, com apartamento
próprio no Leblon, resolveu aumentar
seus lucros.
Para isso
decidiu investir em
seus dois genros: Carlos, genro
de fato e de direito,
e Hila, corruptela de Hilário,
ainda pretendente
ao tal do fato e direito.
Deliberou
comprar uma Kombi, lotá-la de livros científicos de Direito, muito procurados à
época: Processo Civil, de Carvalho
dos Santos; Direito Penal, de Aníbal
Bruno; Direito Internacional Privado,
de Haroldo Valadão e Direito Romano,
de João Carlos Moreira Alves. Sabia que todo bom advogado teria que
possuir essas obras
em sua
estante, principalmente
os alunos do primeiro
ano, aspirantes
ao bacharelato. Um
verdadeiro filé
para se vender.
Levaram
também, uma coleção infantil sobre a história do descobrimento do Brasil. Só tinha aparência. Ilustrações belíssimas, porém o conteúdo
péssimo. Editada pela Time-Life e
traduzida pela Larousse. Nela, se procurasse
Cabral, achava Colombo. Por mais que se
tentasse saber o nome
da nau de Cabral, encontraria somente Santa Maria, Pinta e Nina, que
compunham a esquadra de Colombo. Deveria
ser vendida em
grupos escolares
e colégios. Tudo
prêt-a-porter.
Rey
desempregou o Carlos, tirando-o de seu trabalho junto a uma multinacional, onde
vinha muito
bem, na função
de supervisor de vendas, e convidou o
Hila, que naquele momento
estava descolocado, pois havia sido defenestrado de suas funções no
Banco Irmãos
Guimarães, onde um
subgerente invejoso
teceu umas intrigas.
Aliás, o próprio
nome do cargo
já o qualifica –
“sub” tem sentido de inferior; se fosse
“sobre” talvez
se esperasse coisa melhor.
Achou que aquele
garotão da zona sul, que usava terno
de tropical inglês
Super Mohair Pitex, contrabandeado de Paramaribo, camisa
de cambraia de linho,
abotoadura e gravata
combinando, compradas na Otto, e sapato
do Motinha, estava subindo muito depressa no Banco,
ameaçando sua carreira
de puxa-saco e mal
humorado com os subalternos.
Desse
tipo que quando sai do quartel nunca mais deixa de cortar o cabelo no estilo
dos militares para deixar transparecer que ainda é um sargentão e impor mais
respeito no trem da Central. Em casa, botava os filhos em forma e lhes dava
ordem unida. Aliás, quando o Hila se apresentava para trabalhar, logo de manhã,
naquela pinta toda, os colegas da agência saudavam-no jocosamente, chamando-o
de Geraldinho, uma alusão ao filho do dono do Banco.
Hila
se deliciava com a gozação dos colegas e retribuía, acenando com o jornal que
sempre trazia dobrado debaixo do braço.
– Bancários, estão satisfeitos ou
têm alguma reivindicação a fazer? Pois façam. Meus funcionários devem trabalhar
contentes.
O
Normando, chefe
da carteira de contas
correntes, tinha
uma saudação especial
para o Hila:
– Salve, bancário antigo! – esse
“antigo” era
dito no sentido
de esperto.
Era uma turma sensacional: Normando, Gilberto, Rogério, Paulinho, Souza, Lima, Fidélis, Clóvis e outros.
No
dia do pagamento, faziam a alegria das moças dos cabarés da Rua Alice. Em primeiro lugar, iam todos
ao do alto da rua.
Era uma casa
discreta e silenciosa.
Ao tocarem a campainha, eram recebidos através de uma janelinha na própria
porta por
um veado
velho, que
identificava a freguesia, com receio de ser a polícia. Ao verificar de que se
tratava daquela turma de habitués, a bicha velha se
desmanchava em salamaleques
e com sua
vozinha esganiçada botava a turma para
dentro.
Era
um salão grande, alcatifado de cortinas de veludo surrado e com vários sofás
distribuídos de forma estratégica para que os fregueses pudessem apreciar todas
as moças ali sentadas confortável e recatadamente. Uma atmosfera muito solene
em se tratando de um prostíbulo.
Hila,
muito tímido nessas ocasiões, quando se deparou com aquela cena, quis recuar.
Normando, o mais antigo, o empurrou para o meio do salão. Tentou dissimular sua
timidez, mas seu rosto o condenou pelo rubor. O restante da turma caiu na pele
dele, enquanto a cafetina apresentava as moças, dissertando sobre suas
aptidões.
Cada membro
daquela alegre confraria
escolheu a sua e desapareceu para seus respectivos quartos.
Instantes depois
estavam todos reunidos novamente. Sorrisos
nos lábios, um
contando proeza maior
que a do outro e se sentido
o próprio macho.
Desciam
a pé lá
de cima até
a Casa Rosada,
lá em baixo. Sem qualquer
alusão à sede
do governo portenho, ali
faziam ponto algumas argentinas, que eram verdadeiras máquinas caça-níqueis.
Faziam com a língua
o que nenhum
ilusionista do baralho faz com as mãos. Em minutos
despachava o freguês. Não tirava nem
a roupa e já
deixava o incauto de pernas bambas,
dissipando as fantasias que o coitado tivera
antes de entrar
no quarto. Uma boa bochechada com
água da talha e lá
estavam elas prontas para
o próximo.
A
Casa Rosada
era muito
mais interessante que
a casa de cima.
Ali era lugar
de boêmio e de farristas,
um verdadeiro
cabaré. Mesas,
luzes lúgubres,
cervejas e muita
fumaça. Não havia preconceito
contra fumantes
nem contra
qualquer tipo
de pessoa. Ali se misturavam autoridades, funcionários
públicos, office-boys, mulatos, cafuzos,
negros e brancos, todos
com um
só objetivo:
distrair-se e aproveitar a noitada.
A
turma sempre
unida juntava duas ou três mesas e
mandava descer cerveja. Dali a instantes, o grupo tinha dobrado de tamanho
com a adição
das companheiras de cada um. À medida que o estado etílico ia aumentando, aumentavam também
as juras de amor
e promessas de “tirar
você deste lugar”.
No final, tudo acabava na horizontal, e com o clarear da aurora, eles faziam a vaquinha
incluindo as trepadas, apagavam tudo,
entravam nos táxis
e iam para casa, aproveitar um
pouquinho do calor da cama
para se refazer e dali a
poucas horas estar
de pé para a lida do novo dia.
No
dia seguinte
à farra, Hila começava a rodear
o chefe Normando,
que já
sabendo do que se tratava, iniciava o diálogo:
—
Que queres, bancário?
—
Como está a disponibilidade da Mônica, filha menor de Normando? – era uma conta
corrente que ele mantinha como reserva para o futuro de sua filha.
Seguia-se um coro de risadas,
pois a turma já sabia e ficava de olho, só esperando a pergunta do Hila.
—
Bem, chefe, é que depois do ocorrido ontem, me exacerbei, de forma que hoje
estou desprevenido. Será que o amigo não me adiantaria vintão até o final do
mês?
Para delírio da platéia, o bom amigo Normando nunca lhe
negou, pois sabia que, no final
do mês, aquele
era certo.
Ficaria na conta por
alguns dias
até que
o Hila pedisse novamente emprestado.
Eram
tempos muito felizes.
Na
viagem rumo
à Bahia, o Hila deve ter ido
de contrapeso. De vendedor
não tinha
nada, principalmente
em se tratando de livros,
coisa que
detestava, pois não
conseguira ir além
da 2ª série do curso
ginasial no Colégio
Salesiano Nossa
Senhora do Carmo, em Belém do Pará. No caminho, as prioridades eram Itabuna, Ilhéus
e Salvador, esta última possuidora de uma bela e tradicional universidade.
Formou-se então
a equipe: Rey, o chefe, Carlos e Hila. Três personalidades com
perfis totalmente diferentes.
Rey, epicurista, entendia de tudo,
sabia de tudo, contestava tudo, rabugento e resmungão, portador
de úlcera nervosa
e de uma diarréia crônica
e imprevisível. Carlos, bem
nascido em berço
alfombrado, de educação pianística e filho
de judeu, tinha no sangue o fino trato com o comércio
e o dinheiro. De pais
abastados, desde
adolescente possuía automóvel e motocicleta.
Em seu
currículo constava uma passagem pela Aeronáutica, onde
exerceu o ofício de batedor – não porque batia nas pessoas,
mas porque abria o trânsito
para as autoridades
com as sirenes
ligadas e pilotando uma maravilhosa Harley Davidson, o frisson da época. Esse ofício lhe
custou um pedaço
do calcanhar, arrancado pelo
descanso da moto.
Dos três, o único
habilitado para dirigir automóvel.
Rey havia perdido as esperanças
de aprender a dirigir,
pois, segundo um
brocardo popular, “papagaio
velho não
aprende a falar”. Hila, pela
sua própria
condição de proletário,
vindo do Norte, nem
sonhara possuir um
automóvel. Apesar
de seus 23 anos,
já era
um boêmio
tarimbado.
Para ele tudo estava bom,
se não lhe
faltasse um prato
de comida, uma cerveja
ou um
conhaque, ou
um vinho,
ou uma pinga...
Boa companhia para
qualquer situação,
principalmente uma farra.
Bem afeiçoado e com
uma boa voz, fazia sucesso
cantando nos botecos
e cabarés por
onde passava. Um
boa praça.
O
primeiro impasse surgiu na hora da compra da Kombi. Rey, sabiamente, foi pedir opinião ao
Carlos, o único que
entendia do negócio. Rey gostou de um modelo azul
mais modesto e o Carlos decidiu por um verde claro mais moderno por questões
óbvias. A Kombi teria que nos levar, lotada de livros,
e nos trazer
de volta ao Rio.
A Rio-Bahia, se hoje é cheia de buracos,
naquela época só
existia o buraco. Contornado o problema, Rey, a contragosto,
aquiesceu à opinião do Carlos e comprou
a Kombi mais nova.
Combinaram a saída
num tal dia
pela madrugada
e Carlos providenciou o carregamento da
Kombi com o respectivo
romaneio de carga. Feitas
as despedidas, pé
na estrada. Rey deixava para
trás mulher e três
filhos; Carlos, esposa
e um filho
recém-nascido, e Hila, só
saudades de sua doce amada.
Carlos na direção,
Ney e Hila a seu lado.
Todos no banco
da frente, o único
que sobrou. O resto
eram livros.
Tudo
bem! A viagem seria cansativa e de fato foi.
O tempo
foi passando, aqui e ali, Rey, usando da prerrogativa
de proprietário do patrimônio,
insinuava que gostaria de assumir
o volante. Carlos, sabiamente, fazia ouvido de mercador.
Hila, no seu canto, sonhava com sua praia que havia
ficado para trás
e logo na época
em que
havia encontrado uma namorada que o deixara apaixonado, porém
a aventura e o rumo
ao desconhecido o excitavam mais. Afinal de contas,
Salvador também
possui lindas praias e, quiçá, belas morenas.
Numa pequena cidade à margem da
rodovia, fizeram a primeira parada para tomar café. O sol
ainda não
havia dissipado a neblina que
pairava naquela praça cortada ao meio
pela linha
da estrada de ferro
e ladeada por flamboaiãs seculares. Hila
ainda guarda na retina a imagem de uma velhinha dirigindo-se para a igreja a
fim de cumprir o mister de iniciar o
dia em paz com Deus. Após o café, pé na estrada.
Foi uma manhã
tranqüila e monótona, naquele sertão. O calor
incomodava muito. Hora do almoço, próximo a Jequié, Carlos parou numa birosca
na beira da estrada. Chão batido, telhas de zinco, mesinhas mancas pintadas
daquele azul tradicional com os também tradicionais cartões de visitas gravados
com o garfo, enquanto os poetas esperam a bóia. Lia-se: “Adirson retratista”,
“Zurmira ti amo”, “Parmira é puta”. Ali estava a maior concentração de moscas e
de mendigos por centímetro quadrado que já vi. Aí a coisa
apertou. Por causa
da sua úlcera,
Rey queria um especial
à la carte. Carlos, acostumado aos bons restaurantes
e de paladar apurado, retraiu-se e não fez pedido.
Hila, com menos
escrúpulos, mandou vir o da casa.
Num prato
de esmalte, foi servida uma nata de gordura com alguma coisa por baixo. Não deu para identificar o conteúdo e, com
certeza, algumas moscas
compunham aquele negócio com
sabor de sola
de botina de soldado
com caldo
de meia de polonês.
Era uma coisa
horrível, porém
a fome era
maior. Após jogar
na goela um
gole da marvada, Hila pediu pimenta,
tacou farinha, remexeu a lavagem
e meteu o “remo”.
Carlos
comentou:
— Hila, essa pinga deve ser
horrível!
— Por
isso que
joguei no goto, para não sentir o sabor. O efeito
é meramente terapêutico,
importante é ela
ajudar a derreter essa graxa que está
indo em cima
dela!
Cada “remada” era
disputada com as moscas,
sob o olhar suplicante
de mendigos e meninos
famintos que, nus e catarrentos, quase se debruçavam sobre
a mesa.
Diante
de tanta miséria,
nojeira e promiscuidade, Carlos desistiu do almoço. Rey ensaiou algumas garfadas
no seu especial,
composto apenas
pela gordura,
sem o entulho
submerso. Light. O medo
da diarréia o fez parar
na segunda garfada.
Assim, o almoço
não durou mais
do que o tempo
necessário para o Hila devorar seu ragu que,
com o inchaço
da farinha, havia virado um verdadeiro
concreto. Após algumas espórtulas para os circunstantes,
pé na estrada,
com tudo
o que aquele valente
motor de 1.200 cc
agüentava. Na memória, um só desejo: esquecer aquela cena
que ficara para
trás.
Após
umas duas horas de viagem:
—Pára!
Pára! Rápido!
Carlos,
assustado, parou de repente, do jeito que deu, pois acostamento? nem sonhar. Rey, já
com um
rolo de papel
higiênico na mão
direita, pulou por
cima do Hila e já
caiu lá fora.
Com a agilidade de um esgrimista arriou a calça
de linho claro
e deixou aparecer sua
cueca samba-canção abotoada por dois ilhoses. Uma cena bizarra.
Após se aliviar naquele desbarrancado barrento, o homem levantou-se, suspendeu a cueca,
colocou a fralda da camisa
social para dentro, levantou a calça,
encaixou devidamente o suspensório,
afivelou o cinto, ajeitou a gravata e arrumou o paletó.
É verdade que
todo ser humano — e parece até
que é inerente
ao próprio animal
— após se aliviar,
obrigatoriamente terá que olhar
sua obra.
Não poderia
ser diferente
com o Rey. Quando
lançou seu olhar
de verificação, constatou que seus sapatos de verniz
e sola fina
estavam devidamente atolados naquele produto que ele acabara de obrar. Foi
uma tragédia.
O rasgo traseiro
do paletó, de ambos
os lados, serviria como
um prato
cheio a um
laboratório de análises
clínicas em substituição
às lâminas, pois
ali certamente
encontrariam diversos membros da família
dos micróbios e amebas
que habitavam suas
entranhas. E foram somente
duas garfadas! Novo impasse. Carlos, por
seus princípios de higiene, portador de um humor seletista e uma paciência
efêmera, soltou os cachorros.
—
Assim não viaja comigo! Tem que trocar de roupa, sapatos e de preferência tomar
um bom banho!
O
homem não era chegado a um chuveiro e foi salvo pelo local. Água ali, naquele
instante, só nas gravuras das coleções infantis que levavam e que mostravam as
caravelas de Colombo descobrindo a América do Norte e não Cabral descobrindo o
Brasil. Eta coleçãozinha mentirosa.
Humildemente, Rey que
era um
gaúcho brabo, relutou, mas obedeceu e resolveu trocar
sua indumentária
de dia de festa por um
traje mais esportivo. Arrumou um
bonezinho surrado, azul marinho,
trocou os sapatos, a meia, a cueca,
a calça, o cinto,
substituiu a camisa social
por uma esporte, abotoou até o pescoço,
arrumou o bendito suspensório, mas não trocou
a gravata. Usou a ponta
da parte interna
para limpar os óculos de grau,
ainda com
alguns respingos esverdeados da maldita disenteria
bacilar ou amebiana.
O
Hila assistia àquilo tudo impassível e quando os ânimos se exacerbavam, agia
como mediador, apaziguando as discussões e aturando as idiossincrasias de
ambos. Dois temperamentos fortes e intempestivos. Animava, resoluto:
— Vamos em
frente!
De
vez em
quando, apesar
da assepsia do Rey, soprava uma refrega de vento, vindo do seu lado e ainda se sentia aquela inhaca
que empesteou o barranco.
Imediatamente a comida
da birosca voltava à lembrança.
De
repente, chuva! Carlos acionou o limpador de pára-brisas e seu desempenho foi
sofrível. Quando parou a chuva, Carlos, com muito cuidado, deu uma pressão na
haste do limpador para que a borracha passasse sobre o vidro com mais pressão. O
Hila, que a tudo
assistia, gostou da idéia e partiu para melhorar o
do carona. Com
toda a arrogância
própria do inexperiente,
disse solene:
—
Vou fazer um cotovelo no meu.
Só se ouviu um pequeno estalo
e lá estava o Hila, com
uma cara de palerma,
sob o austero
olhar do proprietário
do veículo, com
o limpador quebrado
na mão. Todo sem
graça, saiu de fininho e sentou-se em seu canto.
Chão
e mais chão!
—
Olha um coelho! – disse o Hila.
—
Não é coelho, é uma lebre. – retrucou
Rey.
—
Olha, um gavião! – disse o Hila.
—
Não é gavião,
é carcará. – novamente retrucou o Rey.
—
Olha, um jegue! – exclamou o Hila.
– Não é jegue,
é jerico – corrigiu o velho Rey.
(Não consegui
uniformizar o tamanho dos travessões)
Decepcionado
com a falta de sorte, pois não reconheceu nenhum dos animais, o Hila silenciou
em seu canto, meio amuado.
Silêncio sepulcral.
De
quando em vez, alguém na beira da estrada pedindo carona. Para não negar, Carlos na direção e Hila na janela fingiam dormir.
No retrovisor, a imagem
da pessoa atônita
sem entender nada. Como pode
esse carro
se manter na estrada
se o motorista está dormindo em cima do volante?
—
Ô Hila, estás calado? – Rey quebrou o silêncio.
Com
um misto de deboche e raiva, Hila respondeu:
—
É que acabou a fauna do estado da Bahia, só restaram os urubus.
—
Não são urubus, são abutres.
Aí
o assunto encerrou-se definitivamente. Quase que o Hila perdeu a fleuma e
desceu do carro em movimento.
Noite
chegando, hora de parar, tomar um banho, jantar e dormir. Eis que surge um
dormitório à beira da estrada. Pelo adiantado da hora, a prudência recomendava
não arriscar. Era bom ficar por ali mesmo.
Uma
placa anunciava: Temos banho quente.
— Graças a Deus! - murmurou o Carlos.
Após
conversar com a recepcionista, que era também a proprietária, ficaram
entusiasmados com a pousada. As perguntas todas respondidas com entusiásticos
“sim”. Banheiro com água quente? Sanitários limpos? Camas decentes? Boa comida?
Escova
de dente e sabonete na mão, toalha no pescoço, entraram os três no banheiro de
barrado vermelho e cimento liso no piso. A primeira
impressão não
foi boa. Carlos olhou para o chuveiro,
só tinha
o cano. O olhar do Carlos
soltava faíscas. Hila, para
amenizar a situação,
adiantou-se ao Carlos e entrou debaixo
do cano.
—
Ô Carlos, desde que tenha água com abundância, não tem problema!
E
o Hila, com todo cuidado, resguardou-se, temendo levar o primeiro jato de água
fria, saiu da reta do cano e aos poucos foi abrindo o registro. A última volta
da rosca do registro totalmente aberto deu passagem a um miserável filete de
água que iniciou com três gotas enferrujadas. O primeiro que falasse alguma
coisa, o Carlos engoliria vivo. Hila, com sua paciência e experiência dos que vêm
do Norte, contemporizou:
—
Carlinhos, com boa vontade dá para tomar banho. Vou te mostrar.
Colocou
o dedo médio da mão direita, na boca do cano, deixando a água escorrer pelo seu
dorso, até sair do outro lado, no dedo médio da mão esquerda.
—
Estás vendo, Carlinhos, dá para tomar
banho.
Descontrolado,
sua resposta
foi impublicável. Retirou-se indignado da sala
de banho e partiu para
o segundo item, o jantar. O Rey gostou
da situação, não
era chegado
a uma água, tratou de passar
Glostora no cabelo e ficou por isso mesmo. Hila, ressabiado e de mansinho, sentou-se à mesa junto ao
Carlos, que estava mudo e mudo continuou. Após alguns
minutos:
—
Quero só ver o jantar! – Resmungou entre dentes.
Rey
chegou, sentou-se à mesa, sem nada falar,
com um
ar de superioridade
no semblante, sacou seu
livro de Epicuro e esperou alguém se manifestar para começar seu
cansativo discurso.
Em tom
provocativo, Hila perguntou:
—
Quem foi mesmo esse tal de Epicuro?
Era
o que o homem queria. Sabia tudo de cor como todo mentecapto. Inflamado, se
ajeitou, levantou-se e mandou a verborréia para aquela platéia de descalços:
—
Epicuro foi um filósofo grego do período helenístico-romano. Em 323 a.C., seguiu para Atenas
e daí para Mitilene, na ilha de Lesbos, e Lâmpsaco, onde lecionou até 306 a.C., quando retornou
para Atenas. Pouco depois, nos jardins da casa em que morava, perto de Dipylon,
fundou sua própria escola filosófica que consistia no materialismo e no prazer
como bem supremo. Nasceu em Salmos, 341, e faleceu em Atenas, no ano 270 a.C.
Quase
foi aplaudido, mas como ninguém conhecia aquele candidato, a platéia permaneceu
desconfiadamente em
silêncio. Tudo decorado da enciclopédia Britânica. Nada de
útil no seu cotidiano. Dizia-se materialista, mas portava no pescoço, dependurada
em um cordão de ouro, uma medalha do Sagrado Coração de Jesus. Carlos,
impaciente e ainda vermelho de vergonha pelo discurso do Rey, falou:
—
Hila, faz favor, chama o raio dessa garçonete!
—
Perfeitamente. Moça faça o favor de vir até aqui!
—
O que temos para o jantar?
—
Temos sarapatel, bucho e pode sair um bife de carne de porco com arroz e
feijão. Antecipou-se o Rey:
—
Não tem salada?
—
Só se for de jiló com cebola e pimentão.
O
ambiente foi ficando tenso. Carlos olhou de soslaio para Hila que lhe respondeu
com um sorriso amarelo. Em seguida, levantou-se, comprou um pacote de bolachas
água e sal e, sem qualquer despedida, retirou-se para o quarto. Rey
contentou-se com um
pedaço de queijo
num pão dormido, acompanhado
de refrigerante, retirando-se em seguida com cara de poucos amigos.
Aí, o Hila sentiu-se à vontade. Esfregou
uma mão na outra
e falou:
—
Moça, traga uma pinga, uma cerveja e um sarapatel!
Os
pinguços que
assistiam a tudo com
a acuidade do matuto
sentiram firmeza no tal
do Hila, que, por
sua vez,
notando que havia agradado a turma, sentiu-se em casa.
A cachaça, como tudo
naquele lugar, era
de péssima qualidade.
Quase deu retorno.
O Hila chegou a sentir água
debaixo da língua,
mas segurou na chave
e a bicha desceu queimando. Puro álcool
diluído em água.
—
Vige! Eta
cachaça porreta!
Exclamou o Hila.
A
dona do estabelecimento
abriu-lhe um largo
sorriso e os pinguços,
lambendo os beiços, cochicharam entre si, meneando a cabeça
positivamente. Veio
a cerveja e, antes
de colocá-la no copo, ofereceu aos demais, que muito a contragosto, educadamente agradeceram. Hila
sorveu aquela num fôlego só e pediu a segunda.
Nessas alturas, já
arriscava uma prosa com
a turma, mas somente quando a conclusão era apenas um monossílabo: “é” ou
“não”. Esperto, não queria muita intimidade,
pois o tal do
sarapatel ainda
não havia chegado.
Assim que
a garçonete colocou o prato sobre a mesa,
acabou a prosa. Hila ficou mudo, não
arriscou mais nenhum
olhar para os lados. Sapecou pimenta
no rango, pegou a garrafa
de farinha e despejou. Instantaneamente,
aquilo virou um
grude. Hila se deliciava com aquela
gororoba como se fosse um manjar dos deuses.
Eis que,
de chofre, irrompe o salão do jantar, com uma cara de fazer medo até
ao Emiliano Zapata, o valente revolucionário mexicano, ninguém
mais do que
o Carlos. Desfigurado e furibundo,
vociferou:
—
Nesta pocilga eu não durmo!
Hila,
como sempre muito solícito, interrompeu seu jantar e indagou:
—
O que foi que houve, Carlinhos?
—
Vem cá!
Pegou
o Hila pelo braço e saiu da sala pisando duro. A platéia entreolhou-se sem
entender absolutamente nada. Adentraram o quarto e lá estavam, além de várias
baratas, duas tradicionais camas patentes de solteiro, uma separada da outra, a
uma distância de um palmo, tal a exigüidade do cubículo. Porém o que deixara o
Carlos possesso era a marca do corpo de uma pessoa no colchão e o travesseiro
afundado, denunciando que daquelas camas alguém havia se levantado recentemente.
Não trocaram nem os lençóis e nem as fronhas. Hila não perdeu a oportunidade:
—
Que é isso, Carlos, tu não conheces? Essas são as famosas camas-quentes da Rio-Bahia,
quando um levanta, outro deita. A água do chuveiro não estava quente, porém das
camas não podemos reclamar. Tu interromperes meu jantar só por causa disto?
Faça-me o favor!
Hila voltou para o seu jantar.
Quando entrou no salão deparou a turma com olhar inquisitivo. Entre um sorriso
sem graça, justificou:
—
Não foi nada, não foi nada, pequenos contratempos!
Sentou-se
à mesa e arrematou o resto da comida já fria que mostrava o excesso de azeite
de dendê, deixando as bordas do prato esmaltado tingidas de vermelho.
O
incidente das camas
deixou Hila preocupado com o Carlos. Apesar
de acostumado com seus
ataques, nunca
o deixou sozinho e não
seria dessa vez que
o faria. Adiou a rodada de truco que já havia
combinado com os parceiros
e foi fazer companhia
ao amigo. Quando
chegou ao quarto encontrou Carlos, sentado na beira da cama com os cotovelos
nas pernas e as duas mãos sob o queixo. Nessas ocasiões
a prudência recomenda muita cautela.
—
E aí, Carlinhos? Tudo bem? A comida estava jóia, tu perdeste.
—
Faço idéia, eu quero é ir embora desta merda! Aqui eu não durmo!
—
Não leva a mal Carlos, estou exausto, disse Hila. Enrolou-se em sua capa de nylon, deitou-se, virou de lado e
roncou. A indignação de Carlos aumentou ainda mais e conjeturou?
—
O Rey está certo, é coroa,
já passou por
momentos piores, foi obrigado a comer capim com pólvora na Ilha Grande como
preso político,
deve estar acostumado. Agora, e esse outro? Nessa idade não tem princípios
nem escrúpulos,
deitou-se nessa imundície e ainda ronca. Não
pode. – revoltado, cutucou o Hila:
—
Acorda, acorda! Vamos comigo ao sanitário!
Ainda
meio que dormindo, Hila falou:
—
É uma boa, o sarapatel já está fazendo efeito.
O
sanitário era do lado de fora, no quintal, numa casinha de madeira. Já
conheciam o rumo, pois ao chegar, ainda claro, a dona lhes mostrou de longe.
Era noite, um verdadeiro breu. Via-se naquela direção o bruxulear da luz de uma
lamparina que iluminava a casinha. Naquela escuridão, Carlos pisa no rabo de um
vira-lata que dormia no caminho. O bicho deu um ganido tão alto que deve ter
acordado todos que dormiam. Quase dispensaram o uso da casinha. Por pouco a
encomenda não ficou ali mesmo. Tateando com mais cuidado conseguiram chegar até
lá. Hila empurrou a porta, a cena era cópia fiel do Mundo Cão. Baratas em todos
os cantos, um quadrado de madeira com um buraco no meio, elevava-se do chão a
uns 30 centímetros.
Novamente Carlos embirrou.
—
Não dá! Aqui não vai dar!
Hila
desabotoando a calça avisou:
—
Então sai da frente.
Em
seguida ouviu-se um ruído como se fossem duas mãos em forma de conchas, batendo
palmas. Era o sarapatel atingindo o fundo da cloaca.
Finalmente
amanheceu. A noite para o Carlos havia sido um suplício e além de tudo chovera
torrencialmente. Rey insistia em dirigir.
Carlos, o comandante, já estava de saco
cheio de tudo
o que tinha
acontecido, sua auto-estima em frangalhos e
seu humor
exaurido, disse:
—
Quer saber de uma coisa? Pois bem, toma a chave do carro e faz o que você
quiser!
Sentou-se
no meio e começou mais
uma etapa da viagem.
As vidas nas mãos
do Rey e as almas entregues
a Deus ou ao diabo.
Lá vai ele
todo faceiro
de 2ª marcha. Carlos olhava para o Hila e balançava a cabeça
negativamente. Não se conteve.
—
Não vai passar a terceira marcha desta merda?
—
Ih! Tem que passar? Não estamos muito devagar?
—
Claro! A segunda marcha só vai até aí, 40 por hora – falou Carlos.
Passada a terceira
marcha, o homem
se entusiasmou e mandou o sapato até atingir 80. Lembrava o velho Chico Landi. Dormindo. Eis
que, numa subida
leve, próximo
a uma lombada, fincada em um pau, uma placa
numa folha de alumínio,
de uns 60 x 60 cm,
fundo branco,
escrito em
vermelho: “Cuidado Perigo!”. Hila, que evitava conversar com Rey, em se
tratando da segurança de todos,
leu o aviso em voz
alta. Nosso
arrojado piloto,
já se sentindo senhor
da situação e como
se tivesse domínio absoluto
sobre a máquina,
deu um sorriso
matreiro e não
aliviou o pé do acelerador.
No topo da lombada, quando
o carro já
estava embicado na descida, a estrada acabou, literalmente.
A porrada foi tão
violenta, que
todos bateram ao mesmo
tempo, com
a cabeça no teto,
as quatro calotas
voaram longe, ribanceira
abaixo. Imediatamente,
com a mão
esquerda, Carlos tomou a direção
de nosso incauto
motorista e berrou:
—
Não pisa no freio desta merda!
O
carro foi descendo naquele mingau até parar, graças a perícia do Carlos, no leito,
do que no futuro
seria a estrada. Os três
se entreolharam. A imagem do Rey era cômica. A aba do boné que era azul marinho surrado agora estava cor
de burro quando
foge, devido à poeira
que caiu na hora
do impacto da cabeça
contra o teto,
virada para o
lado esquerdo.
Os óculos de grau
completamente tortos,
apoiados na ponta do nariz. A dentadura
que voara longe foi de encontro ao pára-brisas,
estilhaçando-se. No colo do Carlos, um pedaço da dentadura, do canino ao siso,
lhe sorria.
—
Tira essa imundice de cima de mim! – gritou Carlos impaciente.
Hila
não se conteve e riu baixinho.
—
Agora, desce e vai buscar
as quatro calotas!
– Carlos ordenou ao Rey.
O
homem ainda pálido não sabia se atendia à ordem do Carlos ou de sua cólica.
Naquele
trecho, estavam levantando o leito da estrada com piçarra, para preparar o
macadame e, com as chuvas da véspera, o trecho parecia uma cobertura de
chocolate. Rey, muito magrinho, arregaçou as bainhas
da calça e, com
todo o cuidado, foi pisando com seus sapatos de verniz naquele saibro
para verificar sua densidade.
Aos poucos os sapatos
foram desaparecendo e o barro alcançou a
metade de sua
meia branca
de cano longo.
Olhou com um
olhar de súplica
para o Carlos e recebeu de volta
um berro:
—
Ainda não foi?
O
que se viu a seguir dava para rir e chorar. O gauchão, ferido nos seus brios,
saiu pisando duro sem cerimônia, naquele imenso lodaçal. Não foi muito longe
porque levou o primeiro tombo.
Hila
e Carlos, dentro do carro, sequinhos, com os pés limpinhos, já com a adrenalina
no seu devido lugar, assistiam à cena de camarote. Notava-se no semblante do Carlos
um misto de ira e de glória, como se conjeturasse:
—
Tá vendo, seu idiota! Carro não é para qualquer um e é um risco nas mãos de imperitos
e imprudentes.
Na
verdade, torna-se uma verdadeira máquina de matar. Não fossem os livros estarem
muito bem acondicionados em caixas prensadas a servir de lastro para a Kombi,
certamente esta história não estaria sendo contada, muito menos com essa pitada
de humor.
Na
cabeça do Hila, o conciliador, do tipo que não liga para nada, penalizado,
vendo o Rey naquela situação, arriscou:
—
Carlos, vou ajudar o velho!
—
Não faça isso, deixa ele se virar. Ele não é piloto? Então que se dane!
Hila,
na sua maneira
de resolver as coisas
a seu modo,
calmamente tirou seu
sapato cinza
sem meia, de couro
cru, feito sob
medida no Motinha, tirou a blusa e a calça
e ficou só de cueca,
apenas para demonstrar solidariedade
com o coroa.
Barreou somente os pés
e não saiu do lado
da Kombi, agarrado à porta. Felizmente,
não havia platéia.
Ali, não
passava ninguém. Finalmente,
chegou o Rey de forma triunfal
trazendo as quatro calotas
nas mãos e mostrando ao Carlos:
—
Ufa! Não foi fácil!
—
Agora, vê se coloca no lugar! Falou o Carlos com toda autoridade.
Nessas
alturas, Hila, que já estava com os pés na lama, fez uma média com o Rey,
ajudando-o a colocar as calotas em seus respectivos lugares.
Na
vida nada é definitivo.
Eis
que surge um
colono. Chapéu
de palha, calça
arregaçada, apoiado em um cajado e com o tradicional cigarrinho de palha no canto
da boca, demonstrando intimidade em andar na lama, de
mansinho, meio ressabiado, perguntou:
—
Os moço tão percisano di ajuda?
O
líder enlameado, vislumbrando uma saída honrosa para aquela situação que ele mesmo criou, em
tom de súplica, falou:
—
Estamos sim moço, faça alguma coisa por nós, que Deus há de lhe ajudar! – Aí o
grande materialista esqueceu-se do seu Epicuro.
—
Moço, eu agradeço a ajuda de Deus, eu tenho três junta de boi, que tira
vosmices dessa enrascada, mas o preço é tanto.
Era
uma quantia soberba. O homem, que era usurário, quase caiu de vez na lama.
—
Dou a metade.
—
Eu completo o resto! – gritou o perdulário Hila.
Chovia.
Rey e Hila aproveitaram para tirar o excesso da lama que se impregnara em seus
corpos.
Decorrida
mais de uma hora,
chega o matuto
com três
belas juntas de bois
zebus. Para
eles, foi um serviço
leve, principalmente
debaixo da chuva
que lhes
dava uma refrescada no lombo. Em poucos
minutos, estavam novamente em terra firme. Feito o pagamento ao homem
dos bois, despediram-se. Carlos, irônico, perguntou ao Rey:
—
Vai dirigir?
—
Não, não, chega!
Hila
suspirou aliviado. Carlos assumiu o comando e partiram tranqüilos, porém
exaustos. O susto e a tensão deixaram os três extenuados.
O
sol do sertão,
deitando a oeste, tingia o céu de vermelho. Parecia que o firmamento
estava incandescente. Por entre nuvens, os raios
do sol faziam lembrar
a estrela flamígera, que adorna o altar dos maçons.
Tudo na viagem
acontece de repente e, desta vez não foi diferente.
Um barulho
estranho no motor
da Kombi e, no painel, acendeu-se imediatamente
a luz de espia
do dínamo. Carlos, atento,
desligou a chave e, no embalo, parou no estreito
acostamento de terra.
Levantou a tampa do motor.
Bronca feia.
A polia do gerador,
degolada. Impossível prosseguir.
A pequena claridade
do lusco-fusco, havia desaparecido e já era noite. Todos tensos e apreensivos.
Contavam estórias de pequenos assaltos
a pessoas naquela situação.
Estávamos indefesos e à mercê da própria
sorte. Consertar
o motor? Sem chance, pois a única chave
existente era a de ignição.
Só restava esperar.
Nada é definitivo.
O local era
sinistro e a escuridão da
noite era
tão grande
que estar de olhos
fechados ou abertos não
fazia diferença. Rey palpitou:
—
Se fosse o carro que eu escolhi, não estaríamos aqui parados!
—
Provavelmente estaríamos parados ainda, no Rio de Janeiro — respondeu Carlos
furioso.
Aquela
situação o deixava impaciente. Todos envoltos em seus pensamentos, naquela
situação desconfortável, espremidos entre livros num carro enguiçado num lugar
perigoso. Ouviram ao longe um tropel de cavaleiros
se aproximando. Todos temerosos. Passaram ao largo
algumas vozes sussurradas e voltou o
silêncio. Era medonho. O trânsito naquele trecho não
existia. Tudo totalmente parado parecia mostrar que a situação
era de alto
risco. Eis
que surge uma luz
ao longe e vem na direção
da Kombi. Aproximou-se, diminuiu a marcha.
De dentro do carro, na outra mão de direção, alguém gritou:
—
Precisam de ajuda?
—
Sim, estamos enguiçados.
Manobrou
e parou na traseira da Kombi, de maneira que seu farol iluminava o motor e os
três passageiros.
Desceu
de um fusca, um cidadão atarracado, de bigode vasto e revólver em punho.
—
Estão indo para onde?
—
Itabuna.
—
Vocês mexem com quê?
—
Livros científicos.
—
O que houve com o carro?
—
A polia do dínamo degolou.
O
homem levantou a tampa do motor e, com a luz que vinha do farol de seu carro,
verificou que realmente os três falavam a verdade. Então, o homem
despreveniu-se. Guardou o revólver no coldre e falou:
—
Hoje é o dia de sorte de vocês. Desculpem-me ter descido armado. Esta região é
muito perigosa. Sou viajante de peças e por acaso tenho a peça que necessitam.
A
sensação naquele momento
foi de alívio. O próprio
homem trocou as peças, a correia, ajustou as arruelas
e apertou a polia.
—
Dá a partida. Acelera.
Beleza,
a lâmpada do painel apagou. Na hora de pagar a conta, o homem não quis receber.
—
Não, de maneira nenhuma, estou direto na estrada e acho que esse é dever de
cada um. Uns ajudando os outros. Assim a vida será mais amena. Só peço que rezem
por mim para que no dia em que eu precisar não me falte ajuda.
Os
três ficaram constrangidos e quase carregaram o bom
homem no colo.
Esse sentimento
de solidariedade parece próprio
dos peregrinos e viajantes
que fazem da sua
vida, uma busca
constante pelo
novo, pelo inusitado. O novo não lhes
assusta, pelo contrário,
inebria-os. Após a troca
de cartões de visitas
e feitas as despedidas,
pé na estrada.
Devido ao adiantado da hora, todos
imbuídos do espírito de poupar
o dinheiro, apesar
das boas previsões, decidiram dormir dentro do carro. Após encontrar
lugar seguro,
na área de recuo de um
posto de abastecimento, Carlos manobrou
e colocou o carro sob
uma frondosa árvore.
Desceram, esticaram as pernas,
esvaziaram as bexigas, se espreguiçaram como se fossem deitar em uma confortável
cama.
Aí
caíram na real. Só
havia o banco da frente
disponível. Carlos e Hila, em respeito ao
Rey que era
o decano, decidiram que
ele dormiria no banco
da frente.
—
E nós, Carlos? – Sussurrou o Hila.
—
Vai ser difícil. Com esta quantidade de livros!
—
Peraí que dou um jeito.
Metendo
a mão no bolso, Hila dirigiu-se à birosca do posto de gasolina. Um candeeiro
aceso e dois dorminhocos, o frentista, no balcão, e um gato malhado de cinza,
numa caixa de óleo vazia. Entre as teias de aranhas, garrafas com os rótulos
corroídos, Hila distinguiu um de conhaque Dreher. Passou a mão na garrafa,
limpou as teias, pediu uma lata de sardinha, um pouco de farinha e dois copos
emprestados. Carlos e sua indagação
peculiar:
—
Que é que é isso meu amigo? Tá doido?
—
É o jeito, Carlinhos, de mais a mais, êta madrugada fria!
—
É – concordou – já estamos fritos, então vamos nessa.
Com
a sutileza de um mestre de cerimônias, Hila serviu-o. Com a tradicional
chavinha, abriu a lata de sardinha. Com o papel de açougue da farinha fez um
prato, derrubou um punhado de farinha, entornou a sardinha em cima com todo
aquele óleo frio que vem embalando as pobrezinhas e com a mão amassou até dar
consistência de massa. Limpou a mão na flanela do carro e ofereceu ao Carlos:
—
Esse “capitão”
tá no capricho! – serviu uma dose
que meiou o copo
de zona. Com a esquerda
apertou a massa nas pontas
dos dedos, arredondou e comentou:
—
Só faltou a cebola – jogou o Dreher na garganta e rebateu com
o “capitão” — Que delícia!
Carlos
torceu o nariz, mas estava sem opção. Que fazer? Tomar conhaque puro de barriga
vazia não dá.
—
Ô Hila, você sabe que
esse “capitão”
me deu até
água na boca.
Prepara um
pra mim!
—
Pra já
Carlinhos. Na guerra, urubu é frango!
Na falta da anchova,
vai a nossa de sempre.
Enquanto Rey roncava no banco
dianteiro, os dois
sorviam o Dreher às chapuletadas. Aí
a viagem ficou interessante, os problemas se acabaram,
as saudades se
dissiparam e os projetos se tornaram os mais mirabolantes,
muito comum
na euforia inicial
do efeito etílico.
—
Carlos, se eu me der bem lá, monto uma editora!
—
Eh, rapaz, nós vamos ficar ricos!
As
horas foram passando, o assunto acabando e os olhos fechando.
—
Amigo a hora é essa. Já vimos o fundo do litro, não tem mais nada – Hila entrou
por cima dos livros ficando quase com o nariz esbarrando no teto. Carlos fez
uma arrumação nas caixas e dormiu meio sentado, meio deitado. Após um litro de
conhaque pareciam num hotel de luxo.
Acordaram,
moídos, com Rey lavando sua perereca substituta com um copo d’água na mão e
toalhinha no ombro.
—
Vamos moçada! Tá na hora!
Carlos
e Hila quiseram morrer. Não fazia muito tempo que pegaram no sono. Se alguém
falasse em sardinha, levaria um tiro. No banheiro do posto, lavaram a cara
escovaram os dentes em profundo silêncio. Hila olhou no pedaço de espelho à sua
frente. Entranhados em seu bigode, alguns grãos de farinha fizeram-no lembrar a
noite anterior. Quase volta tudo.
—
Me dá um refrigerante!
—
Dois!
Beberam,
pagaram e saíram.
Embarcaram, o Rey no meio, Carlos na direção e
Hila de co-piloto. Só
silêncio. Ressabiados, os dois
não se aventuravam a abrir a boca. O refrigerante
foi chacoalhando lá dentro
e parece que a sardinha
resolveu nadar. Na primeira
tossida do Carlos, Hila do outro lado, soltou a bichinha com
todo o acompanhamento. Aí então se formaram dois
repuxos, um de cada
lado. Rey, que
não participara da noitada
e nada vira,
resmungou:
—
O que vocês arrumaram?
—
Coincidência, uma pequena indisposição. Deve ter sido o refrigerante lá do
posto.
Daquele
dia em diante, os dois sentem-se mareados até quando vêem anúncio de sardinhas.
Finalmente
chegaram a Itabuna, cidade que disputa a hegemonia
da região com
São Jorge dos Ilhéus,
conhecida hoje
somente como Ilhéus. Uma cidade
mais confortável,
onde poderiam descansar,
usufruir das comidas
do Hotel da Odete, parada
obrigatória. A todos
os transeuntes que
pediram indicação do melhor hotel,
Odete era uma unanimidade. De fato, a hospitalidade
daquela senhora ecoa até
hoje na consciência daqueles três viajantes que guardam boas lembranças
de Itabuna, em que
pese a efêmera estada.
Recepcionados
pela proprietária,
apelidada “Mãe dos Viajantes”,
estava lá aquela figura
singular com
seu vestido
de chita estampado, de saia rodada, mangas
curtas bufantes, franzidas de elástico com fitas vermelhas de passamanaria,
que cobriam o corpo roliço de uma mulher moça, mas já com as faces
sulcadas pelas rugas que denunciavam a vida
dura que
levava. Seu semblante tranqüilo
e sua fala
mansa colocaram os viajantes em casa.
Na porta do hotel, uma grande
poça d’água
estagnada, verde de líquens e de cheiro fétido
insuportável dava as boas vindas aos
visitantes. Infelizmente, os homens
públicos, ávidos pelo poder
e pelo dinheiro para si
só, desprezam os anseios
das comunidades e a condição
de estarem de passagem pelas prefeituras, construindo a história
de uma cidade e, por
extensão, a de um
país, e deixam aquela podridão diante, talvez,
do local mais
visitado da cidade. É muita falta de
sensibilidade, para dizer o mínimo. Passaram-se mais
de 30 anos e aqueles
viajantes não
se esqueceram desse detalhe.
Acomodaram-se
em um
quarto na parte
de cima, Hila e Carlos, como sempre, juntos. Rey em outro, contíguo,
e devido às suas encrencas
intestinais, pediu uma coisinha leve como purê de batatas
e um bife
grelhado. Hila e Carlos, mortos de fome,
pois haviam posto
tudo para fora durante a viagem, caíram matando:
—
Duas pingas, uma cerveja,
galinha a cabidela,
caruru e dois
acarajés quentes – Carlos se afogou no caruru e pediu bis.
—
Isso é que é comida! Até que enfim acertamos!
Naquela
refeição, já se fez sentir a presença do azeite de dendê, muito saboroso, mas
também perigoso para quem não tem intimidade com ele.
Após
o almoço continuaram os pedidos de cerveja
para amenizar o calor que era muito intenso. A tarde
passou, caiu a noite e os dois
glutões continuavam enchendo a cara, tanto que nem
jantaram, provocando certa ira no Rey. Despeitado pela saúde
dos dois, passava de vez
em quando
em frente
à mesa e rosnava.
Hila
e Carlos eram companheiros de farra e nunca se
sentavam por menos
de 12 horas nos
botecos. Ali
rolavam os assuntos mais
diversos e projetos
mais estapafúrdios
do mundo. Comprar um
barco a vela
da classe oceânica e morar
dentro dele. A convicção
era tão
grande que
por pouco
não foram para
a telefônica fazer a encomenda.
Mas o tempo,
mestre do mundo,
aquele que
põe tudo em
seus devidos
lugares, foi passando e deixando os dois heróis, D. Quixote e Sacho Pança, extenuados e combalidos. Caíram
na cama e desmoronaram. Dormiram como justos.
Morfeu os acompanhou em suas viagens
oníricas. Até onde
terão ido?
No
silêncio da madrugada,
Hila levantou-se para aliviar
a bexiga, na pia
do quarto, tradicional mictório
de viajantes preguiçosos.
Raros eram os hotéis que possuíam banheiros
completos dentro
dos quartos e a explosão
dos motéis ainda estava por vir. Ouviram-se ruídos vindos da barriga do
Carlos, ruídos estranhos
como se suas
vísceras estivessem travando um tremendo combate entre si ou como se alguma tempestade
estivesse ocorrendo dentro de suas entranhas.
Hila pensou:
—
Ih! O azeite de dendê está começando a fazer efeito!
Antes do Hila pegar no sono, novamente,
de um só
pulo, Carlos alcançou a porta do quarto e foi direto para o sanitário. Fez uma espécie
de ligação direta,
com sua
boca superior
na pia e com
a boca inferior
no vaso sanitário. Despejou tudo que havia
consumido durante o dia.
O mau cheiro
empestiou todo o andar
do hotel. Hila preferiu os pernilongos e escancarou as janelas
do quarto. Travou-se uma batalha
de maus cheiros,
o do sanitário e o da água empoçada na vala
imunda, logo
abaixo das janelas.
Carlos voltou desfigurado, muito pálido e gemendo muito.
Hila foi até uma farmácia
de plantão voltou com
aqueles tradicionais Elixir Paregórico, Eparema e Bicarbonato.
Se não sarasse teria que ser internado.
Humor
nunca foi o forte do Carlos, nessa situação, então, nem é bom pensar. Hila
pisava em ovos para não provocar o companheiro. Numa das idas à pia para
urinar, tomou um esporro:
—
Não estás vendo que isso aí é para lavar o rosto e não para urinar? Onde está
tua higiene?
—
Calma, Carlos, os engenheiros projetaram esta pia, já pensando em quebrar o
galho dos viajantes. Podes ver que a altura está fora das normas da ABNT, ela
está um pouco mais baixa, exatamente para não sacrificar e nem discriminar os
baixinhos. Tem muita gente boa que usa esse recurso como, por exemplo, o Stanislaw
Ponte Preta, o homem das “certinhas”. E ele não é pé-duro, é gente fina da
alta. Mas não seja por isso, a próxima mijada vai ser pela janela.
Virou-se para o lado e dormiu.
Aí, começou o cano da dita pia a gargarejar. Nunca se viu isso. Parecia
propaganda do Anapion. Não parava um minuto. Hila pensou:
—
Era uma vez uma pia
– e não deu outra.
Carlos
levantou-se transtornado, passou a mão
no cano de chumbo
do escoamento e o arrancou da parede. Sobrou reboco,
areia e cal
pelo quarto inteiro e o pior
é que o gargarejo
continuou.
Carlos,
encolhido na cama,
parecia uma fera acuada pronta para dar
o bote. Hila pensou na hora em que a proprietária
visse o estado do quarto.
Apressou-se em descer
e falar para não incomodar, pois o Carlos iria dormir até mais tarde. Tomou o seu
café e falou com
o Rey:
—
O Carlos precisa de você lá em cima.
Foi
até a Estação Rodoviária pegou um coletivo para São Jorge dos Ilhéus e foi
visitar uns parentes, deixando o problema para trás. Quando o Rey entrou no
quarto e viu aquela bagunça, entrou em parafuso. O homem era muito certinho.
—
O que aconteceu por aqui?
Quase
que levou uma dentada do Carlos, que por fim respondeu entre dentes:
—
Um acidente. Tropecei na cama e quebrei a pia. Pode deixar que eu pago esta
merda.
Rey
podia ser tudo,
menos burro.
Antes que
levasse um coice,
encerrou o assunto e desceu pisando duro.
Hila
voltou à noite com
a notícia de que
seu primo
havia sido assassinado a pauladas lá em Ilhéus. Se
por esse
lado as coisas
não eram boas, pelo
menos Carlos já
havia se recuperado após a aplicação dos antídotos de dona Odete e agora
estava com o semblante
mais sereno.
Hila, amedrontado com a situação em
Ilhéus, confabulou com Carlos:
—
Vou chegar àquela cidade e os assassinos pensarão que vim para vingar a morte
de meu primo, devo me resguardar e precaver-me. Vou comprar um revólver!
Carlos,
cético, ponderou:
—
Que é isso rapaz? Comprar revólver? Tu não és nenhum pistoleiro. Vais ficar
andando armado com a gente? Isso é crime. Não faz isso.
—
Não, Carlinhos, tenho que zelar
pela minha
integridade física
e a de vocês, porque certamente eles
vão pensar que tu e o Rey
fazem parte da minha
gangue.
—
Então faz o que tu quiseres. Não enche o saco. Esse troço vai ser uma dor de
cabeça a mais, ouve o que estou te dizendo.
—
Deixa comigo.
Hila
sabia como chegar
aos contraventores. Comprou um Smith & Weson, calibre
32, lindão, e uma carga de munição.
—
Agora tô berrado, qualquer coisa, meto fogo!
Carlos
meneava a cabeça negativamente.
—
Tu és doido.
Rey
nem sonhava.
Na manhã
seguinte, após
o café, despediram-se de dona Odete e foram
para São
Jorge dos Ilhéus. Próximo ao cais, hospedaram-se no Hotel
D. Pedro II. Um belo sobrado de dois andares com as
tradicionais escadarias de madeira e ferro, onde
se sentia a pujança dos tempos em que o cacau
daquela região abastecia o mundo, trazendo riqueza e
fazendo a fortuna dos fazendeiros
daquela região. O casario
bem demonstrava o que
foi aquela cidade no passado. Hoje, com
a queda do preço
do produto no mercado
internacional e devido
a uma praga chamada
vassoura de bruxa, São Jorge dos Ilhéus sobrevive com
grandes dificuldades.
Vale ressaltar a grandeza do seu
povo simples
e hospitaleiro. Como não poderia ser diferente,
sentia-se no ar um
clima de magia
e mistério próprio da Bahia. Em suas
incursões pelas madrugadas
com os passos
claudicantes de cerveja e pinga, Carlos e Hila, inebriados, totalmente
envolvidos pelo ambiente,
pareciam ouvir gemidos
de negros e mucamas
como se fossem uns lamentos
vindo do âmago daquelas senzalas
hoje desativadas, mas
ainda latentes
naquele lugar. A imaginação voou longe e os romances
de Jorge Amado com
personagens vividos
ali a excitaram ainda mais. Naquela época, o sucesso das oito
horas da noite,
era a novela
da Globo, Gabriela Cravo
e Canela, com
Sônia Braga fazendo o maior sucesso. A novela
retratava o romance de uma mulata por um turco. Tão bem escrito por
Jorge Amado, exatamente
naquela cidade. Podia-se trilhar
o roteiro de toda
a estória, visitando lugares e
conhecendo personagens ainda vivos. Não se podia comentar, pois os amantes protagonistas do romance,
ainda moradores dali, tornaram-se inimigos figadais.
Rey pediu ao Hila sua
malinha 007 que estava dentro da Kombi. Hila pegou a malinha pela alça e
conseguiu chegar até
o hall do hotel.
Ali, como se de propósito,
a caprichosa maletinha um verdadeiro
repositório, arreganhou-se toda, deixando cair uma farmácia inteira no chão. Havia de tudo, supositório
para hemorróidas,
Tagamet, Carbo Levedo, mas o pior
foram os comprimidos da flora, a granel.
Cada um
escolheu uma direção para
rolar. Os rapazes da recepção, para
mostrar solicitude,
atiraram-se de joelhos no chão e, na ânsia
de catar os comprimidos
fugitivos, foram trombando uns nos outros, criando ali
uma cena de filme
pastelão. Um
curumim rasgou as calças
de popa à proa, exibindo sua genitália de bico de chaleira.
—
Não, não foi nada – e às pressas saiu de cena.
O
Hila, com cara
de abestalhado, não sabia o que fazer, olhando na cara do Rey, com a pasta vazia pendente na sua
mão.
—
Desculpe, desculpe, a culpa não é minha, esse
fecho deve estar
enguiçado!
Rey
bufava. Por pouco
não teve uma síncope
cardíaca. Quem
olhasse naquela hora na cara
do Carlos não se conteria. Foi exatamente o que
ocorreu quando o olhar
do Hila encontrou-se com o do Carlos.
Houve o que se chamava antigamente um frouxo de risos. Dali
em diante
o Rey não pediu mais
nada ao Hila. Quem sofreu foram os degraus da escada
de madeira sob
o forte impacto
do salto do sapato
do Rey que se fez ecoar
pelo salão de
refeições e por
todo o hotel.
Carlos
e Hila eram conjurados, coniventes, amadrinhados e debochados. Eram jovens e queriam
viver. Viver intensamente a suas maneiras. Entreolharam-se:
—
Ao Vesúvio!
Aliás,
quando ainda no Rio de Janeiro traçaram o roteiro da viagem, estabelecendo uma
estada em São Jorge
dos Ilhéus, na cabeça dos dois jovens mancebos não passou outra coisa senão
sentar-se no Vesúvio com uma cerveja gelada e apreciar os tira-gostos do Nacib.
E agora, finalmente, estavam os dois ali, extasiados, diante do templo do
prazer consagrado a Baco, uma meta estabelecida que acabara de ser atingida.
Decoração aconchegante, com cadeiras de vime na calçada, propiciava um clima
exótico e muito romântico.
Com a sofreguidão
e o carinho do amante
que deflora sua
amada, sorveram o primeiro
copo. Quibes
fritos de ótima
qualidade serviam de tira-gosto. Vestido de chitão
estampado, saias rodadas, decotes generosos,
mostrando lascivamente os seios, entraram duas lindas morenas, representantes mais autênticas da raça que embeleza aquela região.
Miscigenação perfeita.
Cabelos anelados,
olhos de gato
e dentes alvos.
Pernas torneadas como
se com a ajuda
milimétrica de um paquímetro. O vestido de fazenda
lhes caía sobre
as ancas, exibindo seus
exuberantes contornos
curvilíneos. Sorriso
brejeiro, aquelas morenas eram a imagem
da tentação e do desejo.
Carlos e Hila entreolharam-se como se lobos fossem diante
daquelas indefesas ovelhas. Lamberam os beiços, esfregaram as mãos
uma na outra e deixaram que a imaginação
navegasse pelo infinito
afora. As duas perceberam que haviam agradado e, então,
exageraram nos trejeitos,
rebolados e na concordância
verbal. Hila não
se conteve:
—
Por favor, as senhoritas moram aqui?
—
Sim, moramos!
—
Não gostariam de nos fazer companhia? Somos viajantes não conhecemos nada por
aqui. Gostaríamos que nos mostrassem a cidade. Não querem se sentar conosco?
Com
toda a simpatia as moças aquiesceram ao convite.
—
Como se chamam?
—
Rosa e Camélia.
—
Não poderia ser diferente, duas lindas flores de tão suave perfume, chegaram
para enfeitar nossos jardins — romanceou o Hila.
Mais cerveja e quibes fritos.
A conversa foi-se tornando picante
e adentrando pela noite.
À medida que
o efeito das cervejas
aumentava, tanto nas idas ao banheiro,
quanto na liberação
da libido, o assunto
se tornava mais excitante.
As morenas, de maneira velada, com seus trejeitos sensuais,
deixavam aparecer os lindos
bicos, da cor
do chocolate, dos seios
carnudos. Eram duas verdadeiras esculturas em
mogno. Naquela altura,
mãos e pernas
se roçavam já sem
o menor receio
do olhar indiscreto
dos outros freqüentadores
do bar. Não restava mais
nada a conversar.
O assunto teria que
se encerrar da forma
tradicional, selado com uma boa trepada
na areia da praia,
em frente
à igreja, contando com
a proteção de Deus
que abençoa os amantes
inocentes.
Os
dois comparsas
não precisavam trocar
palavras, como
se fossem dois mestres
no jogo de pôquer,
apenas um
olhar e já
sabiam exatamente qual
seria o próximo passo.
Contavam com a conivência
das parceiras que já
deveriam estar molhadinhas e prontas para o coito. A madrugada
ainda era
uma criança. Pagaram a conta
e saíram os quatro, abraçados, levando consigo a irresponsabilidade
natural daqueles ávidos
pela volúpia
dos prazeres da carne.
Passaram pela praça
em frente
à igreja, tiraram os sapatos, desceram na areia.
Aninharam-se próximo à arrebentação,
mantendo uma distância conveniente
entre os dois
casais para que as moças mantivessem seus
recatos. A lua
furtiva espreitava por
detrás das nuvens
como se fosse um
voyeur.
Displicentemente
as duas tiraram os vestidos,
demonstrando desenvoltura e prática. Com os pés, afastando a areia
para os lados,
fizeram uma forma côncava
para o corpo
deixando a parte mais
alta para travesseiro. Cuidadosamente forraram o chão com seus vestidos. Diante de todo aquele ritual
os dois varões, alucinados, tiraram o restante da
roupa, amontoaram ao lado de cada um e, ávidos pelo prazer, deitaram-se sobre
aquelas deliciosas fêmeas que exalavam cheiro
de carne, sexo
e desejo.
Beijos,
juras de amor,
galanteios, gemidos,
sussurros, penetrações sucessivas e,
finalmente, o orgasmo de ambos os casais.
Parece que a palavra
coitado vem de coito,
pois os dois eram
verdadeiros coitados esparramados na areia. A forração com
o vestido, pouco
adiantara, os quatro estavam cobertos de areia.
Pelados, correram para a água
morna naquela madrugada
fresca. Sem
qualquer cuidado
com os cabelos,
as moças pularam de cabeça e a lua, envergonhada,
iluminou aquelas bundas rígidas,
maravilhosas, afundando e emergindo num movimento
natatório semelhante ao dos golfinhos.
Os
cavalheiros passavam as mãos nos corpos das fêmeas,
sob pretexto
de tirar-lhes a areia, e assim foi que, novamente, dentro
d’água, entregaram-se aos insuperáveis prazeres
do sexo. Com
as pernas trançadas em
volta da cintura
dos machos, as fêmeas
fogosas repetiam o movimento de uma gangorra, no início, acelerado, deixando-se penetrar
até o âmago
de seu aparelho
reprodutor, numa profunda
volúpia de prazer,
até atingir o
clímax.
Exaustas,
jogaram-se para trás,
amparadas pelos braços
dos companheiros, de forma
que seus
cabelos flutuavam à tona.
Silêncio absoluto.
Nenhuma palavra. Somente
gestos lentos.
Aos poucos foram saindo de dentro d’água.
Deixaram-se secar ao vento.
Colocaram as roupas e com os sapatos
nas mãos dirigiram-se rumo à calçada.
A trajetória foi interrompida pela silhueta
de dois mulatos
altos vindos na direção deles. Os quatro estancaram para ver o que iria acontecer. Ao se aproximarem, as mulheres
procuraram proteção atrás
do Hila e do Carlos.
—
Essa mulhé que tá contigo é minha – falou um dos mulatos apontando para o Hila.
Hila
era um diplomata, mas em situações iguais àquelas se transtornava e virava o
demônio.
—
Tua uma merda! Ela pode ser tua outra hora. Agora ela está comigo, é minha e
ninguém põe a mão.
O
cara deu um passo para trás e sacou de debaixo da camisa o que eles chamam de
peixeira, disciplina ou lambedeira, de aproximadamente um palmo de lâmina.
Hila, acostumado com as manhas
do futebol de praia,
enfiou a ponta do pé
direito na areia
e jogou-a no rosto do meliante. Quando o
outro quis reagir,
o Hila já estava de revólver
em punho,
que portava no cós
da calça, aproveitando a regueira da bunda
para não fazer volume e para que ninguém percebesse.
—
Joga a merda dessa faca no chão e ponham as mãos na cabeça! Carlinhos, revista
esses filhos da puta.
Carlos
pegou a faca e encontrou somente
um canivete
no bolso do outro
assecla. Para
não perder a viagem, deu-lhe uma banda
e o malandro se estatelou na areia.
—
Agora é pra correr. Sumam daqui, sem olhar para trás.
Manda
quem pode, obedece quem tem juízo. Os dois bateram em retirada.
Depois
daquele exaustivo exercício sexual, a adrenalina do susto serviu para repor as
energias. Pegaram a Kombi que estava
estacionada em frente
ao Vesúvio, entraram os quatro na frente e, enquanto
as mulheres matraqueavam, os dois conjeturaram sobre
aquela aventura. Aí
vem a maldita ressaca
moral. O arrependimento.
—
Se pegarmos uma gonorréia, corro o risco de levar doença venérea para minha
casa! – meditava o Carlos.
Hila,
com o mesmo receio, lembrou-se do Benzetacil de 1.200
mil unidades. Ainda um pouco ofegante, ruminava o ódio daqueles dois
temerários que tentaram interromper seu idílio. Com a autoridade de um xerife,
entrou na conversa das duas:
—
Os caras são cafetões de vocês? Recomendem para que respeitem homem, senão a
qualquer hora, vão amanhecer com a boca cheia de formigas.
—
Nada! Cafetão porra nenhuma. Me comeu uma vez, agora acha que é meu dono.
Vira
à direita, dobra à esquerda e naquele portão verde, único acesso a uma modesta
moradia de quatro cômodos, sem reboco, dependurada numa pirambeira:
—
É aqui que moramos!
Deixaram
as moças, deram-lhes uns trocados e beijinhos de despedidas. Uma tremenda sensação
de alívio tomou conta
dos dois, como
se tivessem puxado a cordinha da descarga após uma boa defecada.
Entre risos e temores
lá foram os dois
na alta madrugada,
procurando o Hotel D. Pedro para um merecido descanso. Lá chegando, entraram de mansinho e dormiram
como justos.
Na manhã seguinte,
foram despertados pelo Rey, o homem
que colocava os irresponsáveis
e românticos boêmios no trilho. Com um misto de ciúme e desconfiança tentava repreender
os dois:
—
Vocês não tem juízo nem responsabilidade!
—
Temos sim. Não deixamos as mulheres na rua. Deixamos as duas em suas casas.
Fomos até muito cavalheiros — disse o Carlos.
—
Além do mais, salvamos duas inocentes senhoritas de serem estupradas por dois
marginais — emendou o Hila.
—
É mesmo? – quis saber
o Rey.
—
Isso mesmo. Não fôssemos nós, certamente a foto
das duas estaria estampada na primeira página do jornal
— concluiu o Carlos, após matar
a curiosidade do velho
descrevendo o acontecido com floreados e
exageros.
A
vida não é só farra e prazeres. Tem que se ganhar o pão. Dia de branco, foram os três cumprir seu ofício.
Somente Carlos se saía bem. Entrou no grupo escolar. Pediu licença, parou a
aula e caprichou na apresentação daquela coleção infantil. A única coisa que
ela possuía de interessante e que chamava a atenção, eram as ilustrações feitas
com esmero, num colorido vivo, em papel de primeira qualidade e encadernação
perfeita, resultando numa bela obra. Formato 60x40 cm, de capa dura, uma
beleza, com o “detalhe” da péssima História dos Descobrimentos.
A
garotada ficou louca. Foi necessária a intervenção da mestra, pedindo silêncio.
Carlos, então, organizou uma fila, pediu licença
à professora, sentou-se à sua mesa e numa lauda
de papel almaço,
foi anotando o nome e o endereço dos
interessados. Hila assistia àquela aula
de vendas com
um misto
de timidez e vergonha.
À noite,
após o jantar, naquele horário em que toda a família está reunida, começou a peregrinação
do Carlos de casa em casa. Em
cada uma na qual
o deixavam entrar, uma nova
repetição daquele teatro
que havia representado nas salas de
aula. Podia ser o pai
de coração mais
empedernido que
fosse não resistia à estratégia do Carlos e presenteava o filho com uma coleção. Desta forma, o volume de dinheiro foi
aumentando assustadoramente. Rey sorria de orelha
a orelha, enquanto
Hila ajudava o Carlos a organizar os pacotes,
acondicionando-os em uma pasta dita 007. Com isso, o peso da
Kombi foi sendo aliviado. Assim foi que das coleções
que levavam, restaram muito poucas para serem
vendidas em Salvador. Com a sensação
do dever cumprido, Carlos e Hila saíram do hotel passeando de carro.
Aproveitando um lugar
ermo por
onde passavam, Hila sugeriu:
—
Vamos exercitar nossa pontaria?
—
Olha, isso é perigoso, se algum policial nos pega vai dar um bode danado!
—
Que nada, aqui não tem ninguém.
—
Então vamos — concordou o Carlos, para não ser desmancha prazeres.
Pegaram
um coco
seco, colocaram sobre
um pau
fincado no chão
e tomaram posição de tiro. Primeiro Hila. Fez pose,
puxou o cão para
trás e mandou fogo. Tec, tec, tec, tec,
tec, nenhum tiro
disparado. Todos negados. O revólver que o Hila
havia comprado e que os tinha salvo do achaque dos marginais
na praia, não
deu um tiro
sequer. Tinha
uma cápsula deflagrada com a casca
encravada no cano. Decepcionado, Hila lançou um olhar desolado para o Carlos, que
naquelas alturas não
parava de rir. Se naquela noite
na praia os bandidos
imaginassem, levariam as mulheres e ainda deixariam dois pelados esfaqueados na areia.
—
Demos sorte, Carlinhos! – murmurou o Hila — Pelo serviço prestado, valeu o
preço pago. Vamos embora.
Dentro
do carro, Carlos, volta e meia, quando se lembrava da performance do revólver,
disparava uma sonora gargalhada. Pararam novamente
à porta do Vesúvio, na esperança de encontrar
aquelas fogosas donzelas. Sentaram-se à mesa
e saborearam as delícias do Nacib,
entremeadas por cervejas
estupidamente geladas. A noite foi
passando lentamente e ao perceberem que não seriam
premiados com um
novo encontro, pagaram a conta
e se retiraram para o hotel.
Ao estacionar o carro,
já no silêncio
da madrugada, os dois
ouviram ao longe como
se fosse um gemido,
o som de um
pistom ou trompete.
—
Carlos, vamos lá? Pode ser que renda alguma coisa.
Carlos
não enjeitava uma parada. Lá foram os dois por entre becos, vielas e
casarões sombrios,
na periferia da zona
portuária, seguindo o lamento daquele pistom solitário.
Finalmente chegaram até
um velho
sobrado. Uma escada
lateral dava acesso
ao segundo andar,
de onde vinha
aquela melodia maviosa.
O
andar de baixo deveria ser
armazém para depósito de cacau,
pois de lá
emanava um cheiro
acre insuportável.
Da porta de entrada
do salão não dava para
fazer nenhuma avaliação, pois
era uma escuridão
terrível. Só dava para
perceber, pela
lâmpada que
mais parecia uma brasa,
colocada acima da cabeça
do músico soprador do pistão, que o comprimento do salão
era imenso.
Aguardaram um pouco,
para que se
acostumassem à escuridão, o suficiente
para que as pupilas chegassem ao lugar.
Tateando,
sentaram-se a uma mesa e foram atendidos
por um
mulato alto
de terno branco
e sapatos brancos,
o próprio gigolô
de gafieira.
—
Os cavalheiros vão tomar o quê?
—
Uma cerveja. E dois copos.
—
Temos também umas meninas! Se quiserem...
—
Manda duas, não somos homens de beber sozinhos.
Chegaram
e sentaram-se à mesa, duas silhuetas de mulher.
—
Mais dois copos.
Em
poucos minutos estavam os quatro dançando, rosto colado e fervendo de tesão.
Sentaram-se, poucas palavras e muitas ações. Por sob a mesa o pau comeu.
Braguilha desabotoada, penis erectus,
o sexo oral se fez presente. De repente, Hila perguntou:
—
Onde é o banheiro?
—
Ali, próximo à entrada – respondeu uma das fêmeas.
Hila
cutucou o Carlos por debaixo da mesa. Como tinham uma sintonia perfeitamente
afinada, levantaram-se os dois para
ir ao banheiro.
—
Carlos, essas porras são veados!
—
Não brinca! Já estava desconfiado! – disse - Pois fui enfiar o dedo na xuranha
da nêga e encontrei uma tremenda mandioca. Vamos nos mandar.
Na
saída do banheiro,
havia um balcão
em forma de
cercadinho onde ficava o gigolô. Para alcançar
a porta de saída
teriam que passar
por ele.
O homem estava meio
sonolento e já
era de idade
avançada. Os dois
saíram do banheiro, amistosamente
encostaram-se no balcão.
—
Gente boa, será que
você pede para o trompete tocar Perfídia Adoramos esse
bolero!
Inocentemente o homem saiu do cercadinho e começou a caminhar
em direção ao
palco, no fundo
do salão. Os dois
aproveitaram e se escafederam pela escadaria.
Os
veados, interessados em dar
um suador nos
dois incautos,
deram o alarme:
—
Pega os playboys, eles estão fugindo sem pagar!
Os
dois que já iam pelo meio da escada
saltaram por sobre
o corrimão e caíram na calçada
em desabalada
carreira. Chegaram exaustos
ao hotel. O porteiro
assustado perguntou o que havia
acontecido.
—
Um monstro de um cachorro nos botou para correr. A propósito, assim que o dia
clarear, nos acorde e feche a conta que vamos partir.
Evidente que gente estranha em cidade do interior só
pode estar no hotel.
Cedo, os dois seriam encontrados. Angustiados, não conseguiram pegar no sono. Antes mesmo do raiar do dia, já estavam
prontos. Agora
era explicar
ao Rey.
—
Carlos é contigo! – disse o Hila.
—
Tudo tem que ser eu?
—
É lógico, tu já és genro e eu não sou nada. De mais a mais tu és bom de
argumento.
—
Rey acorda!
—
O que houve?
—
Temos que ir embora agora.
—
Mas, por quê?
—
Estivemos conversando com uma professora e ela falou que os pais vão devolver
aquelas coleções que nós vendemos.
O homem que não gostava que
mexessem no seu bolso, de um pulo só já estava pronto para viajar.
—
É besta! Depois de tanto sacrifício? Vamos embora agora!
Sem
perguntar pelo café da manhã, colocou seu repositório dentro do carro, pagou a
conta do hotel e adeus São Jorge dos Ilhéus. Rey nunca soube o verdadeiro
motivo daquela acelerada retirada.
De volta
à estrada, lá
se foram. Desta feita, “o incrível
exército de Brancaleone” se dirigia a Salvador, destemidamente.
Ali fariam fortuna.
Finalmente, após pequenos percalços,
chegaram a Salvador. Era
final de semana,
precisamente sexta-feira à tarde. Hotel
Chile, na avenida Chile, era o ponto dos
caixeiros-viajantes. Na portaria
preencheram as fichas e a distribuição tradicional dos quartos: Carlos e Hila em um apartamento, Rey em
outro, ao lado.
Banho tomado ficaram na frente
do hotel, vendo as moçoilas passar. Jantaram uma boa comidinha baiana
e com o tradicional palitinho no canto da boca, já foram traçando os planos
para a segunda-feira. Todos
entusiasmados com a possibilidade de lucros fáceis. Carlos e Rey foram até
a telefônica assuntar
com suas
famílias. Hila que não
tinha nem
passarinho para
tratar, falou:
—
Vou pegar um cinema.
Dirigiu-se
à Baixa do Sapateiro e, sem saber de nada, comprou o ingresso para assistir O
Retrato de Dorian Gray. O filme já havia começado. Com
a vista já
habituada à escuridão do cinema,
ele percebeu que
alguns olhares
em vez
de se dirigirem para a tela
estavam se dirigindo para ele.
O cinema estava relativamente
vazio. Minutos
depois, um daqueles que
lhe dirigia o olhar,
audaciosamente levantou-se de onde estava, na fileira
de cadeiras da frente,
e veio sentar-se ao seu
lado. Hila sentiu-se desconfortável e logo percebeu do que
se tratava, mas deixou o barco
correr para ver o que iria acontecer. Aos poucos
o rapaz foi passando a mão direita no seu joelho, foi
subindo, subindo e o Hila deixando. O rapaz
desabotoou a braguilha da calça
do Hila, botou o pau dele para
fora e iniciou uma célebre punheta.
O
Hila quando queria ser
moleque, o era
com perfeição.
Quando o veado
já estava bastante
excitado, Hila num movimento brusco com as
duas mãos, segurou a mão e o pau do veado, que disparou a berrar:
—
Ai, ai, larga meu pau!
Acenderam
a luz do cinema,
o veado estrebuchava querendo se desvencilhar das mãos
do Hila, mas foi impossível.
Chegou o lanterninha com o gerente
do cinema.
—
O que está acontecendo aqui?
Hila
franzindo o sobrolho, com olhar
austero reclamou:
—
Não se pode assistir ao filme sossegado que este tipo asqueroso vem importunar
a gente! Vou chamar a polícia!
—
Não doutor, não se avexe! Vamos resolver na paz!
O
lanterninha pegou o cara pelo cangote e, debaixo de uma tremenda vaia e
gargalhadas de ironia, sentou-lhe um ponta-pé na bunda e atirou-o no meio da
rua JJ Seabra. Apagadas as luzes, Hila saiu sorrateiramente. Mesmo assim foi
seguido até o hotel por uma outra gazela, que foi até bater na porta do quarto.
Hila, com receio de ser algum amigo do cara do cinema que viesse tirar
satisfação, não teve dúvida. Pegou o revólver entupido, abriu a porta de
repente, enfiou o cano no peito do cara, arrancando até pedaço de pele, e
perguntou:
—
Que é que foi? Se manda se não quiser levar um tiro na bunda.
A
boneca deu um
grito e caiu desfalecida no chão.
Outro rififi. Chega o gerente do hotel
acompanhado pelos
auxiliares da portaria, que se deparam com aquele corpo caído no chão. Sobrado antigo, assoalho de madeira, a queda deve ter feito um tremendo esporro lá
em baixo.
Bateram
à porta do apartamento do Hila.
—
Pois não?
—
O que houve?
—
De que estão falando?
—
Deste cidadão caído aqui no chão?
—
Onde? Ah! Não sei. Deve ter se sentido mal.
E
a bicha voltando a si:
—
Credo! Malvado!
Escafedeu-se
deixando o pessoal do hotel sem saber o que aconteceu.
Chegam
Carlos e Rey.
—
Que tal, boas notícias da família?
—
Oh! Sim, tudo bem! – exclamou o Rey
– andam falando em revolução.
Os militares estão se
articulando para tomar
o poder.
—
Deixa vir – exclamou o Carlos – eles não vão nos proibir de vender nossos
livros, vão?
—
Se os livros tivessem capas verdes, correríamos o risco de ficar sem eles,
poderiam pensar que se tratasse de alfafa — ironizou o Hila.
—
Vou dormir – disse o Rey.
—
Boa noite – responderam os dois em uníssono.
Salvador, bela cidade. Ainda
provinciana, trânsito pachorrento para combinar com o sotaque do povo.
Farol da Barra,
um lugar
aprazível com
um bar
muito bem
situado do outro lado
da avenida, para
que se ficasse estrategicamente de frente para a entrada da barra,
brisa fresca,
morenas bonitas cerveja gelada. Pessoas amáveis,
mesmo sem
se conhecerem, cumprimentavam-se uns aos outros,
inclusive os turistas, de forma
brejeira e simpática.
Amaralina, Jardim de Alá, Pituba, Piatã
e Lagoa do Abaeté. Ser
poeta naquela terra não é muito difícil. A natureza
pródiga e exuberante estimula a
fantasia. O clima de magia
é excitante. Na Lagoa
do Abaeté, numa noite de plenilúnio, no momento
em que
a lua deixa para traz a linha do nascente,
sua imagem
refletida no espelho d’água da lagoa escura, emoldurada pela
areia branca,
era algo
deslumbrante. Um
verdadeiro tributo
aos amantes apaixonados.
Segunda-feira, finalmente, os três
companheiros acordaram cedo. Despertados pela
excitante expectativa
de bons negócios,
estavam todos mais
agitados do que
o normal.
Banhos tomados, perfumados, barba
feita, ternos
impecáveis e sapatos
muito bem
engraxados, após o café
da manhã, montaram na Kombi e se
dirigiram para a universidade. Carlos estacionou o carro de forma estratégica. Abriu as duas portas
laterais e expôs com
perícia as coleções
que chamaram a atenção
imediatamente dos alunos.
Curiosos fizeram um
pequeno aglomerado
junto ao carro
e o bolo foi crescendo.
Hila fazia as relações públicas com a rapaziada.
Aos poucos a conversa
foi descontraindo a tal ponto
que parecia até
se tratar de velhos
conhecidos.
Carlos
não perdia tempo. Já tinha tanta habilidade
no manuseio dos livros que quando um interessado lhe perguntava sobre alguma
determinada lei, ele já abria direto na página do Código Penal que trazia o
texto. Quando não
acertava, errava somente o caput. Foi um sucesso total de vendas.
Livros para pronta entrega.
Sem risco.
Pegar, pagar e levar para sua
estante. Se interessasse, entregávamos em casa também. Muita mordomia para a época. Carlos com seus argumentos
ia convencendo a todos a adquirirem seus livros. Era um exímio vendedor.
Às vezes Hila se entretinha, observando
a magia que
Carlos usava em seu
discurso. Rey recolhia o produto da venda,
anotava endereço para
a entrega e Hila se deliciava com o sotaque
da rapaziada a sua
volta, falando de amenidades, exaltando com ufanismo os
prazeres da boa terra. Nessas alturas, não somente os rapazes mas também as
moças participavam daquele papo alegre e jovial.
Moças lindas e menos lindas, nenhuma feia. Impressionante.
Hila, que não
perde tempo, notou o olhar mais
agressivo e mais
permissivo de uma daquelas beldades. Não
demorou para que,
de mãos dadas, sob
o olhar de censura
do Rey, fossem os dois passear
dentro do campus, sob o pretexto
dela mostrar-lhe a universidade e sua sala de aulas, particularmente. Lábios
carnudos, seios
fartos com
decote audacioso
para aquela época, olhos amarelados de pantera
e um quadril
de fazer inveja.
—
Meu Deus! Uma nova edição de Marta Rocha. Muita areia para o meu caminhão —
pensou Hila.
Seu nome?
Deusa. Era a própria.
Carícias, perguntas
e respostas, com
o corpo ardendo de desejo,
os dois tiveram de se conter
e desviar o pensamento
para guerra, atropelamento, hospital, a fim de evitar uma explosão da libido.
De
volta ao convívio com os demais colegas, com o olhar no chão, os dois,
desconfiados com as faces ligeiramente ruborizadas, retomaram o rumo da
conversa até que os batimentos cardíacos voltassem ao normal. Romeu, um
simpático bacharel baiano, ainda deu uma gozada no Hila, que, sem graça,
retribuiu com um sorriso de soslaio.
Rey
ria de orelha
a orelha com o sucesso
das vendas, mas
quando dava de encontro
com o olhar
do Hila, franzia o sobrolho e fazia bico,
com ciúmes
pela sua
filha. Era
de fazer cócegas.
Hila custava a se conter.
—
Ô sogro, como estão as vendas? – inquiriu Hila num tom de velado deboche.
Arrumando
a garganta, testa franzida, óculos de grau torto nas ventas, semblante sisudo,
com os dedos polegares apoiados no suspensório preso ao cós da calça, numa
atitude acintosa, respondeu:
—
Eu e Carlos estamos vendendo muito bem! – deixando nas entrelinhas o Hila de
fora.
—
Imaginei. Todos os clientes
que contatei e que
compraram os livros foram unânimes em dizer que 80 por cento desse
tipo de venda
é feita em função da simpatia
da equipe. Você com este charme todo e com esse
suspensório está mais para
telegrafista de estação
de trem de filme
de cawboy do que propriamente para caixeiro-viajante.
O
homem bufou, rodopiou em cima do próprio eixo, chamou um táxi e bateu
em retirada, nocauteado pela ironia do
Hila.
Nessas
ocasiões, a maldita cólica
botava o homem para correr
a procura de um
sanitário. Volta
e meia, quando lá
chegava, já não havia mais necessidade do vaso sanitário, mas de um bom chuveiro e roupa
limpa.
Hora
do almoço. Hila e Carlos recolheram os livros depositados em um estande montado
caprichosamente pelo Carlos. Arrumaram direitinho dentro da Kombi e convidaram
Deusa para fazer companhia e ciceroneá-los no almoço.
—
Tenho que avisar mamãe! Vou telefonar! – palavras de Deusa.
—
Traga uma amiga para fazer companhia ao Carlos! – disse Hila.
E
assim foram os quatro, incluindo Laura, a amiga que Deusa trouxera para fazer
companhia ao Carlos. Nas apresentações, Hila ficou estático diante daquela
deslumbrante beleza. Foi preciso que Deusa o cutucasse para que voltasse à
realidade.
Carlos
nadou de braçadas. Certos
homens, às vezes, tripudiam sobre a astúcia
das mulheres, porém,
há horas em
que elas
agem como verdadeiras raposas.
Cúmplices
dessa astúcia, os dois
deixaram que elas
escolhessem o caminho, pois
também se tratava de dois
lobos, acostumados às manhas das cariocas.
Por caminho
pacato e sinuoso,
chegaram a um lugar
bucólico. Um
regato cristalino
e manso surgia de dentro
daquele bosque de árvores
frondosas, onde uma pontezinha de pedras compunha o cenário.
Hoje nem
GPS localizaria aquele belo local. Ao fundo uma construção rudimentar, como
se fora um
velho mocambo,
contagiava o clima de magia.
As
jovens raposas
haviam levado os lobos
a um local
construído para
o namoro.
No alpendre
dianteiro do mocambo,
algumas mesinhas e toscas cadeiras. Na janela, ao lado
da porta de entrada
que dava para
o alpendre, emoldurada pelo
marco pintado
de azul, apresentou-se a simpatia
da Iaiá. Uma bela
representante da raça negra,
gorda, de sorriso
fácil e dentes
alvos. Usava o tradicional vestido rodado de babados
brancos, com
passamanaria vermelha.
Acolheu os visitantes com aquela gargalhada gostosa
e estridente da pombagira e um
largo abraço,
deixando, desta forma, os casais
inteiramente a vontade.
O cheiro de vatapá
era irresistível.
A velha baiana
fez questão de levar os
recém chegados até
a sua cozinha.
Apesar
da pobreza, cozinha
de chão batido,
tudo era
de asseio irretocável. No fogão a lenha, as panelas
de barro ferviam ao som
do crepitar da madeira
seca que
ardia produzindo fogo abundante. Um velho pilão de madeira servia de cama para um gato preguiçoso
que ronronava.
Os
quitutes indescritíveis,
vatapá, xim-xim de galinha
e, em uma panela
rasa de barro,
uma moqueca preparada,
esperando a ordem do freguês para ir
ao fogo.
Por um
momento, aqueles
quatro visitantes curtiram suas individualidades,
esquecendo, por instantes,
do parceiro, distraídos
pelos clamores
do estômago. De volta
à realidade, sentaram-se à uma mesa
e deram vazão ao apetite.
Cerveja gelada, pinguinha, acarajé e pimenta.
Os
quatro comensais
distraíam-se inocentemente, deixando-se levar pela lascívia e
a luxúria, inadvertidamente.
Aí
resolveram almoçar, afinal
de contas, era esse o objetivo principal daquele convescote.
Além do mais,
as moças já estavam ficando embriagadas
e mulher embriagada é muito triste.
Feitos os pedidos, deliciaram-se todos. Rebateram com
um delicioso
efó.
Após
o almoço, o clima
ameno e uma sonolência
irresistível tomaram conta
dos quatro. A baiana, percebendo aquela situação e já com vários anos de janela, chamou Carlos num canto
e disse-lhe que nos
fundos havia uns quartinhos de aluguel. Hila e Carlos não
precisavam falar, seus olhos
falavam por si,
como velhos
parceiros de peraltices.
Entreolharam-se e ao mesmo tempo fizeram o convite às
moças.
Como
era de se esperar, elas relutaram para manter a dignidade até que a imprudência e a indecência
as convencessem a ceder.
E
assim foi que
cada casal
se dirigiu para seu
purrinhém. Esbaldaram-se nos prazeres do sexo,
dormiram e só saíram de lá quando a lua alta iluminava o terreiro.
Passaram-se
mais alguns
dias, as coisas
foram se tornando repetitivas e cansativas. A monotonia
daquela rotina estava deixando os viajantes estressados. A convivência
ficara difícil e um
não tolerava mais
as idiossincrasias do outro, até que Carlos, com
seu temperamento
explosivo, quando
estavam todos juntos,
falou:
—
Não fico aqui mais nem um dia. Acabei de telefonar para casa, não consegui e as
notícias do rádio são as piores possíveis. Dizem que transformaram o Rio numa
praça de guerra. Vou embora.
Todos já
enfastiados concordaram e concluíram que
era hora
de retornar. Para as
namoradas nem adeus. Não deu tempo! Ansiosos com a viagem de regresso,
carregando consigo uma ressaca moral imensa, Carlos e Hila já
se sentiam satisfeitos de se ver livres daqueles belos problemas
que ficariam para
trás. Elas
os acompanhariam em suas
fantasias sexuais
embaixo do chuveiro.
De
volta à BR 101, a Rodovia
do Sol, a viagem
corria tranqüila até chegarem a altura de Governador
Valadares, já em
território mineiro,
quando foram surpreendidos por uma barricada
de soldados do Exército, carregados de metralhadoras, fuzis, caminhões
e obstáculos na pista.
Hila, não querendo se desfazer
de seu revólver
entupido, pediu ajuda ao Carlos.
Retiraram a forração lateral da porta da Kombi e lá
enfiaram o SW. Na hora em que foram
parados, Hila, lembrando-se do revólver, ficou lívido,
a ponto de chamar a atenção
do oficial comandante
daquela operação.
—
Você está escondendo o quê? Está com medo de quê? Porque esse amarelão?
Revistem o carro! – ordenou.
—
Nada não, senhor, estou pálido assim porque sofro do fígado. Comi um acarajé
que não me fez bem — respondeu Hila ao oficial, que não lhe tirava os olhos.
Enquanto
os soldados rasgavam as caixas de livros para procurar algum exemplar marxista,
embora a maioria não soubesse ler, Carlos de forma ladina tentava amenizar a
tensão:
—
Houve alguma coisa? Porque o bloqueio da estrada?
—
É que nos estamos em plena revolução e aí mais à frente vai um comboio de
prisioneiros. Retornem e aguardem a estrada ser liberada! — disse o oficial.
Tratava-se
de presos “perigosíssimos”. Membros da Aliança Camponesa dos Miseráveis, sem
terra, sem teto, sem comida e sem nada. Foram dominados sem resistência, pois
os poucos que se mantinham de pé foram derrubados por uma repentina lufada de
vento que passou por aqueles confins. Manifestaram-se contrários aos princípios
revolucionários de combate à corrupção e à pouca-vergonha dos políticos no
Brasil. Deu no que deu.
Dali
a duas horas retornaram e foram
liberados para seguir viagem.
O pavor
que tomou conta
dos três viajantes
se justificava. Rey era comunista de carteirinha. Caso
aquele oficial
pedisse a identidade dele e confrontasse
com a lista que possuía, certamente
dali seguiriam todos para
o DOI-Codi e, após uma sessão
de torturas, iriam se juntar
aos outros tantos
desaparecidos, enterrados em covas rasas em algum terreno baldio.
Seguiram
viagem todos
tensos em
pensar de ter de passar por outra situação semelhante. Felizmente
tudo correu normalmente
e a ânsia de rever
os familiares fez com
que chegassem rapidamente ao querido Rio de Janeiro. A saudade
era tanta
que até
o tradicional mau cheiro
dos mangues, adjacentes
à avenida Washington Luiz, recendeu como suave fragrância francesa.
Direto à casa
de Rey, lá esperava a parte feminina
da família. Esposa
do Rey, esposa do Carlos e namorada do Hila. Risos
de felicidades pelo
retorno e pelo
sucesso da viagem,
pois sobraram poucos
livros.
Carlos
voltou para o Recife com
sua esposa
e lá se estabeleceu como
sócio do Rey na venda
de livros da editora do sogro. Foi morar na Praia de Boa
Viagem, lugar
de gente grã-fina,
tal foi o sucesso
do negócio.
Hila,
sem aptidão para vendas, sem compromisso
com a vida,
sem passarinho
para tratar e contando com a má vontade
do futuro sogro,
que por
cima de tudo
ainda tinha
ciúme da filha,
ficou desempregado. Ainda teve que pagar o revólver que havia sido comprado com um adiantamento feito pelo Rey. Apertou-se e foi acusado de ter
metido a mão
no dinheiro alheio,
apesar de não
ter sido feito
nenhum acerto
das comissões pelas vendas
que fizera. Poucas, mas
que lhe
renderiam algum trocado.
O homem era
mesmo um
carrasco.
Deprimido,
desempregado e devendo, não teve recurso a não ser apelar a seu
pai que
morava com a família
no Norte.
O
pai do Hila era
uma pessoa de posse,
porém, por princípios
éticos, Hila não
suportava incomodá-lo com assuntos pecuniários,
pois assim
estaria contradizendo a imagem que lhes
passava de ter sido bem-sucedido em sua vinda para o Sul. Sua mãe não se
conformava, escrevia-lhe semanalmente cartas tristes
suplicando-lhe que voltasse.
Via Western telegrafou para seu pai em Belém e
no dia seguinte
a Ordem de Pagamento
estava no Banco. Sacou o dinheiro,
pediu ao caixa que
trocasse o máximo que
pudesse para aumentar o volume e dirigiu-se com
o nariz empinado para
casa do Rey. Em
lá chegando, dirigiram-se até a cozinha,
Hila esperou para que
todos da casa
estivessem presentes, para
que houvesse testemunhas,
e com um
ar altaneiro
e de deboche, arrancou aquele pacote
de dinheiro do bolso
e disse:
—
Da outra vez, se houver, e espero que não haja, antes de macular a honra
alheia, aja com mais retidão. Está aqui o dinheiro do adiantamento da viagem,
faça bom uso. Agora quero minha comissão!
O
usurário pulou no pacote de dinheiro e saiu da cozinha onde se encontravam e
não deu resposta ao anseio do Hila, que fez bonito para a namorada, assistente
muda daquela cena insólita. Era um momento difícil, mas Hila era um destemido.
Não ligava para nada, não tinha medo de nada e já estava contaminado pela magia
do Rio de Janeiro.
Morava
com sua
tia no Edifício
dos Jornalistas, no Jardim
de Alá. Apartamento de sala e quarto, onde dormia numa cama Dragoflex
na sala e sua
tia no quarto.
A cama ficava desarmada atrás
da porta do corredor.
À noite, quando
chegava a casa, tinha
que evitar barulhos, para que sua tia não fosse
incomodada, mas a cama
não cooperava, sempre
dava uns rinchos. (no dicionário só encontrei essa
expressão como relincho, se quiser pode trocar por “... sempre rangia.”)
Nas noites
frias forrava-a com
jornais. Deitava-se com
cuidado, pois
a danada da cama
tinha umas molinhas que
rangiam ao menor peso
e ainda costumavam puxar
os cabelinhos das pernas ou dos braços
causando uma dor fininha de dar vontade de gritar. Ainda havia um outro
inconveniente: tinha que escolher, pois quando os pés estavam dentro, a cabeça
estava fora.
Hila
tirava aquilo de letra. Morava no Leblon a duas quadras da praia. Privilégio de
poucos. Certo dia, quando já estava empregado como bancário, sua tia lhe disse:
—
Hila, terás que arranjar outro lugar para morar, porque o teu primo está vindo
com a mulher da base de Natal, passar as férias comigo. Tu sabes como é. Eles
são recém-casados, ela muito bonita e tu solteiro...
Hila
entendeu tudo que ela quisera dizer nas entrelinhas.
—
Não tem problema, tenho onde ficar!
Quando
chegou a família, o Hila foi defenestrado de seus aposentos. Não falou com ninguém, era do seu feitio não incomodar as pessoas.
Como de costume, à noite quando chegava do Banco, ficava conversando com a
turma, embaixo do prédio até que o último amigo subisse.
Certa
noite, em vez de subir também,
atravessou a rua e fez de cama
um banco
do Jardim de Alá. Naquela época
já existiam por
ali pequenos
furtos. Três
pivetes, que
davam uma busca atrás
de algum incauto,
aproximaram-se e um deles se dirigiu ao banco onde Hila fingia dormir.
O maior deles falou em
voz alta:
—
Esse aí não. Esse é dos nossos!
Hila
também fazia suas
incursões na Praia
do Pinto e costumava tomar
umas e outras na birosca do “Haroldo Treme-treme”. Numa dessas noites,
enquanto dormia no banco,
foi acordado por seu
amigo Paulo Parente,
colega de Banco,
acompanhado de seu
pai, dr. Miguel Arruda, para
garantir mais autoridade à intimação
que faria, e ordenou com voz grave e austera:
—
Vamos para casa!
Hila
não esboçou nenhuma reação contrária, porém queria morrer ali, naquele
instante. O que ele mais detestava estava acontecendo naquele momento,
importunar as pessoas. Tirar dr. Miguel de sua casa àquela hora da noite. Isso
era demais.
—
Um dos meus filhos também está fora de casa. Não gostaria de saber que está
dormindo em banco de jardim – completou dr. Miguel.
Paulo
era realmente um companheiro inseparável do Hila. Trabalhavam juntos no mesmo
Banco e, à tarde, na hora de sair, Paulo ia levar sua namorada a Cascadura e
Hila o esperava no botequim de um simpático casal de portugueses, na rua Dias
Ferreira. Enquanto Paulo não chegasse, Hila não entrava em casa para dormir.
Era o primeiro a levantar-se, arrumava a cama e, enquanto os outros dormiam,
timidamente se retirava para não ser uma carga a mais no café da manhã de dr.
Miguel.
Certa
noite, Paulo atrasou-se. Chegou às duas horas da madrugada, encharcado.
Problemas com o trem. Teve que descer no meio da linha, pular o muro para
conseguir uma lotação que o levasse até a Central do Brasil e dali um outro
para levá-lo até o Leblon. O gentil casal de lusitanos só fechou o bar após a
chegada do Paulo, com pesar de deixar o Hila na chuva do lado de fora. General
Artigas com Dias Ferreira era o endereço daquele singelo botequim. Quando
chegavam juntos ao bar, aquela simpática senhora anunciava:
—
Chegaram os dois amigos!
Naquela
época havia mais respeito e mais carinho com o ser humano. As pessoas se
reverenciavam mais, se abraçavam mais, sorriam mais. A vida era mais simples,
mais amena e os muros mais baixos. Drogado era aquele que fumava maconha, hoje
humilhada em relação às outras drogas pesadas como cocaína, heroína, crack e
artanhas. (também não
encontrei essa palavra, será que se escreve assim mesmo?)
Os
bondes davam certo
ar de romantismo
ao Rio e o Leblon ainda
era uma pacata
província. Se quisessem beber
algo na madrugada,
só se encontrava aberto
um botequim,
onde o lotação
Estrada de Ferro
fazia seu ponto
final, no término
da avenida Ataulfo de Paiva. Ali não havia agitação e o silêncio
era total.
Os
bondes eram a condução
democrática. Só
andava nele quem tivesse dinheiro.
Quem não
tivesse, andava também. Tinha que ser esperto. O trocador
cobrava, banco por
banco, pendurado
nos balaústres. O carona
observava onde ele
se encontrava e também se pendurava no
balaustre. Quando o cobrador
se aproximava, ele descia e subia de
novo no bonde na parte oposta ao cobrador.
Como o bonde
andava vagarosamente, dava tempo suficiente
de descer da parte
de trás, correr
e pegar a parte
da frente. Para
a rapaziada que
andava dura, era
uma solução.
Os
bondes voltavam do Bar Vinte no final de Ipanema. Ali os trilhos faziam um
círculo e eles podiam retornar. Na pausa de fim de linha, o motorneiro e o
trocador iam até o bar tomar uma média com pão e manteiga e deixavam a lança
ativa, isto é, encostada nos cabos de transmissão de força, deste modo, o bonde
continuava pronto para ser operado.
A
turma do Edifício
dos Jornalistas, que
não tinha
a menor responsabilidade,
observava se o motorneiro havia deixado o manete, que comandava a partida
e a velocidade do bonde. Em
caso positivo, um
deles assumia o comando e dava a partida para desespero do motorneiro e
do trocador, que
largavam suas médias
e disparavam correndo atrás do bonde. De quepe, gravata, paletó e sapato de verniz, formavam uma imagem
surrealista.
Quando
o bonde chegava ao Edifício dos Jornalistas, a turma parava o bonde e corria
para trás dos prédios, onde se localizava a birosca do “Haroldo Treme-Treme”.
Era uma alegria para rapaziada ver a cara de desespero dos dois trabalhadores
da Light. No dia seguinte, a manchete dos jornais: “Bonde roubado no Jardim de
Alá”.
O
campeão das molecagens no prédio dos Jornalistas
era o Sérgio, vulgo
“Lacerda”, tal sua
semelhança fisionômica com a do ex-governador.
Morador
do segundo andar
do bloco B, deixava pendurado um barbante até o alcance da mão de uma
pessoa. Quem
puxasse aquele barbante,
tomava um banho
de açúcar que
ele cuidadosamente deixava preparado sobre
um papel de açougue no pára-peito de sua
janela. No auge
das lambretas, sob seu
comando, à noite,
ia uma turma imensa
para avenida Delfim Moreira, na orla
da praia do Leblon. Quando
vinham os lambretistas, a turma se dividia, uma parte ficava de um
lado e a outra, do outro
lado da pista.
Quando os lambretistas estavam bem próximos, alguém dava o grito “Agoraaaa!”, como se houvesse ali entre as
duas partes da turma
uma corda, todos
faziam a mímica de estar
esticando um “cabo
de guerra”.
Os
lambretistas apavorados metiam o pé no freio e as lambretas cantavam pneus.
Os menos experientes
caíam. Quando percebiam que se tratava de uma brincadeira,
queriam encarar, mas
diante da sua
inferioridade numérica, rapidamente desistiam e partiam resmungando. Quando
aparecia um sujeito
muito chato,
querendo se engraçar com
as meninas da turma, chamavam o Lacerda para conversar com ele. Num gesto imperceptível, aproveitando-se da penumbra, “Lacerda” colocava a língua
para fora e com um peteleco, aos pouquinhos, ia enchendo a blusa
do inconveniente de saliva.
Quando o incauto
percebia sua camisa
toda molhada,
ficava sem entender
e, desconfiado, de fininho, batia em retirada.
Determinada
época, chegou do Norte um
rapaz bem
afeiçoado, na força de seus 19 anos e, logo
se enturmou com a rapaziada.
De riso fácil,
chamava-se Pedro. Uma noite de sexta-feira, a turma estava
dura e, conseqüentemente,
sem programa.
Foram
todos para a calçada do lado
da praia, onde
as doidivanas noturnas faziam seus
trabalhos ali
mesmo na areia
da praia e faturavam seus trocados sem que fossem
importunadas por ninguém.
A rapaziada já
gozava de certo privilégio
com as moças, que
consentiam em fazer seu trabalho
a crédito, sem
qualquer burocracia,
talvez porque soubessem que estavam lidando com uma rapaziada
asséptica e não
corriam risco de pegar
uma gonorréia. Além de jovens, os rapazes
traziam consigo a formosura
própria da idade.
Naquela
noite, sentaram-se todos
em um
dos bancos que
ornavam a praia, alguns
ficaram de pé. De comum
acordo, deram uma geral
em seus
bolsos e as moças, em
suas bolsas
cheias de paninhos de asseio, à procura
do que existisse de dinheiro.
Feita a coleta, deu para
comprar, num posto
de gasolina em
frente, um
litro de rum
Bacardi, Coca-Cola, sardinha em lata e farinha.
Aí começou uma bela farra já na areia do
Leblon. O estado etílico
foi aumentando, as conversas foram ficando
picantes e alguns já
estavam bem insinuantes.
Sob a luz
da lua cheia,
as moças foram ficando atraentes, porém uma delas, muito
magra e alta,
de queixo proeminente,
apaixonara-se perdidamente pelo Pedro. Rapaz de boa família
e bons costumes
que, de início,
ficou meio acabrunhado,
mas quando
o rum fez efeito
o moço virou o capeta.
A mulher não
o deixava em nenhum
instante. Ela
havia decidido que
daquela noite não
passava, teria que “tirar
uma” com aquele
pau-de-arara.
—
Porra, tu enches o saco! Queres meter, não é? Então deita aí – disse Pedro,
apontando para a areia.
Com
a prática que Deus lhe deu, em segundos lá estava ela de pernas arreganhadas,
pronta para o coito, pois a calcinha não fazia parte da sua indumentária. Pedro
desceu suas calças e a cueca duma vez e montou naquela figura que parecia mais
um gafanhoto gigante e queixudo.
—
Mas que merdaaaa! Tu és uma merdaaa! Falava em voz alta o Pedro para que toda a
turma que rodeava o casal, fazendo parede, às gargalhadas, aplaudisse aquela
cena bizarra.
—
Não ri! Concentra na trepada! Suplicava a sedutora na ânsia do orgasmo.
O
pau-de-arara insistia:
—
Tu és uma merrrrrrrrdaaa!
Que
deselegância!
Acabada a farra,
no dia seguinte,
Pedro tinha um
novo apelido:
“Pedrinho-mas-que-merda”. Abreviado para “Masque”, alguns confundiam com
“maqui”, revolucionário da resistência francesa, que
acabou soando chique.
Era
comum, a turma
ficar conversando até
altas horas
da madrugada, às vezes
até o raiar
do dia, na frente
do prédio, justamente
embaixo do apartamento
do Raimundo Vasco. Figura
singular, pois
quem se dirigisse a ele teria que ser pelo
sobrenome, caso
contrário, receberia um: “Raimundo é a puta que
o pariu”. A turma mais
íntima tratava-o de Vasquinho e os menos chegados
de “Seu Vasco”.
O homem chegava invariavelmente de madrugada. Baixinho, voz
rouca, invocado,
fumava meia Souza Cruz por dia e era jornalista na United Press ou
Reuters.
Todas
as noites dava plantão.
Não se sabe se de fato
havia o plantão ou
se era uma desculpa
para encobrir suas incursões nos cabarés da Lapa ou em algum carteado do qual
era aficionado.
A madrugada que
perdia no jogo, chegava de mau humor e da janela já
avisava em alto e bom som:
—
Vamos parar com
essa conversa fiada
aí em
baixo que
eu quero dormir, porra!
Um
berro só e a rapaziada se retirava, atendendo ao pedido do querido Vasco. Em
noites normais, chegava e participava do assunto com a moçada. Boa cabeça e boa
alma.
A
turma mantinha um
bom relacionamento com
a rapaziada da cruzada
São Sebastião, com
direito a samba
e futebol em
comum. Porém, uma noite,
houve um entrevero
com um
biscateiro remendão
de nome Djalma, que
morava no nosso prédio,
na lixeira desativada. Ele era o
pronto-socorro das donas de casa. Consertava tudo,
à maneira dele. Diziam que consertou o chuveiro
e o rádio em
um apartamento e que, na hora de testar o serviço, quando
ligou o rádio recebeu um jato d’água e o
chuveiro começou a transmitir
um jogo
de futebol.
Um
tipo pacato,
raquítico, baixinho e quando bebia, e bebia sempre,
transfigurava-se. Ficava invocado e
começava a falar uma língua
que dizia ser
espanhol, porém
intraduzível.
Naquela
madrugada, um
escuro corpulento
batia com vontade
no Djalma. Atravessamos um cacete para ele,
mesmo assim
não conseguia levar
vantagem. Mauro, que
era atleta e
lutava capoeira muito
bem, entrou a seu
favor. Deu uma banda
no malandro que
se espatifou no chão. A turma
dele não gostou. Aí não
prestou. A turma de lá
e a turma de cá
trocaram pescoções, raquetadas, rabos de arraia.
Valeu de tudo.
O
Vasco desceu macho.
De revólver em
punho, botou moral. Diante daquele forte argumento,
um bruto
treisoitão, todos
serenaram. Vasco, distraidamente, ainda meio dormindo,
colocou o revólver no bolso
do pijama. Um
dos pivetes que
já estava de olho
no revólver, sorrateiramente
já ia levando a mão
no bolso do Vasco
quando foi atropelado por um violento cruzado
de direita desferido pelo
Masque. Recomeçou o rififi. Só terminou quando a “Dona Justa” chegou.
Os
desafetos de ambas as facções, extenuados, bateram em
retirada.
A
vida seguia repleta
de alegrias. Na turma, havia de tudo: estudantes, acadêmicos,
até um do Instituto
Rio Branco, trabalhadores, uns mais
outros menos, e outros inteiramente descolocados, que
passavam os dias na praia
ou achacando veadas em
Copacabana.
Masque se adaptara inteiramente ao Rio.
Arrumou um emprego
num escritório no Edifício
Cardeal Arco
Verde, na avenida
Rio Branco esquina com São José. No primeiro dia de trabalho, indagado
se conhecia bem o Centro
da cidade, respondeu afirmativamente. Deram-lhe, então
mais de 20 correspondências
para que
fossem entregues antes
do meio-dia.
Regressou
às 16 horas, suado, morto
de cansaço e quase
perdeu o emprego no primeiro
dia, pois nunca estivera no Centro do Rio
de Janeiro. Incomodava os transeuntes perguntando o nome
das ruas e deu sorte
porque o carioca
é um tipo
solidário. Bem
que seu
conterrâneo que
trabalhava na portaria colocou as cartas em ordem para facilitar
o trajeto, porém,
nervoso, no primeiro
tropicão, foi carta
para todo lado, desfazendo todo o trabalho. Um desastre. Quando
achava o endereço da Rua México, partia para a seguinte, na Praça
Mauá; de lá voltava para
a Almirante Barroso, retornava para a Visconde de
Inhaúma e depois para
a avenida Presidente
Wilson. Coitado, uma perca de tempo
enorme.
Depois de uma desculpa
esfarrapada, dona Iracema Bonifácio, responsável pelo escritório, percebeu sua
dificuldade e permitiu que continuasse no emprego.
Criaram uma grande afeição
fraternal um
pelo outro.
O
problema era
quando havia reunião
do pool do gás
liquefeito de petróleo.
Só magnata. O Masque tinha
que servir
cafezinho para eles.
Sobressaltava-lhe um pensamento:
—
Chi..., se eu deixar
entornar café
no terno de um
desses homens, é capaz
de eu ter que trabalhar de graça o resto
da vida para pagar e acho que ainda não vai dar.
Dali
foi progredindo, passou a bancário, um bom emprego na época. Chegou a receber cem por cento de aumento espontâneo do banqueiro.
Bons tempos do Brasil. Com o salário dava para pagar pensão à tia, o
almoço e ainda podia se dar ao luxo de,
aos domingos, sair
do Leblon e ir ao Paisano,
no Centro, tomar
cerveja e saborear
seu delicioso
espaguete à bolonhesa.
Quando
a grana estava melhor,
a turma ia ao Beco
das Garrafas, nas boates
da moda e, no fim
da madrugada, já
com o dia
raiando, o destino era
o Beco da Fome,
para jogar para dentro alguma coisa quente. Tinha opção para todos os gostos.
Macarrão, carne
seca, feijoada
e tudo o que
se imaginasse. Ali se pode dizer, era uma república democrática.
Encontravam-se boêmios, malandros, prostitutas, veados, cantores,
compositores e o pessoal
da alta sociedade.
Tudo na maior
harmonia e sem
discriminação.
De
Beco em
Beco, a vida
passava cheia de alegria.
Sem compromissos, sem filhos para criar
e sem mulher
para perturbar, não poderia ser diferente. A Província do Leblon era
civilizada. A maioria das pessoas se cumprimentava, pois
se não eram íntimas, certamente se conheciam.
Os
bares mais
freqüentados pela turma,
além, é claro,
do bar dos bons
lusitanos Seu Antônio e Seu Joaquim, na loja
do Edifício dos Jornalistas,
eram o Garden, no Jardim de Alah e o
Clipper, defronte ao Cinema Leblon, na esquina da Carlos Góis
com Ataulfo de Paiva. Este último era a melhor serpentina do Leblon, onde
o chope até
hoje sai no ponto.
O
Garden, a sorveteria e bar Kid’s, com mesas e cadeiras,
já era
mais confortável,
com direito
a menu à la carte, inclusive com camarão e
uma deliciosa pizza.
O
bar era
uma grande família.
O proprietário Bruno, um gentleman. Tratava todos com
a maior distinção,
no que diferenciava profundamente
de seu sócio
Dante, que, por sua
timidez, se retraía, fazendo brilhar mais ainda a performance do Bruno. Triestino, casado
com uma ex-miss China, de beleza
cálida e voz
macia, formavam um
simpático e agradável
casal. Bruno havia sido próspero proprietário
de um cassino
em
Hong-Kong. Tivera que sair às pressas
daquele país e deixar
tudo para trás por imposição da revolução
chinesa.
Os
garçons do bar
eram muito divertidos. Napoleão era o mais antigo. Chico, de garçom
foi para o caixa e dali
mandou vir do Nordeste, um
por um
dos cinco irmãos. Um deles, Raimundo,
tornou-se exímio cozinheiro
sob a orientação
do Bruno que era
um autêntico
gourmet.
Na
entrada do bar,
na parte baixa,
havia uma mesa grande.
Invariavelmente sentava-se à cabeceira
José Guilherme, uma figura notável. Jornalista de gabarito, responsável
pela redação
do jornal Última
Hora. Seus
comensais e “bebensais” que o acompanhavam, a maioria
também jornalista, alguns
iniciantes, como Ricardo e Lucas Mendes,
outros consagrados, como
Lúcio Rangel, esticavam a prosa até altas madrugadas,
principalmente no auge
da repressão. Todos
muito bem
informados discutiam o rumo da frágil democracia,
sem, porém, se esquecer das belas moças que algumas vezes
abrilhantavam a mesa.
Dela
participava também o Lulu, um catarinense arretado, fotógrafo da revista
Manchete. Gostava muito
de tomar seus
porres no Garden por
estar perto
de casa. Quando
resolvia ir parar em Copacabana ou
outro lugar
diferente, com
seu fusquinha verde,
ao sentar-se em algum
bar, chamava o garçom
e, precavidamente, antes
que tomasse a primeira
doze, pedia que anotasse o endereço do bar
em um
pedaço de papel que cuidadosamente guardava em
sua carteira,
para que, no dia seguinte,
soubesse onde havia largado seu fusquinha. Alma
boa e bom companheiro.
Numa
daquelas madrugadas, vindo do Garden,
Masque encontrou-se pela primeira vez com o Thompson. Paraibano de raça,
alto funcionário
do Banco do Brasil e exímio tocador de violão. Em frente ao Hotel
Ipanema, deu uma introdução em lá menor no que, imediatamente, Masque entrou no repertório
do Nelson Gonçalves. Thompson gostou e foi emendando uma na outra. Não
demorou e chegou a polícia. Thompson
puxou da sua carteira
e os policiais se desculparam, tal era o prestígio de um
alto funcionário
do Banco do Brasil.
Entre aqueles blocos do Edifício
dos Jornalistas, havia uma área de lazer com bancos de concreto. Ali a
serenata continuou, com
um detalhe: Thompson morava no 10º andar e lá de baixo, no intervalo
entre uma e outra
canção, com
seu sotaque
carregado, dizia:
—
Deusa (sua esposa),
mande mais uma!
Não demorava, sua
empregada estava lá
em baixo
com mais
uma cerveja estupidamente gelada. Assim foi, até
que o dia
raiou e seu Antonio abriu o botequim. O violão só
silenciou às 15 horas.
Numa
sexta-feira chuvosa, como de costume, Masque tomava seu conhaque sossegado com
sua turma na mesa do botequim de seu Antonio, quando pela primeira vez
encontrou Nerthan, irmão de Thompson, apreciador de conhaque com mel e também
um bom acompanhador com violão.
Tinha
um problema.
Casado, decidiu sair
de casa, pois
cismou que sua
esposa não
o amava como outrora.
Pura cisma.
Pegou os cacos que
restaram da união e gravemente
despediu-se:
—
Deixo aqui meu violão para marcar minha presença e é aquilo a que mais amo
depois de você!
Masque
não gostou daquela decisão.
—
Poxa, logo o violão?
Arranjaram
outro.
Cantaram,
tocaram e beberam durante dois
dias e duas noites,
selando uma amizade que
permaneceria por muitos
anos, contribuindo para o lucro
dos inferninhos de Copacabana e de suas estrelas.
A
vida alegre passava embalada pela banda de Ray
Conif. Não era somente farra e boemia, existia também o espaço para a prática
do esporte. Na praia, próximo
ao canal da lagoa
Rodrigo de Freitas, no Jardim de Alah,
ficava a rede de vôlei nº 1, a primeira rede matriculada
na Prefeitura do Rio de Janeiro,
consagrando sua situação
de tradicional e mais antiga da praia.
Ela
tinha uma peculiaridade: as famílias
freqüentadoras da praia mantinham-se
afastadas dela num raio aproximado de cem metros. Assim evitava-se ouvir os palavrões e impropérios
proferidos pelos atletas no afã do jogo, com os ânimos exacerbados pelo toque involuntário na
rede e não
acusado. Nisso Flávio era mestre. Não
acusava uma única vez.
Deixava os parceiros indignados pela sua cara de pau. Alguns, já
habituados, riam e deixavam pra lá.
Esse
procedimento do Flávio era unicamente durante o jogo.
Fora do quadrilátero,
era admirado por
todos. A rede
sem ele
perdia a graça. Fora
dali, uma pessoa admirável.
Masque, era apaixonado por ele. Flávio
fora seu
amigo mais
admirado. Amigo de emprestar
dinheiro, como
ele próprio
dizia, quando se referia a um grande amigo. Casado em segundas núpcias
com Violeta
Cavalcante, uma das melhores sambistas do Brasil, Flávio Carneiro
da Cunha era
a síntese de um
cavalheiro.
Porte
privilegiado, boa pinta, cabelos negros,
sempre impecavelmente penteados e fixados com
Glostora; voz gutural,
discreto, trajava sempre
calças cinza,
blusa pólo azul
marinho e mocassim. Passava as noites
admirando a Violeta cantar,
pois era seu fã número um.
Tomava café ou
Coca-Cola e se divertia mais do que aqueles que se embriagavam. Dono
de uma boa prosa, onde
estivesse, havia sempre uma roda de pessoas
ao seu redor.
Percebendo
a boa formação moral
e a vocação para
a música do Masque, levou-o para sua casa e aproximou-o da sua
esposa Violeta.
Dali em diante,
todas as vezes que
era convidado
para algum sarau, não deixava de
levar o Masque.
Assim
foi que certa
noite, fora
convidado pelo
eminente dr. Evaristo de Moraes Filho para uma tocata na residência
do nobre causídico.
Recebidos com uma farta
mesa de queijos
e vinhos, a turma
estava completa: Flávio e Violeta;
Vitor e Kate; Thompson, Nerthan, Masque e Bené. Este
último, um exímio violonista,
portador de um
carregado sotaque
paraibano. Era
uma figura hilariante. Com um copo de uísque em uma das mãos
e o violão na outra,
não havia possibilidade dele executar o instrumento.
Puxou um banquinho com
os pés para perto da mesa
de queijos e, quando
ia colocar o copo
de bebida sobre
a mesa, reparou que
havia umas imagens de santos de madeira
em meio
aos queijos, numa situação
meramente decorativa. Bené, meio sem jeito, falou com
seu sotaque
exagerado para o dono
da casa:
—
Dr. Evaristo, desculpe o sacrilégio! — colocando, em seguida, o copo de bebida
junto às imagens, executou tranqüilo seu instrumento.
O
riso foi geral.
A
rede de vôlei, nos finais de semana, era o ponto de encontro dessa turma tão
heterogênea. Havia todo tipo de profissão, desde advogados até clientes
meliantes. Flávio dizia que se algum psiquiatra quisesse defender uma tese
sobre o comportamento dos freqüentadores daquela rede, certamente rasgaria seu
diploma.
O
mais difícil
era a hora
de montar a rede
que ficava guardada na casa do Jorge Penna morador das proximidades.
Comandados pelo Luiz Mangualde, o Lulu, Vasco, Wilson Bolinha e outros
mais malandros ficavam no posto de gasolina,
observando.
Quando
a rede já
estava montada, eles apareciam para jogar a primeira
partida. Vitor, o oficial
mais graduado da rede,
marinheiro de guerra,
era o relações
públicas. Conversava com a praia inteira, especialmente com
as moças, mas na hora de disputar uma partida, era
uma graça. Quando
todos esperavam que
fosse enfiar a mão
na bola, numa cortada
indefensável, eis
que, com
a costa da mão, dava um leve peteleco e a bola nem passava da rede, caía em seu próprio campo. Flávio e Sérgio, o Velho, desejavam morrer, pois não gostavam de perder.
Maneco
também provocava. Paraense de um invejável porte
atlético, moreno, simpático, de riso fácil, não fazia
questão de vencer. Preferia se divertir e fazer o
Flávio ficar desesperado. Subia na rede mais de um metro, mas optava
pelas jogadas de efeito. Os adversários se preparavam para
receber uma violenta
cortada, quando
dava um tapinha com
a esquerda e lá
ia a bola para
fora da quadra.
Sabará não aliviava, subia e mandava a mão. Quem
estivesse do outro lado
que se virasse.
Estrada,
de baixa estatura,
era um
ótimo levantador. Tinha um sestro de estar sempre com a mão direita sobre o estômago
e reclamava constantemente de uma úlcera que o
perseguia. Volta e meia
era pego
de surpresa dentro
da quadra, quando
lhe passavam a bola.
Distraído pela
dor, deixava que ela
caísse no chão. Uns riam outros xingavam.
Dória, Pinga, Maurício, Aleixo,
Fofô, Reubem, Carlinhos, Marino, Pedro Padre, Cumpadre, Sargento, Gaúcho, Duah,
Mazô, Mamado e muitos outros completavam a turma.
Nos dias de vento sudoeste, quem lucrava eram os botecos
do seu Antônio e o Clipper.
Numa
dessas tardes no Clipper, apareceu a figura simpática
do Rud, antigo proprietário
de uma casa noturna,
em
Copacabana. Já
velhinho, cabeça raspada, era uma figura
tradicional na boemia do Rio antigo.
Cumprimentou-nos e com o maior carinho, lhe entregamos, na mão,
um chope
geladinho, mais um
e mais um...
Até que, procurando um
lugarzinho para sentar-se, achou o barril de chope
e ali se acomodou, quietinho e, sem incomodar ninguém, permaneceu ali, cochilando, enquanto continuamos com
nossas conversas entre
uns e outros chopes.
Aquela tarde gris
foi passando e já era
hora do crepúsculo, quando
não se diferencia o dia
da noite, quando nosso Rud despertou da sua
madorna. Olhou para
um lado
e para outro
e mandou, dirigindo-se ao garçom:
—
Me dá uma média com pão e manteiga.
Alguém
perguntou espantado:
—
Que é isso, Rud, café com pão e manteiga?
—
É lógico. Para começar o dia que está amanhecendo não tem coisa melhor.
Foi
motivo de boas gargalhadas. Rud achou que já tinha dormido uma noite inteira e
o dia estava amanhecendo.
Aquela
esquina era
ótima. Quando
não acontecia nada
se esperava a saída do Cinema Leblon.
Numa dessas noites, acompanhado
de sua esposa
dona Sara, saiu o presidente da República
Juscelino Kubitschek. Sem segurança
e sem o aparato
imposto pelo cerimonial. Nada
disso, o democrata presidente dirigiu-se à carrocinha
de pipocas e travou um
pequeno diálogo
com seu
proprietário, também
mineiro de Diamantina.
Eram outros tempos.
A
vida passou, Masque envelheceu. Uma tarde caiu em si, e quando conversava na
esquina, percebeu que a platéia era de meninos de menos de 17 anos. Estava na
hora de mudar de vida, constituir família. E assim o fez, mudando-se
definitivamente para Minas.
Pai, não se se vc quer mudar ou se prefere deixar assim, mas
a história Rumo à Bahia começa com Hila e termina com Masque.
CASA
VELHA
Há
um ano, voltei a te ver. Tomei coragem, com os passos titubeantes, trêmulos de
emoção, passei pela pequena ponte de madeira, alcancei a cerca de acapu e
velhos frechais de maçaranduba, que ainda teimam em te proteger. O velho
coqueiro, à direita do portão de entrada, continua como uma sentinela
altaneira, mantendo a guarda e saudando com suas palmas aqueles que adentram
pelo Sítio Pindorama.
Derramei
o olhar naquele bucólico bosque e no meio dele lá estavas tu, com toda
singeleza à espera de teus hóspedes que enchiam outrora teu interior e hoje já
são tão raros.
Senti
teu afetuoso abraço quando galguei a pequena escada de madeira que dá acesso à
grande varanda lateral, adornada de bougainvíllea de várias tonalidades.
Um
turbilhão de lembranças tomou conta de mim. A presença de todos que faziam
nossa felicidade e já partiram se fez sentir.
Nesse
instante, desabou a costumeira chuva tropical da tarde. Por entre a fresta de
alguma telha rachada, senti tuas lágrimas gotejarem no chão de madeira, como se
fossem tributos à minha presença de filho, retornando após tantos anos de
ausência.
O
quintal de chão batido cuidado com esmero pelo papai, abrigava um variado pomar
das frutas nativas do Pará: sapotizeiros, ingazeiros, jatobás, abieiros,
mangueiras, goiabeiras, açaizeiros, jaqueiras, cupuaçus, uxis, piquizeiros,
bacurizeiros, cajueiros, seringueira, pupunheira, abricoteiros, cutitiribás,
sorveiras e até um velho pé de pajurá faziam a alegria dos adultos e
especialmente da criançada.
Lembrei-me
do dia de Natal, quando eu e meu irmão ganhamos do Papai Noel dois carrinhos de
mão feitos de madeira. Ficamos exultantes com os presentes e, sob as ordens da
mamãe, catamos folhas secas e gravetos para fazermos nossas fogueirinhas. Hoje
percebo que participamos, com entusiasmo e alegria, sem perceber, da manutenção
impecável do terreiro.
Ah,
Casa Velha, aproveito do teu regaço, o único que me resta, para chorar minhas
mágoas. Corri mundo. Fui vencedor e perdedor. Usei o mundo, fui pródigo na
gastança da vida, chorei escondido, sorri abertamente para que todos
desfrutassem da minha alegria e não me evitassem pelas minhas tristezas.
Sentado
na varanda, no teu interior, na cadeira de balanço que tanto embalou minha
mãe, olhando a chuva
regar o pé de
bougainvíllea plantado por ela, vejo-a à tarde,
após o banho,
vestido estampado de fazenda leve, toda empoada com
talco de essências
do Pará, saboreando sua cuia de açaí, com açúcar e farinha
d’água.
O
vento geral, vindo do rumo da Ilha de Marajó, entremeado de salpicos de chuva,
nos refresca. Querida Casa Velha! A centenária e frondosa mangueira à tua
frente, que me viu crescer, continua a te proteger do sol e da chuva. Agora o
vento aumentou e a baía está revolta. Aqueles que saíram de manhã para buscar o
peixe terão que ter cautela. Talvez tenham que baixar a vela e esperar o geral
amainar. Se Deus quiser, todos voltarão. Não
repetirão, entre outros, Adamor, Crisóstomo e Chico, membros da mesma
tripulação, que deixaram mulheres e filhos órfãos, chorando na beira da praia,
na tarde em que sua canoa não mais aportou à praia. A embarcação soçobrou e os três
foram se juntar a Netuno. Naquele dia, ou melhor, naquela tarde-noite, a ilha
ficou triste e a Praia
Grande chorou. Três
velórios de três
valentes pescadores
que aprendi a admirar.
Naquelas bandas nunca
mais se ouviu o soar
alegre da buzina feita de
chifre de boi anunciando a chegada
do peixe fresco
para venda: filhote, bacu e piramutaba.
Minha
amiga, nossa conversa é longa.
Foram 19 anos
de convívio. No primeiro
dia de aula,
já com
saudades de ti, começava a contagem regressiva
até nosso
próximo encontro.
Chegava
a época do Boi-Bumbá, uma disputa
bonita entre
o Pai do Campo
e o Harmonioso. As mulheres
trabalhavam com afinco
para enfeitar da maneira mais graciosa e elegante seus vaqueiros.
As indumentárias daquelas pessoas fascinavam meu
olhar de criança.
Quando o boi,
feito com
todo o capricho,
coberto de veludo
polvilhado de purpurina, com acabamento requintado
dos artesãos que
davam o máximo de sua
criatividade, apontava na rua dos Escoteiros,
arrastando consigo uma grande quantidade de figurantes acompanhado pela batida característica
do folguedo executada com perfeição pelos tocadores
dos instrumentos de percussão,
meu coração
de menino só
faltava sair pela
boca. Escondia-me por
detrás da cerca
de crótons que delimitava nosso terreno com a rua, temeroso que o boi me pegasse,
pois o tripa
— aquele que
vai dentro do boi
—, em suas evoluções,
ameaçava as crianças com chifradas e
rabos-de-arraia. Era uma festa bonita, porém com um final surpreendente.
No
tal dia
combinado, o boi fugia. O tripa saia sozinho de madrugada
com o boi
e o escondia em algum
lugar desconhecido.
Os vaqueiros teriam que
procurá-lo e encontrá-lo. Todos os ilhéus participavam. Quando
alguém via o boi em tal lugar,
corriam os vaqueiros com seus laços enfeitados no encalço
do danado. Rebate
falso. Voltava todo
mundo a procurar
o boi até
que fosse realmente
encontrado. Os vaqueiros laçavam o boi e o levavam à presença
do seu diretor.
A ordem era
matar o boi.
Meu coração
de menino não
entendia. Apelava ao papai:
—
Não deixe, papai, ele é tão bonito!
—
Calma, filho, coisa bonita também morre!
E
assim a ordem
era executada. Um
disparo de espingarda
e cai o boi por
terra. Não continha as inocentes
lágrimas de criança.
Papai que conhecia o desfecho me
consolava:
—
Não chora, vai ver que ele não morreu!
Repentinamente,
entrava em cena com todo espalhafato: Pai Francisco e Mãe Catirina. Então
começava a parte cômica
da encenação. Os dois
velhinhos dão um verdadeiro
espetáculo e arrancam risadas
de todos os presentes.
Para culminar a festa em alegria, Pai
Francisco ressuscita o boi. Voltei para casa aliviado.
Nessa
noite, na minha rede armada ao lado da mamãe, o olhar da estampa de Santa
Terezinha, pendurada na parede de madeira, parecia me acompanhar em meus suaves
balanços; adormeci sorrindo. Ainda senti o afago da mão da mamãe acariciando
minha cabeça:
—
Dorme em paz, meu filho!
Recomendações,
conselhos e advertências, esse é ofício de toda mãe tentando proteger seu
filho. A minha não era diferente.
Tu
te lembras, Casa Velha?
—
Não vão lá naquele lugar. Aquilo é obra do Satanás – dizia ela, referindo-se a
um terreiro de candomblé próximo de ti.
Não
resisti à curiosidade. Cheio de temor,
à noite, luz
escassa. As lâmpadas
das ruas de terra
pareciam brasas que
mal davam para
iluminar o pé
dos postes que
as sustentavam. Por um
caminho entre
árvores, seguindo o som
dos atabaques, cheguei muito ressabiado ao terreiro
do Babalaô Santo Crioulo.
Para
mim aquilo
tudo era
novidade. O pai
de santo me
viu. Como membro
de uma família muito
bem quista
naquela comunidade, devido
às benemerências praticadas pelo papai e a relação
de amizade que
mantínhamos, eu e meus
irmãos, com
a rapaziada da ilha,
o Pai de Santo
buscou-me gentilmente pelo
braço e deu-me assento
dentro do recinto,
num gesto de reverência,
não sem
antes recomendar
que não cruzasse as pernas.
Obedeci lívido.
Meus olhos
arregalados quase saltavam da órbita. Pensei na recomendação
de minha mãe,
mas agora
era tarde.
Aflito, estava pagando pela minha desobediência. Não
restava fazer nada,
retirar-me poderia ser
considerado uma desfeita. Era rezar para
o tempo passar.
Fiquei estático. Correu entre a platéia
que estava sentada no terreiro, uma cuia
com marafa o nome dado a cachaça no
candomblé.
Foi-me oferecida, com um sorriso amarelo. Recusei agradecendo.
As caboclas velhas de vestes brancas rodadas, pés
descalços e calcanhares
rachados, rodopiavam no terreiro de chão batido, na
cadência dos carimbós. De vez em quando uma delas entrava em
transe e era
contida pelo babalaô.
Uma
risada macabra
ecoou na escuridão. Sinistro.
Não sei de onde
surgiu aquela criatura. Debochando do ritual do candomblé?
Alguns mais
fanáticos e exaltados tentaram agredir aquele rapaz que
parecia possuído por Exu.
O
Pai de Santo
ordenou:
—
Ninguém encosta a mão nele! Deixa ele!
O
homem não
parava de rir e zombetear.
De dentro do terreiro
o babalorixá lançou um
olhar atemorizante àquele
impostor. De repente,
o homem começou a se debater
entre as árvores
como se estivesse sendo açoitado e aos berros, por dentro da mata,
retirou-se. Coisas do imponderável.
Quanta
emoção, Casa Velha!
Certa tarde, maré baixa quase na reponta, o vento
soprando terral, de cima
do barranco, avistei sentado num toco de madeira,
à sombra de uma sumaumeira
na praia, o velho
Pedro pescador. Homem destemido que
enfrentara aquela baía de Santo
Antônio a vida inteira
de forma heróica,
em sua
faina diária
atrás do pescado
para sustentar sua numerosa prole.
Ali
imóvel, olhar distante, talvez além do horizonte, apoiando o queixo no seu
cajado e, com a ponta enterrada na areia, seu inseparável terçado Collins 28. Mãos calejadas, face embrutecida
pela agressão das intempéries, sol, chuva e vento. Sentei-me, com todo o
respeito, à sua ilharga com o intuito de aprender uma nova lição de vida.
Apesar de minha pouca
idade, sempre
ouvi com atenção
as prosas e conselhos
dos mais velhos.
Ao
me receber,
meneou a cabeça em
minha direção
e cumprimentou-me com um sorriso de soslaio. Percebi nos
sulcos de seu
rosto, um
brilho mais
intenso provocado pelas lágrimas
que rolavam de seus
olhos marejados.
—
Por que choras meu bom homem? – perguntei-lhe intrigado.
—
Não te incomodes, é que sofro de vida — respondeu-me.
—
Ora, mestre Pedro, vida é esperança, é alegria.
—
Engano, meu jovem. Na minha fase é desengano e tristeza, pois quem vive, um
dia, certamente morrerá.
Nas
palavras daquele homem
rude aprendi uma lição.
Até aquele
meu valente
e intrépido herói
temia a morte.
Ah, minha Casa Velha, quanta mágoa...
Preferiria que não
fosse assim, que
em minhas
andanças tivesse conhecido
somente o lado
bom da vida.
Parece que os momentos
tristes permanecem de forma
mais nítida
em nossa
memória em
contrapartida aos efêmeros momentos de felicidade.
Lembras-te? Madrugada
fresca de 26 de janeiro de 1951, aniversário
da tia Glória.
Tu, Casa Velha, toda engalanada, afinal,
estávamos recebendo a visita de nossos primos,
vindos do Rio de Janeiro.
Dois jovens rapazes oriundos
do bairro de Ipanema e egressos do internato
do Ginásio Santo
Antônio, em
São João del-Rei, onde haviam concluído o que
naquela época se chamava Curso
Científico. Deveriam ser
dois cientistas...
Havia na Bucólica — como é conhecida
pelos habitués, a Ilha de Mosqueiro — um salão de dança chamado Cassino. Ali
o bicho pegava. Todas as noites o pau quebrava, principalmente
nos finais
de semana. Tempos
românticos, quando as divergências eram decididas na porrada.
Naquela época, os valentes eram
respeitados como homens. Diferença para os tempos modernos onde
os covardes é que
impõem respeito pelo
calibre de suas
armas.
Minha
mãe que conhecia de sobra os dois filhos mais velhos de uma prole de cinco,
chamou-os e severamente admoestou-os:
—
Não levem esses rapazes para o Cassino!
Os
peraltas entenderam a ordem exatamente no sentido inverso.
—
Vamos levar esses dois lá, para ver se são de alguma coisa! – disse o Cláudio,
dirigindo-se ao Carlos.
Já
ia a madrugada cedendo lugar aos primeiros alvores do amanhecer, quando
despertei com o insistente chamado da mamãe pelo papai.
—
Vai ver o que esses rapazes estão aprontando, há mais de uma hora que escuto o
murmurinho de suas vozes na esquina, próximo ao portão.
Resmungando,
papai levantou-se e foi se encontrar com a turma. E nada de voltar. Mamãe
chamou o Guilherme e em seguida o Fernando, que também foram e não voltaram, o
que aumentou ainda mais o bulício. Nessas alturas já haviam se levantado todas
as tias e mamãe, todas pressentindo algo tenebroso. É quando papai surge no
portão da cerca com seu tipo inesquecível, esguio, de andar elegante com uma
varinha de galho seco na mão direita, parecendo um maestro a reger aquela
súcia. Lúcio, um dos primos, xodó das senhoras, era o único que sangrava na
cabeça. Quando as tias perceberam que ele estava ferido, por pouco não ocorreu
uma tragédia. Quase que elas caíram no chão. Água com açúcar para uma, chá de
caamembeca para outra e leque para mais uma, até se refazerem do susto,
colocando os batimentos cardíacos em ordem e baixando a adrenalina.
Ato contínuo foi a bronca generalizada.
Carlos e Cláudio já estavam curtidos das broncas da mamãe, tal era a quantidade
de confusões em que se metiam. Todo final de semana teria que ter uma bronca,
porém José Geraldo, primo que morava com a Dindinha, era um cidadão de boa paz.
Detestava confusão. Nesse dia o infeliz era o que apresentava sua roupa de linho
branco, seu traje inseparável, totalmente rasgado. Da blusa de mangas
compridas, só restavam as mangas e uma parte das costas. O coitado, de bons
sentimentos, foi o mais execrado e xingado pela Dindinha.
Enquanto
isso, as outras tias e mamãe faziam curativo no pequeno corte na cabeça do
Lúcio, que muito sem graça com tanta atenção, repetia:
—
Chega, já estou pronto para outra!
Toda
desordem começava sempre pelo Cláudio e desta feita não foi diferente.
Era
começo de noite, quando meus irmãos e primos se sentaram em uma das mesas do salão
e pediram cerveja, a única bebida que naquele calor “descia redondo”. José
Geraldo aproveitou para ir
lá fora
cortejar uma cabrocha
com quem
já mantinha certo
relacionamento. Os pedidos de cerveja foram aumentando e o forró
comendo solto. As damas comportadas se
mantinham sentadas em bancos de madeira
corridos em
volta do salão.
As cervejas vazias, não
cabiam na mesa, por
isso mesmo
os cascos foram colocados no chão. O garçom, que
claudicava de uma das pernas, pediu ao Cláudio
que lhe
passasse os cascos que
estavam no chão.
—
Junta tu – falou.
O
inocente garçom
sem se aperceber
do que estava preste
a acontecer, tentou apanhar
aquele vasilhame,
debruçando-se sobre a mesa. Um prato cheio para as más intenções do Cláudio que, com
a ponta do pé,
puxou uma das pernas da mesa. Aquele pobre
trabalhador que
defendia sua pequena
receita nos
finais de semanas,
ajudando a servir o salão,
estatelou-se sobre as garrafas e copos,
uns ainda cheios.
Aí
o pau quebrou. Os outros
garçons que
presenciaram a cena e já tinham uma rixa com o Cláudio, vieram em
favor do colega.
Do lado de fora, a turma
do Maracajá, quando percebeu de quem se tratava, pulou as janelas
da frente a fim
de pegar a turma da Praia Grande, onde morávamos. O dono
do estabelecimento, a fim de manter a ordem,
tentou fechar as janelas
do tipo guilhotina.
Tirou a trava da janela
e esqueceu-se da mão no parapeito. Três
falanges ficaram ali
mesmo. Um
mocho de maçaranduba
atingiu o Lúcio na cabeça, que não se deu por achado, apanhou-o no chão
e saiu fazendo estragos. Só parou quando
um desafeto, por trás,
deu-lhe uma gravata no pescoço. Lysis, seu
irmão, que
a tudo assistia, pegou uma garrafa de cerveja cheia, ainda com a tampa,
tacou-a na testa do camarada.
O melado desceu e o cara
ficou por ali
mesmo. Um
verdadeiro rififi. As mulheres subiram nos
bancos e de lá
soltavam seus gritos histéricos. Carlos com
o pé tombava os bancos
só para ver a cor de suas calcinhas. Jacinto, com sua canhota poderosa, defendia bravamente
a turma da Praia
Grande, juntamente
com o Quarenta, Caieira,
Boto, Pipira e mais
alguns. No meio
do tumulto, encantoaram o Carlos, que como
último recurso
puxou um revólver 32. Abriu-se um
clarão no meio
da turba enfurecida. Carlos teria saído incólume não
tivesse caído na asneira
de apertar o gatilho
na direção de um
desafeto mais
exaltado. Negou fogo. Também pudera. Carregou a arma
32 com as balas
de uma Winchester 22. O porteiro, um homem forte, com o braço direito, segurou o Carlos pelo
pescoço que
jogou o revólver para o
Quarenta. Nesse instante chegou o destacamento da polícia
composto por um cabo e dois soldados. Carlos,
num último arranco de suas
forças, conseguiu pegar
com uma das mãos
por entre
as pernas e a outra
no colarinho do cara
que o estrangulava, levantou-o no alto, jogou-o
contra seus
algozes e saiu perseguido. Para alcançar
a rua teria que
passar por
uma estiva sobre
uma vala rasa
e fétida. No exato
momento em
que José Geraldo
retornava do seu colóquio
com a namorada
e já se encontrava no meio daquela pequena
ponte, vem lá
de dentro aquele
bolo de gente
agarrada no Carlos. Zeca perdeu o equilíbrio
e com sua
roupa alva
caiu de costa naquela mistura de caldo
de bruxa. Um guarda que o
reconheceu como membro
da família que
provocou a desordem, com uma das mãos, tentava arrancá-lo de dentro da vala
e com a outra
lhe baixava a borracha
com vontade.
Uma cena insólita.
Zeca, de branco, naquela vala imunda, sendo espancado pelo
policial, berrava:
—
Eu te processo! Eu te processo!
Cláudio
veio lá de dentro e acabou com a festa do guarda, colocando-o fora de combate.
Alguém falou que o delegado, já presente naquela altura da confusão, havia
baleado o Carlos. Revoltado, Cláudio foi procurar o delegado, encontrando-o
logo em seguida.
—
Onde está meu irmão? – perguntou.
O
delegado ao ver que se tratava do Cláudio, vulgo Jacaré, tremeu nas bases.
—
Foi embora, atirei só para assustar.
—
Pois bem, se tu tiveres ao menos arranhado meu irmão, te prepara que vou
invadir aquela delegacia de merda. Reza.
Felizmente
nada havia acontecido com o Carlos, que já voltava para a briga, munido de dois
facões de mato Collins 28. Dissuadido pela turma que já vinha contando
cada um sua bravata, entrou na conversa e esqueceu-se de mais uma pugna. Após a
seção de todo tipo de ralhação, incentivados pelo papai, a conversa descambou
para a galhofa. Menos dona Léo, muito sisuda e severa, que continuava a
repreender seus filhos pela desobediência de sua recomendação.
Lúcio
e Lysis, para descontrair o ambiente, lembrando-se da efeméride, entoaram um
“Parabéns para você”, referindo-se ao aniversário da tia Glória. Todos
acompanharam e não sei, até hoje, de onde surgiu um bolo com tantas velas, que
após acesas, parecia mais um incêndio. Aí virou festa. Abraços, beijos, alegria
e sorrisos dissiparam aquele ambiente desagradável que pairava naquele momento.
Maré
cheia, sob o protesto da dona Léo que teimava em querer reter a turma dentro de
casa, porfiando carreira, saíram todos em disparada só parando dentro d’água.
Até o Zeca que, sorumbático, continuava amuado pelas broncas da Dindinha,
entrou na brincadeira. Como se para aliviar a tensão, saíram todos nadando até
muito longe da praia. Mais tarde os pescadores amigos do papai, alertaram-no
para não deixar os meninos irem tão longe, pois os cações estavam comendo os
peixes fisgados no espinhel. Foi um dia inesquecível.
Ah!
Casa Velha quantas recordações!
Uma
tarde, após terminar a pelada na praia do Areão, Fernando e eu viemos correndo
da vila até a casa debaixo de um forte pé d’água. Lá chegando, fomos direto
para o poço que abastecia a casa de água potável. Era um poço profundo que
papai mandara fazer, com bordas de alvenaria. Por um método rudimentar,
tirava-se água através de uma corda com um balde amarrado na ponta que era
içado no braço com auxílio de uma carretilha.
Não
sei por que, naquela área, era freqüente a queda de raios. Todos os
bacurizeiros, que são árvores enormes e se destacam das outras, foram atingidos
brutalmente por faíscas elétricas vindas da atmosfera. Sem darmos conta do
risco a que estávamos expostos, continuávamos nosso inocente banho,
desobedecendo aos apelos da mamãe que nos chamava para dentro alertando-nos do
perigo. Finalmente, já com um pouco de frio, entramos. A chuva e o mau tempo
não davam trégua. Mamãe com seu terço, rezava contrita pedindo a Santa Clara
que abrandasse o temporal e, por precaução, havia desligado a luz. Subimos a
escadinha de madeira, atravessamos a varanda e entramos no primeiro quarto. Acendi
a luz. Mamãe protestou lá do segundo quarto.
—
Desliguem isso meninos, não vêem que está relampejando?
—
Que nada mãe, acenda a luz aí — falei, pois o interruptor era no quarto dela.
—
Não, não vou acender! Vocês estão ficando loucos?
—
Acende aí, Fernando!
Nós
dois inteiramente molhados e nus.
Fernando
pôs-se na ponta dos pés e, por sobre uma meia porta divisória, tentou alcançar
o interruptor. Foi um estampido só. Parecia que tinham dado um tiro de canhão
dentro do quarto. Fernando enrijecido com os braços abertos e na ponta dos pés,
permanecia estático. Num movimento automático corri para abraçá-lo tentando
ampará-lo. Fui jogado a distância. Sem saber o que havia acontecido, mamãe e as
tias correram para nos acudir. O constrangimento foi maior por estarmos pelados
na frente daquelas respeitáveis senhoras. Foi um horror. Gritos, prantos
desesperados e angústias. Tudo em fração de segundos. Um raio caíra próximo à
linha num abacateiro da casa de Seu Pedro, pescador, distante da nossa mais de
uma quadra. Por esse motivo havíamos sobrevivido. Um medo tétrico se apossou de
mim. Pedi para fechar as janelas de nosso quarto. Fui dormir na rede junto com
mamãe e desfrutar do calor de suas costas largas como se fossem as asas do anjo
de guarda.
—
Viu o que acontece com quem desobedece aos conselhos da mãe? – alertou-nos com
um indisfarçável ar de sabedoria professoral.
Foi um grande susto.
Ah!
Casa Velha, presenciaste tudo isso com teu silêncio impassível.
—
Iniciava eu minhas incursões pela noite com a curiosidade própria do
adolescente, quando uma noite resolvi, sozinho, ir até o forró do Duca
Buretamba. Sob o luar da lua cheia, que clareava a rua sem asfalto e sem iluminação
elétrica, eu seguia temeroso. Com os olhos arregalados, coração palpitante,
respiração ofegante e dentes cerrados, seguia à risca o conselho de meu saudoso
pai:
—
Quando estiver com medo não olhe para trás.
Verdade.
Se olhar para trás, na terceira vez, com certeza, a pessoa acaba correndo,
cheio de pavor. A estrada, em vez de diminuir, à medida que eu caminhava,
parecia exatamente o contrário, a sensação era a de que aquele som do forró
estava cada vez mais distante. Noite de luar é uma coisa linda, poética e
romântica, mas no momento certo. Na minha situação, era um verdadeiro tormento
de momentos intermináveis. Quando a brisa soprava nas folhas das bananeiras, o
clarão da lua projetava uma sombra se movendo à minha frente ou ao lado. O
susto era imenso. O coração só faltava sair pela boca. Até que finalmente virei
a esquina e deparei-me com um pequeno barraco de madeira, suspenso do chão,
apoiado por esteios de madeira a uma altura aproximada de um metro, no melhor
estilo local de palafitas. Entusiasmei-me todo, estufei o peito, orgulhoso de
ter vencido galhardamente o trajeto até ali, subi a pequena escada, também de
madeira, e fui recebido pelo simpático festeiro Seu Duca Buretamba. Sujeito
simpático, hospitaleiro, amável, sorriso fácil, um mestiço trigueiro, chapéu de
palha sobre a cabeça, cobrava o ingresso dos cavalheiros que entrassem no salão
de baile. Preparei meu um cruzeiro para pagar o ingresso, mas não foi
necessário, Seu Duca me deu um largo abraço e disse:
—
Filho do Seu Timótheo aqui não paga!
Tímido,
encabulado, sem saber o que fazer, agradeci e deparei-me com o salão cheio.
Como de praxe, outrora, mulheres sentadas nos bancos corridos que circundavam o
salão e cavalheiros de pé. Antes de ir até a dama e tirá-la para dançar, trocavam-se
olhares para não correr o risco de levar um não. Situação constrangedora que
fazia qualquer descarado corar. Entre o telhado e o assoalho, havia um tapume
de madeira, que corresponde hoje ao sofisticado mezanino, uma pequena escada de
madeira para acesso do discotecário. Ali ficavam instalados os picapes ou a
aparelhagem de som, que poderia muito bem ser chamada de parafernália do som. Era
movida por um gerador de energia instalado do lado de fora do barracão, que produzia
um barulho ensurdecedor a ponto de, em certos momentos, superar as cornetas da
aparelhagem de som. Tinha dois toca-discos, para não haver interrupção nas
músicas, dando tempo ao discotecário de procurar o próximo 78 rpm a ser rodado
e um microfone cromado de mesa onde o locutor caprichava nos recados:
—
Aru! Aru! Zurmira ouve esta gravação que Parmira te oferece: o bulero
Imaringau, rautificando, Conserto de Vausuras – se referindo à canção Maringá e
ao Conserto de Varsóvia.
—
Ao membro da família Jacaré que acaba de chegar, nosso cordiar sardável.
—Aru!
Aru! Cavalheiro da camisa listrada, queira dançar direito, pois o recinto é
artamente familiau.
O
rapaz dançava apenas no estilo puladinho, mas pelo visto não era do
conhecimento do speaker ou DJ que talvez só conhecesse o monótono dois pra lá
dois pra cá. Timidamente, tirei uma caboclinha para dançar. Vestidinho rodado
de chita e aquele agradável perfume tradicional de patchouli com priprioca, a
donzela logo colou o rosto com o meu, num sinal positivo de que eu estava
agradando. Minha cabeça de adolescente, enternecida, divagava suavemente em
suas fantasias lascivas e eróticas. Certo momento, um pescador que parecia mais
um guarda-roupa, foi fazer uma firula no passo da dança, tentando variar o
trivial dois pra lá dois pra cá, deu uma rodada de bailarino. Abriu-se uma
clareira no salão. Vários pares foram atingidos inclusive eu, que, com uma
porrada do cotovelo do homem na minha nuca, caí por terra sobre a infeliz
moçoila. Um valente que fora atingido pelo bailarino e, do mesmo tamanho dele,
não conversou. Deu-lhe com os pés no peito, mais parecendo um golpe de aríete
medieval. O efeito foi de dominó e para piorar a situação aquele bolo de gente
foi parar exatamente no esteio que dava sustentação ao mezanino, fazendo descer
nosso alegre animador juntamente com toda sua parafernália musical.
Gritos
de histeria das mulheres, já trepadas nos bancos corridos, torcendo pelos seus
machos, pois naquela altura a pancadaria generalizou-se.
Seu
Duca, o festeiro, já de uma certa idade, tirava o chapéu da cabeça e pedia
ajuda aos santos:
—
Valei-me Nossa Senhora de Nazaré!
Não
sei se era o lugar próprio para uma santa tão milagrosa e tão recatada tirar
plantão, mas nada como a turma do deixa disso. Ânimos serenados, após uma hora
de arruaça, todos cooperaram para colocar o poleiro no devido lugar, dando
condições para que o baile prosseguisse. Nosso heróico locutor trocou as
agulhas dos toca-discos e felizmente a aparelhagem não havia sido danificada,
pois descera de maneira suave repousando sobre os dançarinos estatelados no
chão. Alguns sopros no microfone e fez-se ouvir a voz do animado e destemido
speaker.
—
Aru! Aru! 1,2,3. Aru! Aru!
1,2,3...
De
repente, adentra o salão Dona Justa. Todo o destacamento da ilha: um sargento, um cabo e dois soldados. Todos pararam e dirigiram os olhares
para aquelas autoridades
que acabavam de chegar.
Os mais temerosos,
saíram sorrateiramente com receio de serem
admoestados. Eu permanecia encostado à janela apoiado com
as duas mãos no pára-peito. Qualquer movimento
em minha
direção, com um salto, já estaria na rua.
Gritou
o sargento para o nosso simpático locutor:
—
Ô! Aru Aru, desce daí. Tu tá em cana!
Tremendo
como se atingido por uma febre terçã, pálido como uma cera, o baixinho desceu,
deixando para trás uma catinga insuportável, o pobre coitado havia se borrado
todo diante da voz de prisão.
—
Baile encerrado! — sentenciou o sargento.
Nessas
alturas manda quem pode, obedece quem tem juízo. Todos se retiraram. Ainda me lembro das feições do Seu Duca, chapéu de
palha na mão, coçando a cabeça, com cara de choro, começava a contabilizar os
prejuízos sob protesto de alguns mais exaltados que queriam o dinheiro do
ingresso de volta. Após tantas emoções em uma única noite, em minutos eu estava
na minha casa. Tirei uma reta na tal rua que levava ao barracão do Seu Duca,
sem olhar para trás, parti em desabalada carreira. Devo ter batido todos os
recordes olímpicos.
Ah!
Casa Velha, sempre contei com tua conivência.
Numa
tórrida noite de janeiro, a chuva torrencial, que é constante no inverno
equatorial, havia dado uma trégua e a lua cheia clareava a baía de Guajará
transformando aquele espelho d’água numa imensa bandeja de prata, fazendo
contraste, ao fundo, com a alta e verdejante floresta da Ilha das Onças. Um
lindo espetáculo da natureza que é pródiga naquelas plagas. Na sede náutica do
Clube do Remo, nos preparávamos para dormir, com muito pesar de fechar os olhos
para aquela paisagem tão deslumbrante. Dormíamos cedo. Todos jovens. Armávamos
nossas redes e a brisa que soprava de Nordeste servia como afago e acalanto
para nossos sonhos e fantasias de rapazes. Às cinco horas da manhã todos de pé.
Barcos na água, iniciávamos nossos treinamentos. Nossa guarnição
em particular,
um quatro com patrão,
treinava para disputar
o Campeonato Brasileiro
de Remo no Rio
de Janeiro, edição
de 1960.
Estávamos
todos num estado
semiletárgico, absortos em nossos pensamentos e embalados pelo
marulhar das ondas
da maré, quando
a campainha estridente
do telefone nos trouxe de volta à realidade. Um dos nossos,
Rachid, levantou-se e foi atender, resmungando entre dentes:
—
Deve ser alguma vagabunda procurando homem!
Ali
era o lugar certo. Um bando de sonhadores irresponsáveis. Moça de boa fama para
lá não ligava. O turco se transformou. Com os olhos brilhando de alegria,
transmitiu-nos a notícia de que havia um avião da FAB na Base Aérea de
Val-de-Cães, com autorização da CBD para levar cinco atletas a fim de disputar
o Campeonato Brasileiro de Remo, na Lagoa Rodrigo de Freitas. Deveriam estar
pontualmente às cinco horas da manhã do dia seguinte na Base Aérea.
Com
o coração exultante de alegria, corri para minha casa a fim de dar a notícia e
pedir permissão aos meus pais. Fui recebido com a compreensão de meu pai e a
angústia de minha mãe. Mãe, uma história à parte na vida de cada um. Seu
coração a prevenira. Antes da minha partida ainda guardo na retina sua última
imagem, balançando-se em sua inseparável rede, olhos marejados, terço às mãos,
implorando ao meu pai:
—
Timótheo, não deixa esse menino viajar!
Papai,
um homem que dedicara grande parte da sua juventude ao desporto, compreendendo
o sacrifício do atleta amador e o amor pela disputa que empurra os atletas a
superar seus recordes, disse:
—
Não, ele venceu a eliminatória, ele vai. Filho, vai com Deus! Representa bem
nosso Estado e volta rápido.
Passei
a mão em
uma sacola de mão
com uma das alças
arrebentada, botei duas mudas de roupa dentro
dela, vesti um terno
de linho do papai
e assim me
preparei, sem saber
como enfrentar
um novo mundo, uma nova
vida. Apresentamos-nos na Base Aérea, às quatro da manhã.
Um sargento
nos levou até
os dois oficias que
nos encaminharam à aeronave.
Era um
bimotor Beechcraft, um
pequeno bombardeiro
da segunda guerra,
adaptado, em tempos
de paz, para
o translado de passageiros. Duas poltronas para os comandantes no bico
de proa e mais
cinco apertadas na traseira.
Na medida para
nossa guarnição:
Jaime, o timoneiro; Roldão, o voga; eu,
sota-voga; Rachid, sota-prôa; e Mané
Cró, na proa.
O
aparelho tinha pouca autonomia de vôo. Não podia ver um campo de futebol que
pousava. Pousamos em Carolina do Norte, onde a comissão de recepção era
composta somente de índios que vinham em busca de algum trocado ou praticar
escambo, oferecendo arcos, flecha e galinhas a troco de algum utensílio que
lhes interessasse. Não foram felizes, nada apuraram. Aquilo era fato rotineiro
para os comandantes.
Nós,
todos pobres, com exceção do Rachid — não conheço turco pobre — carregávamos só
o necessário para fazer face a algum gasto extra que surgisse, pois a
hospedagem e a bóia estavam garantidas pela CBD.
De
volta ao aparelho, após várias outras escalas, conseguimos, finalmente,
aterrissar ao anoitecer na Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, na parte
reservada aos militares. Ao lado da pista, muito capim, dava um ar de desleixo.
Pensei com meus botões, cheio de desdém:
—
Isso que é o tal do Rio de Janeiro?
Pegamos
um táxi.
Um velho
Chevrolet preto
e rumamos para o Hotel
Leblon, local determinado
para nossa hospedagem. À medida
que o táxi
avançava meus olhos
mais se arregalavam e meu queixo já se apoiava no peito,
tal era
meu espanto.
Quando entramos no Túnel
Novo, que dá acesso a Copacabana, fiquei maravilhado, nunca havia visto
um morro.
Claro, lá
para cima tudo é planície. O néon das
lojas me
ofuscavam e só dei conta
de mim quando os colegas
perguntaram:
—
O que foi que dissestes?
No
meu devaneio, pensei em voz alta:
—
Daqui não volto mais!
Sem
saber, estava decretando meu destino.
Chegamos
ao hotel, todos inexperientes e com hábitos diferentes, pouco traquejo social.
Meu companheiro de quarto não conhecia o bidê das instalações sanitárias.
Curioso, mexeu nas torneirinhas e levou um esguicho de água no rosto. O outro,
guardou a geléia de passar no pão, para depois do jantar, imaginando tratar-se
de sobremesa. Assim fomos cometendo nossas gafes.
No
dia seguinte pegamos o bonde 11, circular, e fomos dar um passeio. Na altura do
Parque Lage, no Jardim Botânico, dei sinal e descemos.
—
Aqui está próximo do hotel – disse eu do alto do meu total desconhecimento do
Rio de Janeiro. Era quase meio dia num sol de janeiro. Após horas de bom andar,
chegamos ao Hotel Ipanema, no Jardim de Alah, extenuados.
Ali, daquele hotel
que era
de um bom
espanhol chamado Jesus, fomos
transferidos para a sede
náutica do Vasco,
às margens da Lagoa
Rodrigo de Freitas, onde fizemos boas amizades.
PAI, AQUI TERMINA A CASA VELHA.
SERÁ QUE NÃO VALE VOLTAR A ELA UM POUCO PARA ENCERRAR?
UM CERTO NATAL
Pedro,
como acontece todo ano,
naquele, decidimos fazer a festa
do Natal na casa
do teu tio
Marco Antônio. Era sempre uma festa
agradável. Faziam-se as comidas tradicionais, iguarias de todas as espécies,
sorteios de amigo oculto, troca de presentes, enfim, uma alegria!
Tu levavas vantagem na
hora da entrega dos presentes, pois eras o mais novinho. A turma do Vicente e
da Sônia já era maior e já curtia outros baratos. Possuías um grande prazer em
chupar bico. Nós adultos somos muito professorais, austeros com as crianças;
chatos mesmos.
— Esse menino tem que parar de chupar bico.
Estraga os dentes, deforma a personalidade!
Quanto conceito! Em
nenhum momento se imagina o prazer daquele ato, a delícia que é chupar bico.
Pobres crianças, desde cedo obrigadas a fazer tudo aquilo que os adultos impõem.
Pois
bem, articulou-se uma troca
com Papai
Noel, logo com
quem, o Bom
Velhinho. Receberias dele uma bicicleta, mas abdicarias do teu
prazer de chupar bico.
Que maldade! Na hora
marcada, naquela noite de Natal, “O “Bom Velhinho” chegou trazendo consigo
aquela reluzente bicicleta. Teus olhos faiscaram de alegria.
— É toda tua, porém
terás que me dar teu bico em troca e prometeres nunca mais voltar a chupar!
Numa atitude
decidida e firme,
entregaste o bico e recebeste a bicicleta. Eu te observava atentamente. Meu coração apertou
e meus olhos ficaram marejados. Mudo estava, mudo fiquei, com meu sorriso
pateta na face. Meu filho estava contabilizando sua primeira perda. Tomando a
primeira lição. Para alcançar a bicicleta teria que preterir a companhia
inseparável, por todos esses anos de vida, de seu bico. Sim, aquela coisa
antiestética e repugnante que nós adultos condenamos e que as crianças amam.
Naquele momento de
festa sua atenção toda era para a bicicleta. E na hora de deitar com seu
companheiro? Aquele que o ajudava a ninar e contar carneirinhos? Que teria sido
feito dele? Onde estaria? Teria sido jogado fora em uma lata de lixo? Estaria
sentindo frio, sozinho, naquela noite de Natal? Não teria ninguém para
chupá-lo? Estaria se lembrando de mim? Da maldade que lhe fiz?
Maldita
bicicleta, me
tiraste meu melhor
amigo. Meu
bom companheiro
de todas as horas. Principalmente
à noite assistindo televisão.
Essa maldita bicicleta terá que ter espaço para eu brincar com ela.
Dia de chuva, não
pode. Dentro de casa, não pode. Na escola, não pode. Parece que cometi uma
traição e na troca da nova amiga pelo velho companheiro, fui injusto e levei
“manta”.
Eu, teu pai, assisti a
tudo calado e apreensivo. Queria ver o desfecho. Aquele propósito teria sido
momentâneo? Tu voltarias atrás no dia seguinte? Para mim, aquela noite de Natal
não foi igual às outras. Fiquei cismático. Para minha surpresa:
tu nunca
mais falaste em bico. Uma prova insofismável da tua
personalidade e do teu caráter.
Bravo, filho!
NÃO SERIA MELHOR TERMINAR NO
“Bravo, filho!”?
FIM