CANDINHO
Desde
a mais tenra idade, com poucos meses de nascido, mamãe me levava em seus braços
e me banhava nas águas mornas da baía de Santo Antônio, na ilha de Mosqueiro,
no estuário do rio Amazonas.
Papai,
a conselho médico, comprara aquela pequena propriedade defronte à Praia Grande,
como terapia coadjuvante no tratamento de uma doença tropical chamada beribéri
que se apoderou de meu irmão.
Felizmente,
meu irmão sarou e tornou-se um jovem saudável.
Aquela
ilha bucólica, pela minha ótica, é o paraíso - não fossem algumas tristes
recordações que, creio, existem até no reino de Deus.
De
remédio para o mal que afligia
meu irmão,
aquela pequena propriedade
a que minha
mãe dera o nome
de Pindorama, Terra das Palmeiras
em tupi,
tornou-se nossa inseparável
fonte de lazer.
Todos os anos,
nas férias escolares,
pelo menos quatro meses nós
passávamos ali. Desta forma
nos tornamos íntimos
dos ilhéus, participando de suas vidas.
As crianças
são as primeiras a se relacionar. Desprovidas de qualquer
preconceito, de alma
pura, cativam todos,
principalmente os de sua idade.
Comigo não
foi diferente, porém um menino em especial chamou-me atenção.
De olhar opaco
e triste, tez
pálida, com
uma tosse intermitente
que não
o deixava concluir uma frase. Dentes
podres, cabelos
lisos escorridos
sobre a fronte,
aquela criatura esquálida
de respiração ofegante não dizia, mas eu pressentia a inveja que
sentia de nós, quando corríamos atrás da bola
na areia fofa
da praia.
Tínhamos todo
o cuidado com ele,
trazendo-o num carrinho de mão e acomodando-o à sombra
de uma frondosa mangueira.
Sua posição
lembrava uma gárgula. De cócoras,
os braços abraçando as pernas, permanecia ali,
quieto em
silêncio, divagando, pensando, quem sabe, na imagem
de um menino
saudável, participando daquela pelada.
Não, a vida
não fora
justa com
ele. Nasceu para
sofrer. Vítima
de uma tuberculose galopante, restava-lhe esperar pela sua hora final. Chamava-se Cândido.
Candinho para nós.
Por pura
empatia, talvez
pela sua
fragilidade, dele me
apiedei. Tornei-me seu maior admirador. Na minha imaginação
de criança, sempre que
o encontrava, imaginava encontrar-me com
um santo
prestes a defrontar-se com Deus.
Sua casa
miserável, de chão batido e pau-a-pique,
coberta de paxiúba, agravava ainda mais
a doença. Lá dentro, os ataques de tosse e, por
vezes, as hemoptises, eram mais freqüentes.
Seu pai,
homem rude pela lida com o mar, pouca atenção lhe dava, talvez
para não ser traído por uma lágrima. Sua mãe desdobrava-se entre
o fogão e a bacia
de roupas, restando-lhe pouco tempo para assistir o filho doente. Remédios? Somente os dos
raizeiros e pajés, ou alguns que papai
levava de Belém. Em casa,
as coisas de melhor
que tínhamos para
comer, como maçãs e biscoitos,
sorrateiramente, eu
subtraía para levar ao meu amigo
Candinho. Mamãe não
podia saber. Ela
não permitia o contato
com ele. Amedrontada pelo
contágio da doença,
ameaçava me bater,
como o fez algumas vezes, apesar de que
asa de anjo não
ofende ninguém. E assim
fui assistindo meu amigo
se desmilingüir, esvaindo-se em sangue.
Num final
de tarde, véspera
de Natal, quando
preparávamos nossa ceia
para aguardar a chegada do Papai
Noel, vi a mãe de Candinho aflita, conversando com
minha mãe
à entrada da porteira.
Esgueirei-me entre as árvores. Ainda deu
para ouvir o final da conversa: Candinho mandara me chamar. Sem que ninguém visse, em
desabalada carreira, cheguei à beira de seu catre pobre e mal cheiroso. Com os olhos
semicerrados, estendeu-me a mão. Tentou apertá-la, mas
não tinha
mais força. Esboçou um
sorriso; uma imagem de dor tomou-lhe a face.
Estava morto, ali
na minha frente,
meu inesquecível
amigo.
Ainda hoje,
já velho,
nas noites de Natal,
quando todos
esperam por um
presente – ouro, incenso, mirra – durmo na esperança de que
Papai Noel me
conceda a graça de apertar
a mão do Candinho pela
última vez.
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