segunda-feira, 20 de julho de 2009

A FLOR DO GUAMÁ

A FLOR DO GUAMÁ

Lá para as bandas do rio Guamá, rio caudaloso que banha a cidade de Belém do Pará, meu pai possuía uma grande quantidade de terras, advindas das sesmarias de meu avô materno “Coronel da Guarda Nacional”.
Ali havia um casarão com dependências comuns a todo tipo de residência com um enorme trapiche onde os barcos atracavam e um pequeno comércio dirigido pelo meu pai e seu fiel escudeiro seu Feliciano.
Esse era o sítio “Canta Galo” de onde trago saudosas memórias.
Os caminhos da Amazônia eram feitos apenas de hidrovias e picadas abertas rusticamente a golpes de facões.
Meu pai encomendou a um dos seus empregados, chamado Adélio, carpinteiro naval de grande prática, um barco a vela.
Adélio conhecia quase todos os segredos da floresta.
Procurou e encontrou a árvore que queria uma maçaranduba de seus 20 metros de comprimento.
Aquela era a madeira ideal para fazer a quilha, devido a sua robustez e quanto ao peso e resistência.
Os nativos da floresta sabem como ninguém o manejo das árvores.
Num dia determinado pela fase da lua, tomando todo cuidado na derrubada, a fim de não ofender outras espécies de árvores preciosas e mais novas, promoveram a queda daquele monstro secular.
Após um ano com a madeira já curtida, começou o trabalho de entalhar e dar forma a madeira, tudo de maneira muito rudimentar, porém com muito carinho. As ferramentas eram: machados, terçados e enxós.
Aquela peça enorme e pesada foi arrastada sobre roletes de madeira até a beira do rio, onde foi construído um estaleiro para conclusão da obra.
Após calçada, escorada e aprumada a quilha, foi sendo encaixado o cavername, aquelas peças que dão forma ao barco e que recebem as falcas.
Muito trabalho árduo, de sol a sol, num calor escaldante e o tormento dos mosquitos picando e zunindo ao seu ouvido.
Isso é a floresta úmida tropical. Poucos resistem. Devido tantas intempéries, a expectativa de vida daqueles caboclos é muito baixa.
Finalmente Adélio e seus ajudantes concluíram a primeira etapa. Agora era calafetar o casco com mechas de pano embebido em breu derretido no fogo com ajuda de talhadeira e marreta, iam cunhando entre as falcas.
Agora a expectativa se o barco ao flutuar não pendia para nenhum dos lados, o que seria um grave erro de construção e um grande demérito para o mestre Adélio.
Na preamar da maré de lua cheia, finalmente o casco foi “lançado ao mar” termo de marinharia, pois ali a água é doce.
Sucesso! Permaneceu flutuando no prumo, isto é, não pendeu para nenhum dos lados, nem para bombordo nem para boreste.
Agora é colocar a tolda, o leme, o mastro, as enxárcias, os moitões, as vergas: superior e inferior, colocar a vela mestra e a bujarrona; a escota, pintar e batizar.
Recebeu uma vela estilo grega, de lona, tingida com casca de jatobazeiro que lhe deu uma tonalidade marrom escuro.
É uso naquelas bandas pintar o nome da embarcação na ilharga da tolda, e como era desejo do velho aquela obra de arte recebeu o nome de Flor do Guamá.
Tornou-se famosa. Ninguém a vencia. Deixava para trás todas aquelas outras embarcações a vela que tentassem porfiar.
Pilotar um barco daquele tamanho, com uma área de vela imensa, na cana do leme, teria que ter habilidade e muita força.
Era linda aquela vigilenga!
Enfrentava o Guamá encapelado com galhardia e destemor.
Pilotada pelas mãos calejadas e firmes do Coló, João Marinho ou do Nicolau fazia as viagens entre Belém e o Canta Galo sempre que a carga estava completa. Durante a safra não tinha descanso. Trazia de tudo, especialmente farinha, cacau, arroz e frutas que era vendido na feira do Ver-o-Peso.
Passaram-se os anos, meu pai envelheceu e a Flor do Guamá também. Passou a não ser tratada com o carinho que papai lhe dava. Talvez por isso e também paixão, numa dessas viagens com o vento geral soprando com toda força, carregada de farinha, não resistiu. A verga inferior juntou-se a superior numa refrega mais forte do vento e ela partiu-se ao meio perdendo toda a carga. Com vento forte, é perigoso navegar de “vento em popa” é preferível com o vento de través.
Eu preferia quando praticava barco a vela.
Felizmente nossos heróis tripulantes foram salvos após ficarem a deriva agarrados a pedaços de destroços durante toda noite.
Daquele dia em diante notei mais tristeza no semblante do meu velho que nunca mais quis falar da Flor do Guamá.
Pedro Parente
pedro.parente@oi.com.br

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