domingo, 14 de fevereiro de 2010

CANDINHO

CANDINHO

Desde a mais tenra idade, com poucos meses de nascido, mamãe me levava em seus braços e me banhava nas águas mornas da baia de Santo Antônio, na ilha de Mosqueiro, no estuário do rio Amazonas.

Papai, a conselho médico, comprara aquela pequena propriedade de fronte à Praia Grande, como terapia coadjuvante no tratamento de uma doença tropical chamada beribéri que apoderou-se de meu irmão.

Felizmente, meu irmão sarou e tornou-se um jovem saudável.

Aquela ilha bucólica, pela minha ótica, é o paraíso. Não fossem algumas tristes recordações que creio existirem até no reino de Deus.

De remédio para o mal que afligia meu irmão, aquela pequena propriedade a que minha mãe dera o nome de Pindorama, Terra das Palmeiras em tupi, tornou-se nossa inseparável fonte de lazer. Todos os anos, nas férias escolares, pelo menos quatro meses passávamos ali. Desta forma nos tornamos íntimos dos ilhéus, participando de toda sua vida.

As crianças, são as primeiras a se relacionarem. Desprovidas de qualquer preconceito, de alma pura, cativam a todos, principalmente os de sua idade.

Comigo não foi diferente, porém uma criança em especial chamou-me atenção. De olhar opaco e triste, tez pálida, com uma tosse intermitente que não o deixava concluir uma frase sem interrompe-lo, dentes podres, cabelos lisos escorridos sobre a fronte, aquela criatura esquálida de respiração ofegante, não dizia, mas eu pressentia a inveja de nós outros quando corríamos atras da bola na areia fofa da praia.

Tínhamos todo cuidado com ele. O trazíamos num carrinho de mão e o acomodávamos à sombra de uma frondosa mangueira. Sua posição lembrava um gárgula. De cócoras, os braços abraçando as pernas, permanecia ali, quieto em silêncio divagando em seu pensamento, quem sabe, a imagem de um menino saudável, participando daquela pelada.

Não. A vida não fora justa com ele. Nasceu para sofrer. Vítima de uma tuberculose galopante restava-lhe esperar pela sua hora final.

Chamava-se Cândido. Candinho para nós.

Por pura empatia, talvez pela sua fragilidade, dele me apiedei. Tornei-me seu maior admirador. Na minha imaginação de criança sempre que o encontrava, imaginava encontrar-me com um santo prestes a defrontar-se com Deus.

Sua casa miserável de pau-a-pique, coberta de paxiúba e chão batido, não cooperava em nada com sua moléstia, e, lá dentro, os ataques de tosse e por vezes hemoptises, eram mais freqüentes.

Seu pai, homem rude pela lida com o mar, pouca atenção lhe dava, talvez para não ser traído por uma lágrima.

Sua mãe desdobrava-se entre o fogão e a bacia de roupa restando-lhe pouco tempo para assistir ao filho doente.

Remédios? Somente os dos raizeiros, pajés e alguns que papai levava de Belém.

Em casa, as coisas de melhor que tínhamos para comer, como maçãs e biscoitos, sorrateiramente, eu subtraia algumas para levar ao meu amigo Candinho.

Mamãe não podia saber. Ela não permitia o contato com ele, amedrontada pelo contágio da doença, ameaçava me bater o fazendo algumas vezes, apesar de que asa de anjo não ofende ninguém.

E assim fui assistindo meu amigo desmilinguir-se, se esvaindo em sangue.

Num final de tarde, véspera de Natal, quando preparávamos nossa ceia para aguardar a chegada de Papai Noel, vi sua mãe aflita conversando com minha mãe à entrada da porteira.

Esgueirei-me entre as árvores e ainda deu para ouvir o final da conversa. Candinho mandara me chamar. Sem que ninguém visse, em desabalada carreira cheguei à beira de seu catre pobre e mal cheiroso. Com os olhos semicerrados, estendeu-me a mão, tentou apertá-la, mas não tinha mais força, esboçou um sorriso e uma imagem de dor tomou-lhe a face.

Estava morto, ali na minha frente, meu inesquecível amigo.

Ainda hoje, velho, nas noites de Natal, quando todos esperam por um presente ouro, incenso e mirra, durmo na esperança de que Papai Noel me conceda a graça de apertar a mão do Candinho pela última vez.

Pedro Parente.

TRISTESSE

Tristesse

(Estudo nº 3) op. 10    F. Chopin

Numa certa tarde plúmbea de S.João del-Rei, há muitos anos passados, quando desci do apartamento onde morava em cima do Restaurante Benegas, ali nas proximidades do antigo Banco de Crédito Real, fui presenteado com a delicadeza de acordes primorosos de um piano bem tocado, reproduzido por um aparelho de som de primeira qualidade.
Fiquei extasiado.
E como não podia ser diferente, movido pela curiosidade, como se levitasse, cheguei até a loja “O Palácio da Música”.
Não resisti, entrei e deparei com uma loja muito bem equipada de aparelhos de som da mais alta qualidade. Segundo meu amigo Camilo, um sonho de consumo para nós míseros mortais que circulamos pelo universo dos assalariados.
Fui recebido pelas simpáticas e eficientes recepcionistas da loja que imediatamente me apresentaram o proprietário, hoje meu dileto amigo Sílvio Assis.
Sílvio, uma pessoa que conhecia profundamente o produto com o qual trabalhava e possui a sensibilidade de descobrir o que o cliente gosta, deixava a todos satisfeitos.
Tornei-me seu amigo e frequentador assíduo daquele lugar. Qualquer cidade se envaideceria de possuir uma loja daquele gabarito, e eu estava vindo do Rio de Janeiro, a Meca da música, com centenas de lojas tradicionais, tais como a “Guitarra de Prata” na Rua da Carioca.
Sua discoteca era uma das mais famosas de Minas e do Brasil. 
Lá dávamos  ao luxo de conversar com o célebre maestro Waldir Silva, à época vendedor de discos da gravadora Odeon, se não me falha a memória.
Daquela época em diante, era difícil a vez que ali entrava e saísse apenas com um LP.
Sílvio como profundo conhecedor, sempre tinha a melhor oferta para cada gosto.
Lá, comprei uma “joia musical” do Pixinguinha, que meu amigo Cezar Faria - pai do Paulinho da Viola - autografou e guardo como um tesouro.
Assim foi que fui construindo minha pequena discoteca. O melhor disco que possuo, para meus ouvidos, foi sugestão do Sílvio. Conhecedor do meu gosto por árias clássicas, apresentou-me Operas do maestro Waldo de los Rios considerado “maldito” pelos maestros eruditos por acrescentar instrumentos musicais à sua orquestra, que não constam das orquestras tradicionais e modificar o andamento da música clássica, para musica “pop”.
Assim é que até hoje quando quero chorar de emoção, sim porque chora-se pelos mais diversos motivos, tristeza, desilusão, raiva etc... e no meu caso por pura emoção; coloco meu velho vinil na “vitrola” - hoje aparelho de som - e ouço a execução da ária da ópera Nabucco: Va... pensiero [Coro de esclavos] de Verdi.
Porém, na vida nada é definitivo e o progresso, avassalador nos transforma em pessoas saudosistas e melancólicas.
Não existe mais o Palácio da Música. Em seu lugar uma loja reluzente de telefonia celular, que à minha época, soava como ficção científica.
Ai de nós se não fosse Dª Mazinha da Cia Telefônica Sanjoanense que com carinho e dedicação na sua mesa telefônica colocava as pessoas em contato umas com as outras e São João del-Rei, com o mundo.
Recentemente, passando pelos “Quatro Cantos”, novamente, de longe, ouvi um som semelhante àquele que ouvira anos atrás na avenida.
Não podia ser diferente. Vinha da Casa Assis do nosso inestimável Jofre falecido recentemente e que era irmão do Silvio.
Não resisti entrei, fui recebido por uma de suas tradicionais atendentes que me indicou o Silvio.
Ali sentado ao balcão com seu jeitinho peculiar, selecionando as músicas para o deleite dos transeuntes.
Perguntei-lhe pela majestosa discoteca do Palácio da Música. Apresentou-me o pouco que resta, apenas uns cinco mil discos sendo vendidos a preço de feira. Disse-me:
- Aproveita que semana que vem vou fechar.
Saí as pressas para não deixar transparecer minha desilusão.
Em casa, envolto nas minhas recordações, coloquei na minha “vitrola” numa execução sublime de Pedrinho Mattar a valsa Tristesse de F. Chopin, belo fundo musical para um epílogo melancólico de uma fase esplendorosa da minha vida e da minha cidade querida.

14/02/2010
Pedro Parente.

NATAL

NATAL

Mais um.

A árvore sem viço e as bolas opacas são marcas do tempo que passou.

Quando a instalei pela primeira vez, ela era verdejantemente bela ornada com suas bolas douradas e reluzentes.

O espírito natalino dava um clima de alegria e enlevo à ribalta montada para os pequenos atores que extasiados colocavam pacientemente, ou excitantemente, os penduricalhos na árvore para que ficasse bem bonita à suas vistas.

Em seguida aos pés da árvore, depositavam-se os embrulhos de presentes.

Aos atores, as crianças, aguçavam-lhes a curiosidade em identificar qual seria o presente de cada um.

Impossível não se contagiar com aquele clima de amor fraterno peculiar à data.

Na retaguarda, lá na cozinha, o trabalho era dobrado. Cada pessoa com sua tarefa. Uns no fogão, outros na confeitaria.

À medida que o tempo passava, a excitação da criançada ia junto. Para extravasar tanta energia a correria entre elas era inevitável. Era hora de colocar ordem.

- Todas as crianças para o quintal! Determinava a autoridade da dona da casa.

Finalmente chegada a hora da distribuição dos presentes, esfregando as mãozinhas, colados uns aos outros, recebiam suas prendas preciosas e às pressas rasgavam os papéis dos invólucros, transformando em segundos aquelas obras de arte e paciência em um amontoado de papel sem valor.

O maior presente não era o deles, mas sim o nosso. De quem proporcionava aquele momento indescritível de felicidade àquelas crianças.

O prazer de dar é maior do que o de receber.

Os anos passaram. Os atores daqueles espetáculos cresceram. Hoje atuam em outros palcos com outros cenários.

A casa já não é a mesma. Já demonstra suas marcas como se fossem rugas ou cicatrizes.

Na sala, os atores somos nós, velhos, cansados com as chagas expostas pelas perdas de nossos parentes e amigos.

Aqueles que pulavam em nosso colo beijando-nos e agradecendo-nos, estão envolvidos com outras famílias adquiridas pela perpetuação da espécie. Tornaram-se o fulcro em suas casas.

Restou-me minha árvore esmaecida com suas bolas opacas.

Dirijo a ela meu olhar de carinho conivente com a vida que passou.

Pedro Parente

pedroparentester@gmail.com