domingo, 28 de janeiro de 2018

candinho




CANDINHO



            Desde a mais tenra idade, com poucos meses de nascido, mamãe me levava em seus braços e me banhava nas águas mornas da baía de Santo Antônio, na ilha de Mosqueiro, no estuário do rio Amazonas.
            Papai, a conselho médico, comprara aquela pequena propriedade defronte à Praia Grande, como terapia coadjuvante no tratamento de uma doença tropical chamada beribéri que se apoderou de meu irmão.
            Felizmente, meu irmão sarou e tornou-se um jovem saudável.
            Aquela ilha bucólica, pela minha ótica, é o paraíso - não fossem algumas tristes recordações que, creio, existem até no reino de Deus.
            De remédio para o mal que afligia meu irmão, aquela pequena propriedade a que minha mãe dera o nome de Pindorama, Terra das Palmeiras em tupi, tornou-se nossa inseparável fonte de lazer. Todos os anos, nas férias escolares, pelo menos quatro meses nós passávamos ali. Desta forma nos tornamos íntimos dos ilhéus, participando de suas vidas.
As crianças são as primeiras a se relacionar. Desprovidas de qualquer preconceito, de alma pura, cativam todos, principalmente os de sua idade.
Comigo não foi diferente, porém um menino em especial chamou-me atenção. De olhar opaco e triste, tez pálida, com uma tosse intermitente que não o deixava concluir uma frase. Dentes podres, cabelos lisos escorridos sobre a fronte, aquela criatura esquálida de respiração ofegante não dizia, mas eu pressentia a inveja que sentia de nós, quando corríamos atrás da bola na areia fofa da praia.
Tínhamos todo o cuidado com ele, trazendo-o num carrinho de mão e acomodando-o à sombra de uma frondosa mangueira. Sua posição lembrava uma gárgula. De cócoras, os braços abraçando as pernas, permanecia ali, quieto em silêncio, divagando, pensando, quem sabe, na imagem de um menino saudável, participando daquela pelada.
Não, a vida não fora justa com ele. Nasceu para sofrer. Vítima de uma tuberculose galopante, restava-lhe esperar pela sua hora final. Chamava-se Cândido. Candinho para nós. Por pura empatia, talvez pela sua fragilidade, dele me apiedei. Tornei-me seu maior admirador. Na minha imaginação de criança, sempre que o encontrava, imaginava encontrar-me com um santo prestes a defrontar-se com Deus.
Sua casa miserável, de chão batido e pau-a-pique, coberta de paxiúba, agravava ainda mais a doença. Lá dentro, os ataques de tosse e, por vezes, as hemoptises, eram mais freqüentes.
Seu pai, homem rude pela lida com o mar, pouca atenção lhe dava, talvez para não ser traído por uma lágrima. Sua mãe desdobrava-se entre o fogão e a bacia de roupas, restando-lhe pouco tempo para assistir o filho doente. Remédios? Somente os dos raizeiros e pajés, ou alguns que papai levava de Belém. Em casa, as coisas de melhor que tínhamos para comer, como maçãs e biscoitos, sorrateiramente, eu subtraía para levar ao meu amigo Candinho. Mamãe não podia saber. Ela não permitia o contato com ele. Amedrontada pelo contágio da doença, ameaçava me bater, como o fez algumas vezes, apesar de que asa de anjo não ofende ninguém. E assim fui assistindo meu amigo se desmilingüir, esvaindo-se em sangue.
Num final de tarde, véspera de Natal, quando preparávamos nossa ceia para aguardar a chegada do Papai Noel, vi a mãe de Candinho aflita, conversando com minha mãe à entrada da porteira. Esgueirei-me entre as árvores. Ainda deu para ouvir o final da conversa: Candinho mandara me chamar. Sem que ninguém visse, em desabalada carreira, cheguei à beira de seu catre pobre e mal cheiroso. Com os olhos semicerrados, estendeu-me a mão. Tentou apertá-la, mas não tinha mais força. Esboçou um sorriso; uma imagem de dor tomou-lhe a face. Estava morto, ali na minha frente, meu inesquecível amigo.
Ainda hoje, já velho, nas noites de Natal, quando todos esperam por um presente – ouro, incenso, mirra – durmo na esperança de que Papai Noel me conceda a graça de apertar a mão do Candinho pela última vez.

Nenhum comentário: