sexta-feira, 8 de abril de 2022

REVERÊNCIA

 REVERÊNCIA

Sou do tempo que o respeito era cultivado e ensinado pelos mais velhos. Qualquer autoridade era reverenciada desde o soldado até o general, por incrível que pareça.

Morei ao lado da 5ª CIA DE GUARDA do Exército Brasileiro no Largo da Sé em Belém e por isso mesmo fui sendo contagiado pelo sentimento patriótico de amor ao Brasil.

Em dias de gala aquele agrupamento militar formava consumindo o espaço em frente a minha casa. Todos com os uniformes impecáveis.

À frente da Banda Marcial desfilava um garboso carneiro cheio de lã, sem aparar, imagino o calor daquele animal!

Menino, me envaidecia e tinha orgulho do meu Brasil! 

Quando rompia em marcha sob os acordes dos instrumentos musicais no compasso a tropa marcava com os pés o ritmo do dobrado puxado pelos instrumentos de sopro.

Quando passava a bandeira nacional todos faziam gestos de ufanismo e respeito. 

Apesar do francês Charles de Gaulle afirmar que não, nós brasileiros tínhamos a convicção de que nosso Brasil era um país sério.

Que vemos hoje?

O Brasil comandado por uma quadrilha cujo chefe é oriundo das Forças Armadas. 

O avião presidencial serve ao tráfico de cocaína na comitiva oficial do Presidente da República e dentre mais de mil escândalos o mais recente é que a ordem para matar Mariela partiu do Palácio do Planalto.

Aquele menino que hoje é um velho de 81 anos assiste com lágrimas nos olhos e um punhal no coração a desmoralização do país e suas instituições.

Não temos a quem recorrer!

Abandonados e sem rumo, completamente à deriva, assistimos o país ser saqueado não só por estrangeiros, mas, também por maus brasileiros que deveriam estar encarcerados na mais profunda masmorra.

Oscar Niemayer que projetou Brasília teria dito que se soubesse que Brasília se transformasse no que é hoje, não a teria projetado em forma de avião e sim em forma de camburão (apelido dado à viatura que transporta ladrões e todo tipo de bandido).

08/04/2022

Pedro Parente




 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CANDINHO

 

 

 

            Desde a mais tenra idade, com poucos meses de nascido, mamãe me levava em seus braços e me banhava nas águas mornas da baía de Santo Antônio, na ilha de Mosqueiro, no estuário do rio Amazonas.

            Papai, a conselho médico, comprara aquela pequena propriedade defronte à Praia Grande, como terapia coadjuvante no tratamento de uma doença tropical chamada beribéri que se apoderou de meu irmão.

            Felizmente, meu irmão sarou e tornou-se um jovem saudável.

            Aquela ilha bucólica, pela minha ótica, é o paraíso - não fossem algumas tristes recordações que, creio, existem até no reino de Deus.

            De remédio para o mal que afligia meu irmão, aquela pequena propriedade a que minha mãe dera o nome de Pindorama, Terra das Palmeiras em tupi, tornou-se nossa inseparável fonte de lazer. Todos os anos, nas férias escolares, pelo menos quatro meses nós passávamos ali. Desta forma nos tornamos íntimos dos ilhéus, participando de suas vidas.

As crianças são as primeiras a se relacionar. Desprovidas de qualquer preconceito, de alma pura, cativam todos, principalmente os de sua idade.

Comigo não foi diferente, porém um menino em especial chamou-me atenção. De olhar opaco e triste, tez pálida, com uma tosse intermitente que não o deixava concluir uma frase. Dentes podres, cabelos lisos escorridos sobre a fronte, aquela criatura esquálida de respiração ofegante não dizia, mas eu pressentia a inveja que sentia de nós, quando corríamos atrás da bola na areia fofa da praia.

Tínhamos todo o cuidado com ele, trazendo-o num carrinho de mão e acomodando-o à sombra de uma frondosa mangueira. Sua posição lembrava uma gárgula. De cócoras, os braços abraçando as pernas, permanecia ali, quieto em silêncio, divagando, pensando, quem sabe, na imagem de um menino saudável, participando daquela pelada.

Não, a vida não fora justa com ele. Nasceu para sofrer. Vítima de uma tuberculose galopante, restava-lhe esperar pela sua hora final. Chamava-se Cândido. Candinho para nós. Por pura empatia, talvez pela sua fragilidade, dele me apiedei. Tornei-me seu maior admirador. Na minha imaginação de criança, sempre que o encontrava, imaginava encontrar-me com um santo prestes a defrontar-se com Deus.

Sua casa miserável, de chão batido e pau-a-pique, coberta de paxiúba, agravava ainda mais a doença. Lá dentro, os ataques de tosse e, por vezes, as hemoptises, eram mais freqüentes.

Seu pai, homem rude pela lida com o mar, pouca atenção lhe dava, talvez para não ser traído por uma lágrima. Sua mãe desdobrava-se entre o fogão e a bacia de roupas, restando-lhe pouco tempo para assistir o filho doente. Remédios? Somente os dos raizeiros e pajés, ou alguns que papai levava de Belém. Em casa, as coisas de melhor que tínhamos para comer, como maçãs e biscoitos, sorrateiramente, eu subtraía para levar ao meu amigo Candinho. Mamãe não podia saber. Ela não permitia o contato com ele. Amedrontada pelo contágio da doença, ameaçava me bater, como o fez algumas vezes, apesar de que asa de anjo não ofende ninguém. E assim fui assistindo meu amigo se desmilingüir, esvaindo-se em sangue.

Num final de tarde, véspera de Natal, quando preparávamos nossa ceia para aguardar a chegada do Papai Noel, vi a mãe de Candinho aflita, conversando com minha mãe à entrada da porteira. Esgueirei-me entre as árvores. Ainda deu para ouvir o final da conversa: Candinho mandara me chamar. Sem que ninguém visse, em desabalada carreira, cheguei à beira de seu catre pobre e mal cheiroso. Com os olhos semicerrados, estendeu-me a mão. Tentou apertá-la, mas não tinha mais força. Esboçou um sorriso; uma imagem de dor tomou-lhe a face. Estava morto, ali na minha frente, meu inesquecível amigo.

Ainda hoje, velho, nas noites de Natal, quando todos esperam por um presente – ouro, incenso, mirra – durmo na esperança de que Papai Noel me conceda a graça de apertar a mão do Candinho pela última vez.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DUAS HISTORINHAS

 

 

 

Há alguns dias, estávamos sentados à mesa em nosso já tradicional foro de debates, na Confeitaria da Vovó, e da conversa participavam Judas, Demônio, Gafanha e nosso glorioso Miguelzinho, que se crescesse alguns centímetros, talvez alcançasse a estatura de um metro.

            Contam que o Miguelzinho fora um habilidoso ponta direita do Athletic, tendo jogado também em outras equipes de renome em Minas Gerais. Sua maior honra é ser afilhado de casamento do grande meio-campista do Cruzeiro Zé Carlos, que fazia ala com Dirceu Lopes.

            O assunto era futebol, quando começamos a lembrar de alguns cognomes de grandes jogadores do passado: Leônidas, o Diamante Negro; Ademir, o Queixada; Didi, o Príncipe Etíope; Nilton Santos, a Enciclopédia; Garrincha, a Alegria do Povo; Orlando, Pingo de Ouro; Baltazar, o Cabecinha de Ouro; Pepe, Dama Patuda; Danilo, o Príncipe; Gerson, o Canhotinha de Ouro; Amarildo, o Possesso; Jairzinho, o Furacão da Copa; Raul, o Wanderléia; Rivelino, Patada Atômica; Almir, o Pernambuquinho; Silva, o Batuta; Zico, o Galinho de Quintino; Roberto, Dinamite; Caio, Cambalhota; Fio, Maravilha; Pelé, o Rei; e os nossos: Renato, o Espingarda; Wilson, o Vedete; e, finalmente, Miguelzinho, o Pigmeu das Alterosas, batizado com essa pérola de antonomásia, naquele instante, pelo espirituoso Judas.

 

 

***

 

 

            Certo dia, uma segunda feira, quando morava em uma república de solteiros em São Paulo, meu amigo Álvaro levantou-se de manhã com uma pequena ressaca moral e uma grande saudade de nossa boa terra. Como havia acontecido em ocasiões anteriores, buscou consolo numa agência do Banco de Crédito Real de Minas Gerais.

            — Vou ver se encontro algum conhecido para me dar notícias frescas de São João! – pensou.

            Assim fez. Chegando naquele estabelecimento bancário, deparou com longas filas, o que é comum em se tratando de uma segunda-feira. Procurou, procurou até que descobriu uma cara conhecida. De alma nova, cheio de ânimo, dirigiu-se àquele cidadão que pacientemente aguardava sua vez em frente ao caixa. Num gesto amigo, bateu no ombro do rapaz e falou:

            — Que bom te encontrar! Como vai São João?

            — São João? – perguntou o rapaz.

            — É, sô! São João del-Rei, nossa terra – insistiu Álvaro.

            — Não, nunca estive em São João?

            — Uai, de onde então eu te conheço?

            — Sou teu companheiro de quarto na república do Largo do Arouche.

            (Fecha o pano, correndo!)

 

 

 

 

 

 

 

O SEXAGENÁRIO

 

 

 

            Fui mortalmente atingido por esta marca provecta. Numa reflexão, me dei conta de que no lugar dos sorrisos da minha face, surgiram sulcos provocados por uma constante expressão sisuda decorrente de pensamentos mórbidos, de uma expectativa de vida cada dia menor. Não tenho mais o brilho nos olhos igual ao daqueles que amam a vida. Os braços cansados não têm a mesma força de outrora, quando praticava o remo de competição. Os passos titubeantes e claudicantes acusam o envelhecimento dos ossos do meu corpo e uma dolorosa artrose destrói meus joelhos. Muitas coisas que me causavam alegria hoje me aborrecem. As freqüentes gargalhadas deram lugar a um sem graça sorriso amarelo e as parcas lágrimas de outrora tornaram-se freqüentes.

Obeso, tornei-me alvo da ganância: o esteticista olha para mim e um cifrão; o cardiologista também e por último o dono da funerária. Faço parte do discriminado grupo dos gordos. Nessa idade em que os prazeres vão se tornando escassos, não devo e não posso me privar daquele que sempre coloquei à frente de quase todos, o prazer da boca, o prazer da mesa, do bom beber e do bom comer. Foi assim que adquiri meus 120 quilos e esta vasta barriga, que, segundo Seu Alain, é umtesouro”. De fato, alguns milhares de calorias e de reais foram consumidos para cultivá-la. De bebida nem se fala, talvez uma piscina olímpica tenha sido ingerida nesses sessenta anos. “Quem envelhece é a matéria, o espírito continua jovem!”, exclamam alguns com ares de sabedoria. Quem gosta de espírito são os campos-santos, onde vivem os bem-aventurados. Eu vivo da matéria e se ela envelhece, eu feneço. Morrendo, nada mais me interessa, pois não verei mais minha família, meus filhos e os amigos que amo. Não verei mais as montanhas verdejantes desta terra, os rios serenos serpenteando mansamente entre seus vales, o sol brilhante das Minas Gerais, as chuvas generosas que encharcam a terra, revigorando a relva e o verde num espetáculo de renovação da vida que nos é oferecido por nossa mãe natureza e que, para muitos, passa despercebido.

Infelizmente, vamos dar atenção à singeleza de uma flor, quando não tivermos mais tempo para admirá-la. A competição pela sobrevivência na lida diária não nos permite parar para apreciar as perfeições, os fantásticos alvoreceres e crepúsculos à nossa volta. “Os desenganos vão conosco à frente e as ilusões vão ficando atrás”, dito pelo poeta que tem o dom de expressar com palavras aquilo que sentimos e não sabemos falar. Há muito não tenho mais de quem tomar benção. Meus ascendentes todos se foram. Vou caminhando em meio a uma tempestade de raios sem ter abrigo. Volta e meia um companheiro de jornada é atingido. Mais recentemente meu inseparável amigo Salvador foi o alvo de um desses raios. Deixou uma lacuna profunda no meu coração. Pessoa de fino trato, educação esmerada, solícito. Pensar que não o verei mais me causa imenso pesar e não dou conta de evitar as lágrimas. Não sei se o Salvador havia combinado com o Remo, mas tudo faz crer que está havendo uma grande festa no céu, pois seu sepultamento foi exatamente no dia do aniversário do Artur. Ainda bem que o “Leréia” não me convidou.

 

 

 

 

 

 

 

ACONCHEGANTE (NÃO TERMINOU)

 

 

 

            Sábado chuvoso em São João. Aquela chuvinha preguiçosa que chamam de “molha bobo”, caindo sobre o tapete verde do meu quintal. Ao fundo a Serra de São José, hoje com seu verde exuberante esmaecido pela garoa que cai.

            Protegidos pelo telhado do barracão contíguo à cozinha de minha casa, uma imensa mesa rústica, de madeira, com o fogão a lenha e sua tradicional companheira, a velha chaleira de alumínio, bebemos uma boa pinga da roça e comemos, demoradamente, a feijoada da Tia Glória. Bom papo com Luiz Arthur e Ângela, a garotada na piscinapara eles nãochuva que impeça. E, para completar, no toca-discos, a obra completa de Chico Buarque, presente do meu amigo José Luiz.

            O que quero mais da vida?! Nas coisas singelas é que encontramos o magnetismo emotivo da vida. As músicas do Chico são verdadeiros poemas colocam nossas almas (não terminou)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ADEUS, DINHO

 

            Envelhecer, além de aborrecimentos corriqueiros como não saber onde esqueci os óculos de grau, é não saber quanto tempo ainda viverei. Dessa forma, maiores serão minhas tristezas e perdas. Um tributo caro pela longevidade. Assim, num 12 de dezembro que eu não gostaria de ter vivenciado, perdi meu amigo Dinho das Rosas.

            Um iluminado. Não entendo nem compreendo nada de coisas intangíveis do imponderável, e, lamentavelmente, sou um homem de pouca ou nenhuma . Sinceramente, invejo aqueles que a têm em demasia.

            Com o Dinho era diferente. Ali, naquele cômodo apertado e modesto, me sentia protegido. Só em vê-lo, me alegrava. Aquela figura simples e carismática, buscando dar conforto a todas as pessoas aflitas que o procuravam. Com sua caneta traçou várias estrelas no papel e concluiu que minhas linhas do destino haviam sido fechadas.

            Certo dia, após meus insucessos financeiros, perguntou-me por que não busquei ajuda antes. Disse-lhe que ninguém era responsável pelos meus fracassos. Mandou-me orar todas as manhãs para São Marcos. Expliquei-lhe, então, que minha fé era quase nada. Ele, então, me disse:

            — Todas as noites eu rezo por você!

            Fiquei emocionado, pois além de minha mãe, já falecida, a única pessoa que rezava por mim — que não deixa de ser uma forma de grande carinho e preocupação — foi-se embora.

Mais uma grande perda para mim e para todas aquelas pessoas carentes. Hoje, somos todos órfãos.

            Superando todos os “ses” (se existe céu e inferno? se existe alma?), certamente existirá Deus e tenho a convicção de que fui amigo de um de seus emissários.

            Descansa em paz, Dinho, leva contigo o afeto e a admiração de todos nós. Nossa cidade está mais triste.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ADEUS, ROBERTO

 

 

 

            Quinta-feira negra. Pela manhã, no meu telefone, a mensagem que gostaria de nunca ter recebido. Desta feita, meu querido amigo Roberto Riveti havia nos deixado. Uma amizade feito casa, como diz o cantor e compositor Lenine em seu choro: “Amigo é feito casa que se faz aos poucos e com paciência pra durar pra sempre...”

            Assim foi com o Roberto. Tivemos um início de vida profissional semelhante, porém, em épocas diferentes. Eu vindo de Belém para o Rio de Janeiro, lugar desconhecido, e o Roberto também. Contava-me suas histórias com seu sorriso fácil, ingênuo e franco. Saiu de sua cidade, Oliveira, diretamente para trabalhar numa farmácia na avenida Nossa Senhora de Copacabana. Sua perplexidade era com o traje que as moças usavam para ir à praia. Um verdadeiro escândalo, que deveras o sensibilizou, a ponto de, algumas vezes, esquecer do almoço para admirar a plástica das cariocas.

            Depois mudou de emprego e foi trabalhar na Marinha de Guerra até que finalmente voltou para São João, onde, com seu irmão, nosso querido Mundico, fundou a Farmácia Santa Terezinha, que aí está até hoje para orgulho da nossa cidade, administrada com maestria e a mesma simpatia dos irmãos, pelo filho do Roberto, nosso também amigo Calê.

            Quantos, como eu, iam ali, não com o intuito de comprar medicamentos, mas sim, para ouvir os causos do Roberto. Pessoa que a mim transmitia muita tranqüilidade. Tínhamos afinidades transcendentais. Lembro-me do dia em que ele chegou a mim e disse:

            — O Celso Passos me pediu para fundar o diretório do PMDB em São João del-Rei. Estou apertado porque é preciso um número grande de pessoas. Me lembrei de você, que trabalha na fábrica Brasil e está envolvido com esporte no Siderúrgica.

            Imagine se eu iria colocar obstáculo ao seu pedido. Concordei e, na data marcada, no sítio de dona Amélia, esposa do Ministro Gabriel Passos e mãe do Celso, estavam todos. Na presença do dr. Paulo Brossar, dr. Milton Viegas, Pedro Salomé e outros, fundamos o diretório do PMDB.

            Roberto ficou agradecido com a solução do problema do Celso Passos, que era seu amigo íntimo.

            Nossa amizade vem desde quando aqui cheguei, por volta de 1967 e quantas vezes o Roberto me ajudou como conselheiro e amigo. Na minha retina permanecerá a imagem dos dois irmãos, pela manhã, na hora do almoço, na volta do almoço e no final do expediente, sempre juntos, passando em frente ao posto de gasolina que administrei durante 14 anos.

            Uma falta irrecuperável, insubstituível.

            Neste velho coração combalido, mais uma ferida no meio de tantas cicatrizes.

            À família, minhas condolências, especialmente à dona Lígia e aos seus filhos.

            Descansa em paz, Roberto!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

AMOR E AFETO

 

 

 

            Sem amor e afeto, ninguém é feliz. Sou uma das pessoas privilegiadas por ser retribuído com amor e afeto pela pessoa que amo. Aos sessenta anos, cansado, deformado pela obesidade, não posso ter a ilusão de que ainda posso agradar alguém ou despertar amor e afeto em outra pessoa. Porém, acreditem, apesar de todas as negativas contra mim, mesmo assim, ainda gozo de certos prazeres que muitos homens próximos da terceira idade não têm. Na singeleza da casa em que vivo, rodeada de árvores frutíferas, os passarinhos fazem sua festa e seus ninhos no sótão inacabado e retribuem a pousada, me despertando com os mais diversos chilreados e trinados que formam uma bela e alegre sinfonia. Dois pachorrentos vira-latas montam guarda na soleira de minha porta.

            Nesse bucólico ambiente, às vezes, me afasto de casa, por puro masoquismo, só para ser recompensado com a recepção no retorno. À porta, de olhos vivos e excitados, recebo um carinhoso beijo e um meigo abraço. Suas mãos de seda acariciam minha barba. Caminhamos para a cozinha, conversamos, brincamos e jantamos. Subimos às escadas, onde nossa cama de casal nos espera. Após fazermos nossa higiene e trocar nossos pijamas, finalmente, na nossa cama de casal, deitamo-nos. Abraçados, ouço sua voz:

            — Boa noite, papai! Durma com Deus!

            É meu filho Pedro, de sete anos.

            Recompensado, durmo, o sono dos justos.

 

 

 

ALERTA MÁXIMO

 

 

            Li, via internet, uma notícia que me deixou estarrecido. O título era: “Estados Unidos aumentam o seu território”. Curioso, apressei-me em inteirar-me da notícia. Em princípio imaginei tratar-se de mais uma anexação, ou da tomada de algum território afegão ou paquistanês, onde impiedosamente aviões americanos despejam seus artefatos de morte. Sob a desculpa de exterminar o terrorismo (com terrorismo), os Estado Unidos vão desovando seus estoques de mísseis e bombas com prazo de validade vencido ou prestes a vencer. Desta forma estão revigorando a maior indústria bélica do planeta, criando novos empregos para produzir mais mortes pelo mundo afora. Enganei-me, porém. Trata-se de território do Brasil.

            O governo que aí está - não satisfeito em aviltar e depreciar nossos bens públicos e depois presenteá-los a especuladores internacionais a troco de verdadeiras bagatelas, como a Companhia Vale do Rio Doce vendida por US$ 3 bilhões - aproveitou a distração propocionada pela redes de televisão com a exibição daqueles jogos de guerra ao vivo em Cabul, para, sorrateiramente, entregar um pedaço de nosso território aos americanos do norte.

            Situada estrategicamente no melhor ponto para lançamento de foguetes espaciais, nossa Base Aérea de Alcântara, no Maranhão, está sendo vítima de um acordo espúrio assinado nos coxins do presidente Bush. Trata-se de um contrato de aluguel, em que o Brasil receberá uma quantia anual do governo americano pelo uso daquela base aérea. que os americanos poderão trazer seus contâiners lacrados, sem qualquer tipo de fiscalização de nenhuma autoridade brasileira. Lá dentro, poderão vir bombas, mísseis, armas bacteriológicas e também cocaína, crack e outras mazelas mais, quem sabe? A área “alugada” poderá ser usada pelos americanos – exclusivamente –, sendo vedada a qualquer cidadão brasileiro. Não teremos acesso aos seus lançamentos de foguetes, pois não haverá transferência de tecnologia, mas eles poderão participar dos nossos projetos e copiar nossa tecnologia que, embora não pareça, é bastante avançada. Perderemos nossa soberania definitivamente. Será dado o primeiro passo para a internacionalização da Amazônia com o agravante de atrair os inimigos figadais dos ianques.

            Existe um fato macabro que aterroriza o mundo. Durante o período da guerra fria, cientistas russos desenvolveram aproximadamente 50 bombas atômicas portáteis. Cada uma cabe em uma maleta do tipo executivo. Quando acionadas, é impossível desarmá-las e reverter seu comando. Boris Yeltsin, quando no governo, mandou conferir os estoques. Conclusão: apuraram a falta de nada menos do que 28 bombas atômicas, desviadas graças à corrupção e suborno.

            Osama Bin Laden, inimigo público nº 1 dos americanos, declarou recentemente que possui armas atômicas e que os países que cooperarem com os EUA serão considerados inimigos. Com o acordo de Alcântara, poderemos estar assinando nossa ficha de inscrição no rol dos prováveis alvos de ataques terroristas. (Caso Osama esteja se referindo àquelas bombas desaparecidas do estoque russo, o que é bem provável, algumas, certamente, estarão nos países inimigos, como os Estados Unidos, Inglaterra e Israel.)

            Resta-nos apelar para o sentimento patriótico dos políticos do Congresso para que eles impeçam este governo entreguista de concluir tão insano acordo.

 

 

 

A BANDALHEIRA

 

 

 

            Após, aproximadamente, 15 anos de mutismo, por iniciativa do “Traia”, Suzana, João Luiz e outros fundadores, eis que ressurgiu “A Bandalheira”, nossa alegre banda carnavalesca. A Bandalheira surgiu nos anos 1970. A ideia era criar uma banda para nós, sãojoanenses, e da qual somente participariam membros da nossa comunidade, fato impossível durante o período momesco.

            A reclamação da turma era que durante o carnaval, não se conhecia ninguém na esquina do Kibon. A cidade era invadida por uma verdadeira turba de turistas, daqueles indesejáveis: “Me dá um gole da tua cerveja!”, “Me dá um cigarro!”, “Deixa eu tomar banho na tua casa!” era o que se ouvia de mais comum. A cidade virava um verdadeiro mictório, exalando um cheiro insuportável de amônia, e os cabeludos batendo nas latas vazias de cerveja, gritando em uníssono: “Galo! Galo! Galo!”

            Quem visse aquele quarteirão do Kibon naquele período não reconheceria São João.

            Na Cantina do Ítalo, na “mesa zero”, entre os debates sobre os destinos da nação e o que o Arthur Nogueira deveria beber, decidiram os comensais (mais “bebensais” do que propriamente comensais) que o carnaval deveria ser antes da invasão dos vândalos vindos de outras bandas.

            É claro que estou generalizando, pois até hoje ainda é muito gratificante reencontrar os são-joanenses ausentes, que aproveitam os longos feriados para matar a saudades de sua terra, seus amigos e familiares.

            Assim foi que, por unanimidade, decidiu-se criar a banda com o compromisso de sair à rua sempre uma semana antes do carnaval propriamente dito. Todos contribuíram.

O sucesso foi grande e decidiu-se criar um fundo para o ano seguinte. Todos os meses vinham contribuições de Brasília, Rio e Belo Horizonte para as mãos de nosso austero tesoureiro Arthur. Sempre foi uma banda, apesar do nome, de família.

            No primeiro ano em que a banda saiu, surpreendi-me ao ver minha filha Lia, com uns cinco anos, sentada na capota do tradicional jipe do João Luiz, o Aranha, a jogar confete nos foliões. Nunca houve um tumulto, uma briga ou uma desavença nos anos em que a banda saiu às ruas.

            Este ano não foi diferente, pelo menos neste aspecto. Foi emocionante reencontrar velhos companheiros encanecidos, alguns com seus filhos, outros com netos. As crianças, como sempre, deram o toque da ingenuidade. Dona Zininha e dona Guegué foram os destaques, comandando suas proles na folia. Momentos de intensa alegria e grande emoção. A maioria dos músicos, participante desde a fundação, estava muito feliz.     Recebi um emocionado abraço do meu bom amigo Sílvio. Um minuto de silêncio para Manoel Arthur, Suzana, Arthur Nogueira, Pedro Marreco, Bené, Salvador e Netinho. Não estiveram presentes materialmente, mas desfilaram conosco em nossos corações. Onde estiverem, certamente, estão se regozijando.

            De volta de seu tradicional percurso, sempre pequeno, a grande confraternização na loja do Luigi, antiga Cantina Calabresa, lugar do seu nascedouro.

            Obrigado, Tráia, pela iniciativa e a todos os que colaboraram. Que o grande exemplo de amizade e civilidade seja assimilado por todos.

 

 

BASTA

 

 

 

            Vou vendar meus olhos, tapar meus ouvidos, amordaçar-me e trancar meu coração. Prefiro a lembrança dos versos do poeta Gonçalves Dias quando diz na Canção do Exílio: “Minha terra tem palmeiras/Onde canta o sabiá/As aves que aqui gorjeiam/Não gorjeiam como lá”, numa referência clara de amor à pátria, nossa pátria.

            Tempos românticos. Amávamos nossa pátria e ufanávamo-nos de nosso país.

            Têmporas encanecidas eram sinal de austeridade e respeito, mas, lamentavelmente, não é o que se vê no episódio do painel de votação do Senado. Um homem de cabeça branca, um senador da República, diante da nação, de seus eleitores e de seus pares, mentindo, omitindo, procrastinando descaradamente, faltando com a hombridade e a dignidade inerentes ao cargo que ocupa.

            Basta!

            Não quero mais ver nem ouvir esses “vendilhões do templo”. Aqui, nosso sabiá não canta mais. Em seu lugar, somente corvos crocitam. Uma verdadeira pantomima diante das câmaras da televisão, onde se dá um péssimo exemplo à juventude e causa uma profunda decepção aos mais velhos.

            Foi necessário que os rombos da Sudam e da Sudene ultrapassassem os bilhões para que se resolvesse liquidar aqueles órgãos, que nunca tiveram outra finalidade que não a corrupção e o aumento do patrimônio dos políticos daquelas áreas.

            Grandes projetos não necessitam de intermediação de ninguém. Tenho a convicção de que a Sudene nunca matou a sede de nenhum nordestino e a Sudam nunca ajudou a desenvolver a região Norte. Se esses bilhões de reais desviados tivessem sido aplicados em projetos sociais, de educação e saneamento, talvez as estatísticas daquelas regiões fossem hoje mais alentadoras e positivas.

            Basta!

            Sou admirador dos parnasianos e poetas líricos repletos de devaneios. Minha presença na terra hoje é anacrônica. Este não é o Brasil que, de alguma forma, ajudei a construir.

 

P.S. Vale a pena relembrar:

 

“Tu choraste em presença da morte?

Na presença de estranhos choraste?

Não descende o cobarde do forte;

Pois choraste, meu filho não és!”

 

I-Juca-Pirama

Gonçalves Dias

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 BATIZADO

 

 

 

            Nesta vida efêmera, nem percebemos como o tempo passa rápido. Assim é que, de ouvinte das histórias dos mais velhos, hoje, assumindo o lugar deles, sou eu quem conta as histórias.

            Foi numa certa semana de um certo ano, já não tão recente, que fui convidado pelo meu dileto amigo Demônio — alcunha do Luiz Antônio Mauro — a comparecer ao batizado de sua filha que seria na casa dele, no sábado seguinte. No horário estipulado, lá cheguei com alguns companheiros, vindos de uma pelada no campo do Siderúrgica, na Vila Santa Terezinha. Desta forma, nossos trajes não eram os mais adequados para aquela cerimônia, mas, como se tratava da pessoa do Demônio, um cidadão liberal e sem formalidades, adentramos ao recinto. Fomos recebidos com muito carinho e distinção pelo casal e nos sentimos à vontade. Os convidados formavam um grupo altamente eclético: eu, Sô Lobo, Asa Quebrada e muitos outros – a memória agora me trai – misturados a autoridades do Exército (o coronel comandante, o major Wagner); do Ministério Público (o promotor dr. Salomon); e do Legislativo (os deputados José Luiz Baccarini e Wainer Ávila).

            Após umas bebericagens de boas bebidas e excelentes tira-gostos, anunciaram o momento para o qual estávamos reunidos ali. Finalmente, a criança seria batizada na religião católica, fazendo parte do ritual o exorcismo do pecado original e a unção com os santos óleos dos catecúmenos.

            Naquele momento, entra em cena o ator principal, o que procederia o batizado, ninguém mais ninguém menos do que nosso querido e folclórico Padre Lopes, pároco da cidade de São Sebastião da Vitória. Mulato de estatura privilegiada, óculos de lentes grossas, gestos largos, voz postada e riso fácil, era uma pessoa carismática. Fora dos santos ofícios da igreja, Padre Lopes era um grande apreciador de uma boa pinga e freqüentador assíduo do Pedro Pasteleiro. Mas, então, naquele dia, todos os convidados se postaram lado a lado na sala da residência da família, ali na rua Matheus Salomé: o casal anfitrião com a criança no colo ao lado dos padrinhos, dr. Salomon e esposa. Ele, promotor de justiça do Fórum Carvalho Mourão, figura respeitável e de grande simpatia que lhe legara a admiração e o carinho de todos. Padre Lopes, de posse de um bastão de água benta, aproxima-se da criança e com sua voz de tenor, ao lançar a água sobre a criança, acho que de caso pensado, bradou:

            — Afasta-te demônio!

            O Luiz Antônio, que assistia ao ato de forma constrita e circunspecta, assustou-se e deu um pulo para trás, obedecendo à imperiosa ordem.

            Ninguém conteve o riso. Dr. Salomon dobrou-se em gargalhadas naquele momento de descontração. Mas, logo em seguida, restabeleceu-se o clima do batizado e Iocana foi ungida com os santos óleos e hoje é uma bela moça e boa filha.

            Mais uma vez parabéns. Parece que foi ontem.

 

 

 

 

 

 

 

EUNICE E BRAZ

 

 

 

            Decorridos cinqüenta anos desde a união pelo sacramento do matrimônio entre Eunice e Braz, perante Deus, estamos aqui, reunidos em família, para regozijar e dar graças a Deus.

            Desse casamento nasceu uma frondosa árvore, de boa cepa e saudáveis frutos: Vicente, Sônia Maria, Maria Eunice, Francisco Carlos, Marco Antônio, Elaine Valéria e Júlio César.

            Criar essa grande prole não foi sem sacrifícios. De origem humilde, como os doze preferidos de Cristo, lutaram com grande denodo e dedicação.

            Outros tempos. Grandes dificuldades e desconfortos. Quantas noites, Braz, no seu mister de mecânico, com as mãos calejadas, esmerilhava válvulas de motores, rompendo a madrugada, adiantando o serviço do dia seguinte, enquanto Eunice debruçava-se em sua faina diária nos serviços domésticos, dando o melhor de si para que nada faltasse aos seus pequenos rebentos. Como toda união, não foram raros os momentos de divergência. O comandante de um navio não escolhe somente os dias de calmaria para navegar. Ele tem que levar seu barco são e salvo ao porto seguinte e, desta forma, navegará também enfrentando as grandes tormentas. Assim foi a trajetória deste casal que não poupou sacrifícios para alcançar seu objetivo, criar e educar os filhos dentro da fé cristã.

            Gostaríamos que estivessem aqui presentes para comungar conosco esta felicidade nossos entes queridos que já nos deixaram, mas temos certeza de que suas almas descansam em paz junto dos justos e bem-aventurados.

Finalmente, em nome de todos os filhos, pedimos a Deus, com sua infinita misericórdia, proteção para nossos pais e agradecemos o privilégio de termos nascido seus filhos.

Obrigado.

 

 

 

 

 

BRAZ RIZZUTI

 

 

 

            Filho de pais italianos, oriundos de Vibonati, em 1926, nasceu Braz Pompeu Bartolomeu Rizzuti. Trouxe consigo, na sua genética de imigrante, a inteligência e a habilidade com as mãos, tornando-se um homem talentoso. Na sua saga, desde pequeno, conforme contava com graça e orgulho, catava esterco nos pastos, vendendo-os a fim de poder assistir aos filmes passados nas salas de cinema. Outras vezes, vendia pirulitos, tornando o prazer do cinema ainda maior, pela maneira que conquistava seu lugar na platéia. Logo se percebia que aquele seria um vencedor. Não sem razão.

            Um dia arranjou emprego na fábrica do Seu João Lombardi a quem gostava de exaltar a simplicidade, pois tinha prazer em dar carona nos seus carrões, aos empregados que, de tamanco, muitas vezes, constrangidos, sentavam-se ao lado do patrão. Braz não se fazia de rogado, pelo contrário, sentia prazer de conversar com Seu João. Certo dia pediu férias ao Seu Juca, naquela época ainda rapaz, mas administrador da fábrica. Percebendo que o Braz tinha mais desenvoltura que os outros, o Juca, com sua visão de empresário, disse:

            — Vou fazer teu acerto todo, pois tenho certeza que tu não voltarás.

            Assim foi. Montou uma casa de bicicleta, mas a sociedade não deu certo.

Firmou-se no que de melhor sabia fazer: mecânico de automóvel.

            Trabalhava até alta madrugada para criar uma prole de sete filhos. Alcançou seu objetivo: educar todos. Bom pai, não deixava de fazer umas pequenas caçadas, quando levava sua criançada toda junto, com isso mantendo a união de sua família da qual foi o esteio mestre. De alguns anos para , aposentou-se e mudou-se para a represa de Camargos, fazendo ali um imenso círculo de amizades. Muito querido, um verdadeiro diplomata, servia como árbitro de pequenos conflitos entre amigos e vizinhos, atuando como um conciliador, um juiz de paz.

            Deixou uma imensa lacuna. Sua falta não será superada. Estou muito triste. Ficou a lembrança da sua alegria contagiante. Gostava muito de cantar, apesar da voz rouca massacrada pelo uso do cigarro. Para fazer uso de estrofes de músicas que ele admirava, no fundo do meu coração tenho me lembrado:

            “Velho, meu querido velho/ Seus olhos são tão serenos/ Sua figura é cansada/ Pela idade foi vencido”... ou “Naquela mesa tá faltando ele/ E a saudade dele tá doendo em mim./ Eu não sabia que doía tanto,/ uma mesa no canto, uma sala, um jardim”...

            Adeus, amigo.

 

 

 

 

 

TEMPO DE CHUVA

 

 

 

            As chuvas chegaram trazendo consigo a esperança. Esperança de fartura, de encher nossos mananciais, de respirarmos melhor.

            No meu pedacinho de terra, onde moro, a renovação da vida é um espetáculo à parte. No período de seca, as plantas hibernam e ficam naquele estado letárgico, sonolentas e tristes, como se agonizassem. Perdem o viço, as folhas caem, despem-se, mostrando, acabrunhadas, seu interior. O brejo fica mudo. Somente os passarinhos cantam, não sei se como uma súplica ou lamento por falta do precioso líquido que vem do céu. Nossa Serra de São José de Tiradentes apresenta um aspecto sisudo, amarronzado, suas árvores retorcidas não sobressaem ante a coloração das pedras. Sua silhueta em contraste com o céu límpido do inverno nos dá uma sensação melancólica de aridez. Olho para ela, engulo seco. A impressão que se tem é a de que ali não há vida. Felizmente, este ano não houve nenhuma queimada, senão o espetáculo seria ainda mais horroroso. Às vezes, essas queimadas não são provocadas pelas mãos devastadoras do homem, e sim, pelo sol causticante que, refletido nas pedras, provoca a autocombustão da mata seca.

            Agora chegaram as chuvas e com elas, o espetáculo da renovação. É deslumbrante. A sensação é que as plantas dançam e sorriem, num ritual de agradecimento à mãe natureza. Os melros, belos pássaros que voam em bando, manifestam-se de forma escandalosa, numa verdadeira algazarra. Sanhaços interrompem seus belos trinados para se banquetearem num fruto maduro do mamoeiro. As cambaxirras catam pequenos insetos entre as telhas da varanda e não se assustam com a minha presença. Parece até que os pequenos pássaros perceberam que com a nova educação preservacionista o homem está deixando de ser o famigerado animal que tudo destrói. Um dia ainda viveremos em sintonia.

Os pardais, indesejáveis para alguns, aprendi a admirar. Sua convivência com o homem é muito harmoniosa. Habitam os beirais das casas, protegendo-se contra os predadores. Criaturinhas de muita personalidade. Não gostam de viver dentro da mata, pelo contrário, são tremendamente urbanos e amantes da liberdade. Se presos em uma gaiola, fatalmente estarão mortos na manhã seguinte. O sabiá, que não precisa de satélites para prever a chegada das chuvas, canta e dança, batendo as asas num galho ainda seco de uma árvore de muxoxo, que eu mesmo plantei e vi crescer. Hoje, adulta, solta todas as folhas para dar lugar a uma bela florada vermelha. É um ornamento na entrada de minha modesta morada, assim como as quaresmeiras e os ipês. A azaléia branca não tem lugar para folhas, é só flores e botões. O de romã também está viçoso. O jasmim do cabo e o manacá ainda aguardam mais chuvas para nos premiar com suas flores perfumadas. As árvores se preparam, de roupagem nova, para receber a primavera, a soberana das estações. Renasce a vida no outrora silencioso e mudo brejo. Sapos, rãs, jias e todos os tipos de batráquios, num coral desafinado, entoam todo tipo de coaxar, iniciam sua festa, acompanhada pelo canto agudo do quero-quero, um pássaro que não sei a que horas dorme, pois tanto canta à noite como durante o dia. Saracuras, curiangos e corujas também participam. Quanta vida naquele brejo.

            A serra de São José de Tiradentes, aos poucos, vai perdendo sua austera roupagem marrom para se transformar num esfuziante vergel, provocando uma imensa inspiração para o amor.

            Deitado na varanda, em minha rede que trouxe do Norte, fico horas inteiras a admirar esse espetáculo gratuito à minha volta. Pego-me com o pensamento longe, nas mais belas e agradáveis fantasias. Felizmente, ainda tive tempo para apreciar amor e vida nas coisas mais simples. Não tenho cofre, ouro, dólares, nem ao menos conta em banco, mas tenho o tesouro dos meus olhos e o privilégio de me embevecer com o que a natureza me dá.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CONTRASTES

 

 

 

            Após anos de luta, ora galgando degraus, ora descendo-os, buscando sempre mais vitórias e, principalmente, ser feliz, estou chegando ao meu ocaso de maneira melancólica, cheio de dúvidas e de perguntas, talvez mais até do que quando iniciei minha jornada.

            Foram momentos de profunda tristeza aqueles, quando me despedi de meus companheiros de regata. Eles voltavam para minha terra natal e eu ficava no Rio de Janeiro, naquela época, uma terra estranha cheia de gente estranha.

            Dezenove anos, recém saído da adolescência, cheio de temores, abdiquei do regaço de minha mãe, da convivência com meu pai e meus quatro irmãos para tentar ganhar a vida, sozinho.

            Um caminho muito difícil aquele que escolhi para trilhar. Inóspito, muitas vezes asqueroso. Resistindo ao assédio de homossexuais e das drogas, das mulheres infelizes, coroas mal-amadas com contas bancárias recheadas, compradoras de amores. Quem compra amor colhe tristeza e quem dá amor colhe carinho. Felizmente, não me prostitui. Resisti às tentações do vício. Tive disciplina. Nos empregos que trabalhei nunca perdi a hora. Meus alicerces foram calcados em sólida rocha, composta por uma família simples e bem estruturada, a quem devo meu berço e educação.

            Falar de si próprio é perigoso. A vaidade, inerente ao ser humano, induz enaltecer nossas virtudes e omitir nossas fraquezas, erros e defeitos. Procuro me vigiar para não cometer esse engano. Pecados, erros e defeitos, possuo-os em demasia, porém o maior deles é amar demais. Amar intensamente a vida, a mesa farta, as mulheres e os amigos. Após sessenta anos, pode-se imaginar quantas derrotas, desilusões e desenganos vivi. Não foram poucos. Espero que não cessem. Mesmo assim é viver. A pergunta é: valeu a pena? O contraste que apaga todo sacrifício está na alegria de ter gerado meus filhos, Lia, Nara e Pedro. Por eles faria tudo outra vez, mesmo que fosse penalizado com mais espinho. O amor deles compensa qualquer outra falta de carinho ou de amor.

            Envelhecemos. Embora ainda tenhamos nossas fantasias, os afagos e carinhos vão sendo substituídos pela indiferença e os galanteios, por insultos e rabugices. Em uma de suas célebres canções, o poeta Lupicínio Rodrigues disse: “Esses moços, pobres moços...” e eu diria: “pobres velhos!...” O desprezo e a indiferença tornam-os verdadeiros e incômodos trastes. Um dia, certamente tudo cessará. Aqueles que deixam grandes heranças serão lembrados de forma efêmera com farras perdulárias e extravagantes. Aos humildes e fiéis, restará o pranto emocional e a eterna lembrança de quem com eles dividiu a miséria. Parece que a necessidade consolida o caráter, enquanto a riqueza em excesso leva à leviandade. São contrastes que a vida nos reserva.

 

P.S.: Saudades do sempre elegante e solícito dr. Cid Rangel que nos deixa. Tive a honra e o privilégio de gozar da sua amizade. À dona Ruth e filhos, meus sentimentos. Em nossa memória ficarão lições de caráter, profissionalismo e simpatia.

 

 

 

 

OUTRA COPA

 

 

 

            Sobrevivi a mais uma Copa do Mundo de Futebol. Minhas lembranças me levam de volta ao ano de 1950. Menino, ainda com meus nove anos de idade, passava férias em nossa casa em Mosqueiro, uma ilha bucólica na foz do Rio Amazonas, no Pará. Sensibilizava-me com a angústia de meu pai com o ouvido colado em um rádio de válvulas, atento à voz intermitente do locutor, se não me engano, Oduwaldo Cosi, que transmitia, através das ondas curtas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a partida decisiva entre Brasil e Uruguai, a final da Copa de 1950. Afligia-me a angústia de meu pai, porém ainda não tinha sido contagiado pela febre verde e amarela que contamina os brasileiros de quatro em quatro anos.

            Naquele lugar paradisíaco, passávamos as férias escolares todos os anos. Assim nos tornamos amigos de todos aqueles pescadores que enfrentavam a baía feroz, de águas barrentas, na luta diária pela sobrevivência, indo em busca dos peixes para seu sustento. Muitos não voltavam, sendo tragados junto com suas frágeis embarcações por aquelas impiedosas águas. Na minha inocência de criança, aqueles homens que venciam o mar eram como gigantes imbatíveis.

            Naquele dia saí à rua e encontrei um desses intrépidos e destemidos super-heróis a chorar. Não acreditei na cena e, timidamente, perguntei-lhe:

            — O que aconteceu, Batelão?

            Respondeu-me, inconsolável:

            — O Brasil perdeu!

            Esse foi meu primeiro encontro com a Seleção brasileira. Quis saber que coisa tão grandiosa poderia comover e atingir de maneira tão grave aquela musculosa criatura. Daquele momento em diante me apaixonei pela Seleção, inebriado por esse clima que arrebata o nosso país de ponta a ponta a cada quatro anos.

            Em 1954, outra decepção, porém, em 1958, já com 17 anos, minha explosão de alegria foi tanta, que minha foto saiu estampada na primeira página do principal jornal de Belém.

            Em 1962, já no Rio, comemorei com minha turma, aos goles dos primeiros chopes, a conquista do nosso bi-campeonato.

            Em 1966, nova decepção, porém, em 1970, no México, lavamos nossa alma com Garrincha, Pelé e companhia, trazendo a Taça Jules Rimet definitivamente para o Brasil (muito embora eu mesmo, tenha vaiado a Seleção, em sua despedida, num jogo treino no Maracanã. Que enorme irresponsabilidade! Vaiar Pelé, Garrincha, Rivelino, Gerson, Tostão e os outros. Coisas de torcedor!)

            Em 1994, novamente conquistávamos o caneco pela quarta vez graças a, entre outros, Romário, Bebeto, Branco e Baggio.

            Desta feita, 2002, lá para as bandas do Oriente, nas terras de nossos antípodas sul-coreanos e japoneses, a história se repetiu. Nossa Seleção partiu desacreditada. O horário dos jogos deixou todo o Brasil bocejando e de olheiras. Desacreditada é uma coisa, porém deixar de torcer, isso nunca!

            A cada jogo um sofrimento. Parece que para o Brasil tudo é mais difícil. Será que estava escrito nas estrelas, que em algumas partidas teríamos que sair em desvantagem no marcador para depois virar o jogo? Será? O sentimento patriótico e a valorização dos símbolos da pátria como a bandeira e o hino nos deixam emocionados. Uma coisa é o Brasil, outra coisa é Brasília. Chorei lágrimas de esguicho! Obrigado, Luiz Felipe, por ter escolhido pessoas de talento e de boa formação moral, que transformaram um grupo em uma célula . Caso contrário, bastaria umpara desunir o grupo. Uma laranja podre em um cesto contamina o resto. Diria Nelson Rodrigues: “Foram os deuses” que escalaram Kleberson para eliminar os problemas da nossa defesa. E o Oliver Kahan ganhou o troféu de melhor da Copa. Mesmo “batendo roupa” à frente do Ronaldo Nazário, que resultou no primeiro gol do Brasil contra a Alemanha. Preterir o Rivaldo, Ronaldo, Ronaldinho, Denílson? Todos atacantes de habilidade incontestável para premiar um goleiro? Um estranho no jogo? Todos jogam com pés e cabeças, somente ele joga com as mãos. Goleiro por goleiro o nosso Marcos fez muito mais bonito. Não sei qual foi o critério para a escolha, mas que foi injusto, foi. Faltou coragem. Não liga Rivaldo, teus súditos brasileiros, uma unanimidade, te elegem como o Melhor do Mundo.

 

P.S.: Hoje não falarei de tristezas. Estou muito feliz com nossos atletas. Se critiquei algum ou o Luiz Felipe, me penitencio e lhes reverencio com tapete vermelho. Eles merecem.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERENDUM

 

 

 

            Tenho assistido sem o menor interesse e convicção os argumentos dos protagonistas das propagandas pró e contra o referendo do desarmamento. Os nossos legisladores do Congresso Nacional, acostumados a promover farra com o dinheiro público, fugindo de suas responsabilidades, jogaram para cima da população a decisão sobre a permissão ou proibição do comércio de armas de fogo e munição no território nacional.

            Aqueles privilegiados senhores que ali estão como “nossos representantes” e que ganham muito mais do que merecem, entre outras coisas auxílio moradia, auxílio paletó e 14º salário, não tiveram a dignidade de chamar para si a responsabilidade de decidir entre o sim e o não, gerando, desta forma, uma despesa adicional para os cofres públicos de mais de 600 milhões de reais com a tal votação. Dinheiro esse que poderia ser aplicado em outra premência.

            Quanto à discussão de fabricar ou não fabricar armas no Brasil, sou inteiramente favorável que se continue como está. Esses senhores a que me referi anteriormente agem por impulsos criando leis a toda hora açodadamente. A legislação que está é pertinente. Você experimentou comprar uma arma? Pois então tente. Verá que a responsabilidade assumida pelo cidadão às vezes não compensa. Aí o poder de decidir é seu. Você é quem sabe se terá condições emocionais de possuir uma arma.

            Preste atenção. Você pode estar inclinado a fechar mais de 1.300 lojas de vendas de armas e munições. Sem contar as fábricas que abrigam centenas de operários. Quantos chefes de famílias você vai colocar na rua? Quantas crianças vão ficar sem ter o que comer? Aí sim, você estará cometendo um crime, pois aqueles postos de trabalhos brasileiros migrarão para outros países, como por exemplo: Paraguai e Estados Unidos.

            Se o Brasil for proibir a fabricação e o comércio de tudo que mata, voltaremos à condição de país do quarto mundo. A quem interessa isso? Cigarro mata. Fechem as fábricas. Automóvel mata. Fechem as fábricas. Cerveja e todo tipo de bebida alcoólica matam. Fechem as fábricas. Agrotóxicos matam. Fechem as fábricas. Mísseis matam e são fabricados aqui no Brasil exclusivamente para matar. Fechem as fábricas. Aviões também matam. Fechem a Embraer. Eletricidade mata. Fechem as usinas. Isso tudo é uma grande farsa. A verdade é que esse comércio milionário é muito disputado e nossos patrões do Hemisfério Norte não admitem concorrência. No caso de proibição, talvez pudéssemos importar armas via Mercosul. Não duvido nada, pois nossos representantes no Congresso são capazes de tudo. Ninguém tem coragem de admitir que vivemos numa guerra civil. Os bandidos fazem o que querem. Não se pode mais ir ao Rio de Janeiro em determinada hora da madrugada que se corre o risco de ser interceptado por bandidos, agindo à solta de maneira descarada, cobrando pedágio na Linha Vermelha.

            Tenho um conhecido que vai à sua casa na Itália de 15 em 15 dias. Ele pega o avião em Roma (é Roma? Estava Itália de novo, achei melhor usar o nome da cidade, mas fiquei sem saber, chutei Roma) e, em vez de ir direto para o Rio, vai a São Paulo e de lá pega a ponte aérea, que desce no aeroporto Santos Dumont. Só para não passar na Linha Vermelha, caminho de quem desembarca no aeroporto do Galeão.

            Mata-se mais aqui do que no Iraque. E o que é pior: os bandidos continuarão a ser bandidos e o cidadão de bem que insistir em possuir uma arma de fogo em casa passará a ser proscrito, sujeito às penas da lei. Não estou falando somente do cidadão comum, os oficiais das forças armadas também estarão sujeitos à lei.

            A Austrália está com um enorme pepino nas mãos. Promoveu o desarmamento e a criminalidade aumentou em 32%. Imaginem isso num país em que armas recolhidas voltam às mãos dos bandidos via policiais corruptos e o dinheiro apreendido pela Polícia Federal desaparece misteriosamente de dentro de sua sede. É demais.

 

P.S.: E os nossos relógios digitais? Até hoje não foram restabelecidos. Que vergonha, que descaso com São João del-Rei

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CRÉDITO

 

 

 

            Ouço lamúrias e tenho visto pessoas desesperadas com dívidas contraídas e impossibilidade de quitá-las.

            Entre as pessoas entrevistadas a respeito do que farão com o 13º salário, há quase uma unanimidade: o 13º salário será usado para liquidar ou amortizar dívidas.

            O cidadão comum precisa estar atento às armadilhas preparadas pelos avarentos banqueiros que não têm o menor escrúpulo em transformar honrados cidadãos em desesperados fantasmas a correr de Herodes a Pilatos em busca de solução para as dívidas. Uma vez emaranhado nessa teia é impossível desvencilhar-se.

            Não compreendo. A taxa de juros anual, praticada pelo governo, está em torno de 17% ao ano. Se há um aumento nessa taxa, nem que seja de 0,25% ao ano, a grita é geral. O mundo desaba. Essa decisão gera desemprego, desacelera a economia e a Fiesp se manifesta de forma ostensiva trazendo em seu bojo resquícios da política antiga de reserva de mercado, quando a indústria era protegida e ninguém falava em produtividade.

            Enquanto isso, descaradamente, as administradoras de cartões de crédito e bancos cobram até 12% de juros ao mês. As pessoas de classe média, alvo dos marqueteiros, vendedores de ilusões, engolem o anzol com o engodo de um cartão de plástico reluzente, verdadeira jóia da engenharia visual, ou talões de cheque que sugerem prestígio. Essas mercadorias são exclusividade de pessoas abastadas, inatingíveis por taxas de juros altas e que administram com maestria e parcimônia os saldos de contratos. Esses são os principais causadores de verdadeiras desgraças para o cidadão de bem que não foi preparado para conviver com a inadimplência e a desonestidade.

Os reflexos são lamentáveis no seio da família, desestabilizando uniões duradouras e, em alguns casos, de forma definitiva.

            É ilusão querer galgar mais um degrau na escala social, usando desses artifícios. Deveríamos nos conscientizar de que o objeto de qualquer transação comercial é, de um lado, mercadoria ou prestação de serviços; do outro, moeda, isto é, dinheiro vivo.

            A receita para uma vida mais saudável e menos angustiante, seria picar o cartão de crédito, rasgar o talão de cheques e jogar no lixo. Banco? Só para receber salário, aposentadoria ou pagar algum compromisso. A facilidade de crédito, na maioria das vezes, leva ao fracasso. Ninguém suporta taxa de juros de 12% ao mês, enquanto a inflação gira a menos de 1%. Significa dizer que o cidadão está pagando juros 12 vezes acima da inflação, o que é um verdadeiro absurdo. Não existe negócio no mundo, por mais lucrativo que seja, que resista a esse tipo de extorsão.

            É o que eu penso.

 

P.S.: E os relógios digitais das nossas praças? Até hoje! Onde estarão? Será que serão lembrados na hora de aplicar a Lei de Responsabilidade Fiscal? (não entendi a relação da LRF...)

 

 

 

 

 

 

 

 

DESILUSÃO

 

 

 

            Cheguei ao final de mais um ano sem esperanças de conseguir realizar o principal objetivo que persegui anos a fio obstinadamente: entregar aos meus filhos um país mais justo, menos corrupto, menos violento, com mais empregos, menos miséria, mais sorrisos e menos lágrimas. Entretanto, o que se vê? Chefes de famílias serem executados impunemente.     Agora os bandidos não contentes de chacinarem pessoas pobres, tripudiam também das autoridades matando prefeitos, promotores, vereadores. Dá a impressão de que quem não participa do grande esquema de corrupção que envolve a administração pública tem que ser eliminado.

            Não temos a mínima segurança, e quem mais sofre são os pobres. Sem dinheiro para levantar muros, guaritas de segurança, instalar cercas elétricas e câmeras de circuito interno para proteger o pouco de têm, são eles o alvo mais freqüente do banditismo.

Estou cheio de assistir a passeatas contra a violência. Essas passeatas terão que ser dirigidas, não contra a violência, mas sim contra os bandidos. Chega de blá-blá-blá. Estamos numa guerra.

Em vez de desarmar as pessoas, deveríamos armá-las. Hoje quem tem uma arma em casa para se defender é um proscrito cidadão à margem da lei. Enquanto isso os bandidos exibem seu arsenal de armas muito mais sofisticado que o da própria polícia. Até logotipos de organizações criminosas são instalados nos morros acintosamente, iluminados a gás néon. Onde chegamos?

            Já que as instituições criadas para fazer a segurança da população, prender, julgar e punir, estão desmoralizadas e falidas, façamos justiça com nossas próprias mãos. A Polícia Federal está com boa parte das viaturas paradas por falta de combustível, ao contrário do helicóptero que resgatou um bandido de dentro do pátio de uma penitenciária de segurança máxima sem ser importunado. Vamos esperar por quem?

É necessário que nos organizemos da mesma forma ou melhor que os criminosos. Ou será que eles são mais competentes que nós? “Olho por olho, dente por dente.” Da forma como as coisas estão indo, as ruas serão ocupadas pelos bandidos, e os cidadãos de bem, livres e de bons costumes terão que ficar aquartelados em suas casas. Para defendê-la, de acordo com a lei, terão que usar porretes, tacapes e bodoques contra os potentes AR15 dos bandidos. Chega de ver nossos filhos serem fuzilados barbaramente, nossas filhas e esposas serem estupradas e os idosos indefesos, assaltados.

            Essa mídia que aí está, a tal formadora de opinião, deu muito mais ênfase à morte do bandido Fernando Dutra Pinto (eu até sei o nome dele todo) do que à de uma senhora empresária (cujo nome não sei) cruelmente assassinada em frente à sua residência em São Paulo. Está tudo errado. Há havendo uma mudança de comportamento das pessoas. O sagrado direito de ir e vir está sendo impedido pelos bandidos.

            Esse governo bêbado que aí está, inebriado pelo vírus de uma vaidade deletéria, que não sabe tomar conta nem dos estoques estratégicos de água para gerar energia elétrica, poderá oferecer um mínimo de segurança à população? Acho que não, embora nosso representante máximo, com seu séquito perdulário do dinheiro público, em viagem à França, servia de galhofa perante aquele parlamento com um despropositado “Vive la France!”.

            É uma falácia demagógica proibir venda de armas. Só servirá para fomentar um mercado negro de produtos importados e promover o desemprego dos nossos operários. Se estão preocupados com as mortes produzidas por armas de fogo, como então não se preocupam com a manutenção das estradas de rodagem que se encontram em estado caótico, colocando-nos como campeões mundiais de mortes em acidentes de trânsito? Por outro lado, alguns órgãos se ufanam de raros índices positivos do progresso do nosso país. “Somos a oitava economia do mundo.” Ótimo! “Maior exportador de soja do mundo” – para engordar porcos no exterior, mas nunca vi um grão de soja na mesa de um trabalhador. “O índice de mortalidade infantil diminuiu drasticamente”. Ótimo! Mas que futuro esperam essas crianças que sobreviveram? Isso não é sadismo? Será que não seria melhor que elas tivessem seus sofrimentos abreviados, morrendo prematuramente, já que a incidência de óbitos ocorre na camada mais miserável da sociedade? Futuro? Não existe. Se não tiverem a sorte de se transformar em um ídolo do futebol, certamente engrossarão a imensa massa de excluídos que nosso país abriga.

Li na revista Tudo que Eu Quero, edição nº. 47, de 21/12/01, um artigo que, pelo seu conteúdo, transcrevo uma parte:

 

Os contrastes que levam ao crime

As estatísticas são geralmente frias e difíceis de entender para a maioria de nós, que vivemos uma vida privilegiada nos países desenvolvidos. Considere, por exemplo, o fato de que 356 indivíduos mais ricos do mundo hoje desfrutam de uma riqueza coletiva superior ao rendimento anual de 40% da humanidade. Enquanto nós falamos entusiasticamente de globalização, comércio eletrônico e revolução das telecomunicações, 60% das pessoas do mundo não fizeram nem uma única ligação telefônica em suas vidas e um terço não tem sequer eletricidade. Nesta era de mais e mais relacionamentos econômicos globais, cerca de 1 bilhão de pessoas continuam desempregadas ou subempregadas, 850 milhões estão subnutridas e outras centenas de milhões não dispõem de água potável ou de combustível suficiente para aquecer suas casas no inverno. Metade da população mundial está excluída da economia formal e é forçada a trabalhar na economia informal de trocas e subsistência. Outros acabam caindo no mercado negro ou no crime organizado.

Como se não bastasse, há também a cruel agressão da globalização à diversidade e à identidade cultural. Segmentos inteiros da humanidade se ressentem ao ver a história peculiar e os valores de seu povo serem atropelados pelas empresas multinacionais. Eles sofrem os efeitos da perda de coerência e significado de um mundo cada vez mais dominado pela produção cultural, pelas marcas, pelos logotipos e pelo estilo de vida dessas corporações. Temem, com razão, a imposição desse estilo de vida e de um tipo de homogeneização global do pensamento e das atividades. E têm medo de que, nesse novo mundo, a sua própria essência esteja sendo irrecuperavelmente perdida em nome do comércio e do lucro corporativo.

 

Jeremy Rifkin

presidente da Fundação de Tendências Econômicas, de Washington, EUA, e autor do livro A Era do Acesso (Makron Books).

 

P.S.: Meu adeus, desta vez, vai para Tio Oswaldo, o  Oswaldo Magaldi, bom amigo, coração generoso. Exagerado em tudo, principalmente no prazer de gozar a vida. Caçador por excelência. As aventuras de Indiana Jones perto das dele eram apenas cantilenas de ninar. Depois que proibiram as caçadas, seu espaço ficou reduzido, ele se sentiu como um pássaro na gaiola. Sua alegria deu lugar à melancolia. Descansa em paz, amigo Oswaldo. Tuas lembranças permanecerão para sempre no meu coração.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CREPÚSCULO

 

 

 

            Nasci cercado de carinho e fazendo a alegria da minha casa, de meu pai, de minha mãe e de meus irmãos. Fui o quinto e último de uma prole masculina. Do dia não me recordo, mas posso desenhar, por memória de retina, a cena, reproduzindo o sorriso da minha mãe e a felicidade do meu pai, exultantes por mais um filho sadio. Vivi cercado de carinho e, por isso mesmo, vivia uma felicidade que parecia infinita. “Não sei por que a gente cresce”, disse o poeta Ataulfo Alves em sua linda canção Saudades de Miraí.

Assim foi, até que um dia, ela, a felicidade, começou a me abandonar. Aos 19 anos vim para o Rio, deixando para trás as lágrimas de minha mãe e o silêncio conivente do meu pai, que achava correta minha atitude, pois na minha pequena Belém daquela época, as oportunidades de emprego eram limitadas.

Deslumbrado com o Rio de Janeiro, inexperiente, tendo a meu favor a juventude e o ímpeto da mocidade, não percebi que deixava para trás uma das melhores coisas da vida, o convívio familiar.

Tornei-me um nômade, boêmio, emotivo, sem naturalidade e identidade.

Nossas raízes é que consolidam a solidez e a paz interior.

            Numa Quinta-feira Santa, recebi a notícia que temia por todos os anos da minha vida. Minha mãe agonizava e chamava por mim. Não tive tempo de encontrá-la com vida, por isso carrego esse remorso por todo o resto dos meus dias. Não pude satisfazer seu último pedido.

            A felicidade foi-se esvaindo, como a areia de uma ampulheta que marca a marcha inexorável do tempo, até que um dia, ao chegar em casa, recebi a notícia de que meu pai me chamava para se despedir, pois estava morrendo.

Não titubeei. Temendo o mesmo desfecho de minha mãe, entrei no carro com o Neném motorista e fizemos aquele percurso em 29 horas. Recordo a imagem alegre de meu pai quando me viu.

Sentou-se e disse:

            — Que bom, meu filho, que você veio!

            Pediu que lhe tirassem a barba, que lhe dessem um banho e lhe vestissem um pijama limpo.

Deitou-se e se despediu:

            — Adeus, Pedro!

            Virou-se de lado e morreu.   

            Estava eu ali diante da morte, assistindo-a de perto, e, o que era pior, testemunhando-a levar uma pessoa que amo e respeito. Um verdadeiro homem.

Caráter inflexível. Poderia ter sido milionário, aceitando a proposta de contrabandistas que comercializavam produtos ilegais vindos das Guianas, desde relógios a automóveis americanos.

            Preferiu a vida honrada daqueles que abdicam do dinheiro, pela singeleza de uma vida calcada na dignidade.

Estava ele ali, imóvel, numa modesta cama patente à minha frente.

            Minhas reflexões tomaram conta de minha cabeça num turbilhão de recordações e interrogações. Será que a morte é o prêmio para quem lutou a vida inteira com integridade e lealdade? De repente, aquela imagem de felicidade que povoava minha cabeça dissipou-se.

Fiquei órfão.

            Hoje, aquela felicidade do convívio familiar foi substituída pela alegria que meus filhos Lia, Nara e Pedro me presenteiam e, obedecendo à ordem natural da vida, ocupei o lugar de pai. Como tal, não tenho sido o melhor em gestos e atitudes, porém, os amo imensamente.

            Minha expectativa de vida, chegando ao fim. Meus olhos não vêem as maravilhas da natureza e se atêm apenas às dores do mundo, melancolicamente. As esperanças ficaram para trás, restaram apenas desenganos, e minhas lembranças de outros tempos me entristecem.

            As árvores frondosas não me despertam interesse, nem tampouco suas sombras. Admiro apenas aquelas árvores desgalhadas, sem folhas e sem viço. Um sintoma do meu crepúsculo, do meu ocaso.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

INDEPENDENCE DAY

 

 

 

            12 de setembro de 2001. O dia que eu não gostaria de ter vivenciado. A ficção do cinema tornou-se realidade para a nação americana, vítima do mais brutal e hediondo ataque de algum famigerado grupo terrorista. Não teria significado algum se aquelas duas torres imensas, desafio da engenharia moderna e cartão postal de Nova York, tivessem simplesmente desabado. Seria apenas uma perda material e certamente logo estariam de pé tal o poder econômico daquela nação. Mas não. O que pranteamos, eu e o mundo civilizado, são as vidas ceifadas e a forma cruel com que foram executadas. Dentro dos aviões que se chocaram contra as torres, pessoas indefesas ligaram pelos seus aparelhos de telefonia celular, despedindo-se de suas famílias. Que desespero!

            Hoje é o dia seguinte. Não sabemos ainda quantos morreram. O que me deixa perplexo é que esses fanáticos suicidas cometem essas atrocidades todas em nome de Deus, Alá ou outro nome deus qualquer. Será que o deus desses bastardos é o mesmo das pessoas que vejo contritas, fazendo suas orações nas igrejas, acompanhando os ofícios da Semana Santa, comungando durante a missa? Não, não creio. Acho que os super-heróis da ficção americana não estavam de plantão ontem. O gigante americano foi atingido no seu âmago. Não sei quais serão os desdobramentos.

            A intolerância, a miséria, a legião de excluídos e a perversa concentração de riqueza nas mãos de poucos está levando o mundo ao caos. Uma verdadeira Torre de Babel. Ninguém mais se entende. Pobres dos muçulmanos que moram ! Uma caça às bruxas deverá começar. O beligerante presidente prometeu vingança. Existe uma linha de investigação nos Estados Unidos que atribui os atentados a grupos de extrema-direita que agem na América. São fanáticos da Klu Klux Klan que pregam a discriminação racial e que tiveram participação direta nos assassinatos de J. Kennedy, M. Luther King e no atentado de Oklahoma. Mesmo que não encontrem culpados, provavelmente escolherão um bode expiatório e despejarão toda sua ira, desovando seu estoque de bombas com datas de vencimento por expirar e assim poderão revigorar sua indústria bélica (a maior do mundo) com o fabrico de novos artefatos que, talvez, poderão ser usados na destruição de outros símbolos nacionais americanos, na destruição de mais vidas.

            De nada adiantou a fábula de dólares gasta com projetos antimísseis para proteção do solo americano. Foram feridos com suas próprias armas. Cadê o inexpugnável sistema de segurança? Os americanos foram feridos na sua arrogância e prepotência, talvez tenham sido vítimas da violência que eles mesmos propagam pelo mundo afora. A lição de Pearl Harbor e do Vietnã de nada valeu.

            Disse o embaixador Afonso Arinos: “Você cutuca o diabo, um dia, ele aparece”.

            Nossas crianças são expostas diariamente a todo tipo de violência nos programas de televisão, quer seja em desenhos animados ou vídeo games oriundos daquela plagas.

            Resta aos americanos reconstruir o que foi destruído e repensar a maneira de olhar o restante do mundo. A lucidez no lugar da arrogância e a humildade em lugar da prepotência. Que dirijam seu olhar de piedade para as crianças que morrem de fome na África, no Brasil e no resto do mundo.

Basta de globalização. Todos trabalhando para enriquecer um só? Basta dessa sangria agiota e infanticida do Fundo Monetário Internacional (FMI). Os portugueses, na época do império, levavam nosso ouro em galeões, arriscando-se através dos mares e oceanos. Hoje, o FMI, sem disparar um tiro sequer, leva só com os juros da dívida, nossas riquezas, o sangue, o suor e a dignidade da nossa gente, através de simples transferências bancárias sem risco nenhum de naufrágio.

            Divergências à parte, manifesto aqui meu profundo pesar e minha indignação pelo ocorrido com o povo americano. Que descansem em paz. Que suas mortes não sejam em vão. Que sepultem de vez a intolerância e a incompreensão.

 

 

 

 

DESILUSÃO

 

 

 

            Há cerca de três anos, venho acompanhando a recuperação da frágil vegetação da encosta da Serra de São José de Tiradentes, pois nesse período não houve fogo que a destruísse. À distância, é possível se ver algumas árvores timidamente maiores, dando sinais claros de que ali, futuramente, voltará a vicejar uma mata peculiar à serra, trazendo consigo todo tipo de vida e biodiversidade, principalmente em se tratando de Área de Proteção Ambiental (APA).

            Gostaria de não ter assistido. Que tivesse viajado ou que dormisse profundamente por dois dias para que meus olhos não vissem e meu coração amargurado não sentisse a maior queimada já ocorrida naquele local. Uma visão dantesca do inferno. As chamas vermelhas, contrastando com o fundo escuro da noite, provocaram-me uma sensação de impotência e insignificância diante daquela monstruosidade. Pássaros em debandada, à noite, espavoridos, voando às cegas, batiam contra postes, árvores, paredes e caíam mortos. E seus ninhos? Seus filhotes? Dizem que a codorna não abandona o ninho. Num ato estóico, prefere morrer queimada a abandonar seus filhos. Que tristeza! Que maldade!

            O clima estava terrivelmente seco e a umidade do ar, baixíssima. (Prefiro acreditar em autocombustão.) Um caco de vidro deixado próximo à vegetação, refletindo e ampliando os raios solares, pode dar início a um foco de incêndio. Não creio que alguém, um ser humano, muito embora o mundo esteja pontilhado de bestas humanas, pudesse ter iniciado aquele crime ambiental. Quero ressaltar o esforço debalde da Brigada de Bombeiros Voluntários de Tiradentes, do Corpo de Bombeiros de São João del-Rei, das pessoas comuns e amigas da natureza que, em vão, tentaram debelar as chamas.

            Desta vez minha querida serra não deu sorte. Ardeu em chamas durante dois dias e duas noites até que chegou a chuva. Os ventos poderiam ter dado uma mão empurrando a frente fria com mais velocidade. Mas, quem somos nós para palpitar sobre a velocidade de chegada da chuva? Minha preocupação é exclusivamente com a natureza que aprendi a respeitar, pois sou um amazônico, e não quero entrar no mérito de quem é a responsabilidade pela guarda daquele patrimônio. Parece-me que projetos como a Trilha dos Inconfidentes e a Estrada Real, que pretendem auferir lucros com o ecoturismo, preservar e desenvolver a região, correm o risco de se inviabilizarem. Os responsáveis terão, primeiramente, que investir em segurança preventiva no alto da serra e não deixar que esposa de turista seja violentada na presença do marido (isso aconteceu?), que as pessoas sejam assaltadas por bandidos drogados que ali fazem ponto e que ninguém mais ateie fogo na floresta, deixando de recolher o próprio lixo.

 “Quem não pode com o pote, não pega na rodilha”. Está se tornando moda nestes tempos, a criação de muitos Conselhos, reuniões, debates, palavrórios e prolixidade, quando, na verdade, se precisa de uma atuação mais firme e efetiva para enfrentar os problemas. Deixemos as escrivaninhas e as salas de reuniões, arregacemos as mangas e partamos para a produção. Às vezes, com soluções criativas, resolva-se o problema de forma racional, em vez de ficar choramingando falta de verbas.

            Minha serra, da tua atual paisagem desolada e calcinada, brevemente, restará somente a má lembrança. Tenho certeza que voltarás com toda tua exuberância e um dia terás dos homens o respeito que mereces.

 

P.S.: Contaram na mesa da Cantina:

            — Dois bons amigos nossos, um deles indo pela primeira vez ao Rio de Janeiro, dirigindo-se ao outro, já mais escolado, durante um banho de mar em Copacabana, disse:

            — Você falou que vai pegar um “jacaré”? (linguagem que o praiano usa para dizer que vai descer de peito numa onda).

            — Vê se pega dois pequenos para eu levar em uma caixinha para São João del-Rei.

 

 

 

 

 

 

DESPERDÍCIO

(PAI, FAVOR CONFERIR COM O ORIGINAL. ACHO QUE MUDEI MUITO, NÃO SEI SE ALTEREI O SENTIDO)

 

 

 

            Reiteradas vezes tenho manifestado minha alegria de ter conquistado o privilégio de morar em casa própria na Estrada Velha das Águas Santas. Quando aqui me instalei, era um lugar bucólico e romântico. Daquela paisagem constava uma estrada de terra que infernizava a vida dos moradores – na seca, com a poeira, e no verão, com um lamaçal infernal – porém tudo natural.

O tempo passou e aqui também chegou o “progresso”. Sem meio-fio, sem água e sem esgoto, a Prefeitura resolveu solucionar o problema, asfaltando a rua que vai desde o Alto das Águas Santas até as proximidades da Escola do Bradesco. Meteu asfalto em tudo, afirmando que o novo pavimento teria a durabilidade de, pelo menos, 15 anos. Só se for para efeito de pagamento à empreiteira, porque o que se vê, após quatro anos de inaugurada – quem quiser pode medir a altura do asfalto e conferir com a fatura – é uma tintura negra misturada com brita, deixando a rua em estado de calamidade pública.

            Quando inaugurada de pouco – nova eleição, outra demagogia – surgiu a notícia de que a Copasa iria assumir o abastecimento de água na região, o que pareceu ser a solução para o antigo problema de falta d’água nas Águas Santas. Para isso, o asfalto teve que ser rasgado para a colocação dos tubos adutores que foram instalados, mas que até hoje não levaram água a lugar nenhum. As casas, portanto, continuaram secas, o asfalto novo ganhou um remendo de fora a fora e a confiança na durabilidade do asfalto sumiu.

A história do desperdício, da incoerência, da incompetência, imprevidência ou sei-lá-o-quê que testemunho desde que me mudei, no entanto, não termina aí. Sem qualquer estratégia ou logística, assentaram uma barreira policial na rodovia BR 283, que vem de Belo Horizonte, em frente à Cia. Industrial Fluminense. O problema é que alguns metros antes da presença ostensiva da polícia, está o trevo que dá acesso à Estrada Velha das Águas.

O posto policial, portanto, serve apenas para fiscalizar e incomodar os donos de veículos que não temem a fiscalização, ou seja, que estão dentro da lei, perdendo seu efeito repressivo aos marginais e contraventores que passam incólumes sem serem molestados pela estrada velha, aquela com o asfalto rasgado. Se no local da barreira fosse montado um pedágio, o faturamento não daria nem para o café. Enquanto isso, na estrada velha, o esparso fluxo de pacatos moradores deu lugar a um tráfego marginal preferencial para infratores.

Por ali passa de tudo, até carretas com excesso de peso. Todo e qualquer motorista que esteja sujeito a alguma infração ou precise driblar a fiscalização desvia pela estrada velha, sobrecarregando o tráfego e acabando de vez com o asfalto de “15 anos” de expectativa de vida útil que em certos locais só deixou vestígios. Nos finais de semanas, motoristas alcoolizados e imprudentes fazem dali um verdadeiro autódromo. Os pedestres, que deveriam ter a preferência, por falta de calçada e meio-fio, são obrigados a se jogarem para o meio do mato, sujeitos ao perigo e ao incômodo de cobras e lagartos. Antes que algo de mais grave aconteça, as autoridades devem olhar por aquele pedaço da cidade, onde vivem eleitores e contribuintes.

 

P.S.: Fim de governo lamentável. O diabo mostrou suas unhas. Gás a quase 30 reais, gasolina a dois reais. O maquiavélico se vingou exatamente em cima dos pobres e adubou o abacaxi para Lula.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DIVAGAÇÕES

 

 

 

            Hoje acordei cedinho, com o chilrear dos passarinhos. Entrei na internet — que grande invenção também para os velhos! — e ali estava uma linda mensagem com paisagens maravilhosas. No fundo, a melodia do filme Ghost. Sem perceber, entrei no labirinto da minha memória e comecei uma longa caminhada por uma estrada de terra batida ladeada por canaviais. Embalado pela música, fui revendo meus antepassados, mas de uma maneira diferente da que costumo vê-los, sempre cabisbaixos e distantes - talvez por interferência da saudade. Nesta minha elucubração momentânea, eles estavam ativos, vigorosos e sorridentes. A sensação que tive é a de que eu os tocava, todos sorridentes amáveis e satisfeitos. Foi um momento de paz! Busquei nos recônditos da minha memória meus avós com seus tipos peculiares e inesquecíveis. Ele, italiano, moreno, bigode espesso, terno, chapéu gelo e pernas arqueadas com sua risada rouca e intermitente que sempre procurei e nunca mais ouvi. Minha avó também ali estava. Italiana de Veneza, alta, alva, olhos azuis, grandes, amatronada, a tecer renda de bilro e me pedir um beijo.

            Meu pai, esguio e elegante, dono de um sorriso cativante, participava alegremente da conversa com meus avós. Eis que surge minha mãe. Com seu inesquecível avental, próprio para a lida à beira do fogão a carvão, pois naquele tempo não havia gás. Mulher austera e de fibra. Bem nascida, filha do coronel da Guarda Nacional, Hilário Barroso, de finos dotes, professora diplomada e pintora clássica compulsiva. Dela, o que eu mais apreciava eram seus dotes culinários e não me esqueço de seus afagos nos meus cabelos finos e dourados do sol. Absorto naquela viagem, fui me enveredando pelo labirinto da minha memória.

            De repente, estava eu no timão do barco do meu pai, enfrentando um temporal na perigosa travessia da Ponta Negra, no rio Pará, que é o estreitamento da baía de Guajará, onde fica a cidade de Belém. Essa travessia é feita por pilotos com muita perícia, mas vi meu pai e seu capataz fazerem aquilo tranqüilamente, desde criancinha.

            Ao ver o capataz do papai, seu Feliciano, com a face sulcada pelas intempéries da Amazônia e também pelo avançado da idade, ensopado pela chuva torrencial que caía naquela noite tenebrosa, me comovi. Pedi-lhe o leme da embarcação. Sua única pergunta:

            Tu te garantes?

            Aquiesci com a cabeça. Meu pai a tudo assistia sem dizer palavra alguma. Tomei o timão. A sensação que tinha era a de que meu coração batia na boca. As pernas tremiam violentamente. Não podia deixar que eles percebessem e, por outro lado, tinha que vencer meu medo, vencendo, desta forma, a mim mesmo.

Não se via quase nada, só algumas silhuetas reveladas pelos raios incessantes. Nessas horas, não se procura o destino à frente, e sim, uma referência aos lados, seja à bombordo ou boreste. A adrenalina quase me sufocando, o rio cada vez mais encapelado, correnteza forte da enchente na cabeça da maré, vislumbrei a silhueta de uma imensa castanheira a bombordo, na margem do rio. Num golpe rápido, virei o timão para boreste e deixei a margem direita do rio, afastando-me com velocidade em direção à margem esquerda. Se errasse, daria de encontro com algumas pedras, postadas no leito do rio. Foram momentos intermináveis de angústia e de tensão. O mar e o rio são para os valentes e destemidos, porém não admitem erro. Um erro naquele instante seria fatal. O barco soçobraria e não sei se alguém se salvaria.

Finalmente, após uma hora de tensão a chuva amainou e pude ver as luzes de uma pequena cidade chamada Guaramucu. Eu tinha acertado. Que alívio. Sem palavras, recebi os abraços do meu pai e do Feliciano. Naqueles gestos, queriam dizer que eu havia sido aprovado pelos destemidos e aventureiros e daquele dia em diante compreendi que havia dominado o medo e nunca mais seria o mesmo.

            Agora a música acabou. Despertei das minhas divagações, caminhando naquela linda estrada que cortava lindos canaviais.

            Obrigado à minha amiga remetente da mensagem que me proporcionou uma volta ao passado.

 

P.S: E os nossos relógios digitais? Que desleixo! O aeroporto será inaugurado e os relógios digitais que marcam hora e temperatura continuarão ali, como monumento ao desleixo, fazendo propaganda do Governo Estadual e da Cidade de Tiradentes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DOMINGO

 

 

 

            Domingo é domingo em qualquer lugar. É um dia especial com suas peculiaridades. Na minha cidade não é diferente. Antes do sol aparecer por detrás das montanhas, a cidade começa a despertar. Os padeiros são os primeiros e, para que a padaria abra suas portas, servindo a clientela com pães frescos e quentinhos, é necessário que aqueles profissionais comecem a trabalhar às três horas da madrugada. É uma lida dura. Deixar a cama aconchegante, enfrentar o frio da madrugada e depois encarar o calor dos fornos não é para qualquer um. Muitos destemperam após esse tipo de pasteurização e sucumbem prematuramente. Mas, segue o domingo.

As senhoras devotas, de mais idade, preparam-se com carinho e respeito, de véu na cabeça e terço em punho, para cumprir sua obrigação cristã perante Deus, dirigindo-se à igreja para assistir à missa. Pelas ruelas estreitas, sob o olhar sonolento do casario barroco, vão caminhando silenciosamente, pisando delicadamente nas pedras seculares da minha São João del-Rei. As luzes ainda nem se apagaram e aqueles vultos vão tomando vida quando adentram à igreja. Num ambiente de meditação e prece surge o padre, na frente do altar, com seus paramentos coloridos, para iniciar o Santo Ofício. As orações propostas pelo sacerdote são respondidas em uníssono. Um canto gregoriano ajuda a criar um clima de misticismo e enlevo, sugerido pelo maravilhoso barroco secular. Ao final da missa, aquelas senhoras se transformam em grandes banqueteiras. Dali para a cozinha. Vão preparar com esmero o tradicional almoço do domingo.

Que maravilha essa cozinha mineira! Cheia de tantos truques, panelas de pedra, de ferro, fogão a lenha. Costumo dizer que a melhor invenção de Minas, sem dúvida, são as mineiras e em segundo lugar o pão de queijo. Em outros cantos da cidade, no mesmo horário, em alguns bares, os cozinheiros ou cozinheiras preparam o tradicional mocotó ou a dobradinha para saciarem o apetite dos adeptos de Baco e agnósticos. Alguns, bons católicos, só chegam depois da missa. O mais importante disso tudo é o ambiente criado nos bares. Todos se conhecem. Se por acasoalgum deslocado num canto do bar, certamente no próximo domingo estará fazendo parte das conversas, que são as mais variadas. Acreditem, ouvi discutirem até política internacional, mas os assuntos preferidos são as gozações entre os amigos e, inevitavelmente, o futebol. Nunca presenciei uma briga ou desavença, embora a quantidade de pinga ingerida, sob pretexto do mocotó, seja imensa. Ninguém se exalta. No máximo, ri mais alto que os outros. Oreine é testemunha, no Tia Maria, e o Marcos Alberto, no Penna’s. Tradição gostosa essa! Na praça, alguns aposentados se lagarteiam, “quentando” sol, enquanto os moleques ferram numa pelada de bola de borracha, aproveitando o gramado da praia do Córrego do Lenheiro.

Na Estação Ferroviária, a bela e romântica “Maria Fumaça” dá seu último apito chamando algum turista retardatário que se dirige a Tiradentes. Dizem que esse trenzinho foi o culpado pela evolução de Tiradentes e a involução de São João. Isso porque o turista vem até São João, pega o trem e passa o dia em Tiradentes, gastando o dinheiro por lá, com almoço, doces e artesanato, comprando aquelas coisas que, muitas vezes, ao chegar em casa, não sabe nem o que fazer com elas. Dessa maneira o turismo enriqueceu Tiradentes.

            As manhãs dos domingos são-joanenses, já foram mais alegres quando nós promovíamos bingos nos campos de futebol. Era uma festa para a comunidade carente de eventos. Sorteávamos, muitas vezes, cinco carros zero quilômetro. Tudo dentro da maior lisura amparados pela lei. Não sei porque ou com que interesse o chefe da Fazenda Estadual não simpatizava com aquele tipo de evento e dificultava o que podia. Talvez porque fosse promovido pelo Pedrão & Cia. Se fosse do Silvio Santos ou a Azulzinha, que não tem nada a ver com a nossa comunidade, só vem aqui para levar nosso pouco dinheiro para fora, provocando uma verdadeira sangria em nossa frágil economia, aí sim, está liberado. Nossos eventos representavam empregos para nossa cidade, geravam ICMS nas compras dos carros e, finalmente, faziam muitas pessoas felizes. Até que veio uma ordem do Eduardo Azeredo, então governador, suspendendo os bingos, se antecipando à uma Lei Federal. Governo “austero” aquele!

Talvez porque estivéssemos fazendo uma pequena concorrência com o cassino oficial do governo, cheio de Loterias, Pimbas e outras roubalheiras mais ou por não termos contribuído para sua caixinha de campanha. Manda quem pode, obedece quem tem juízo!

            Hoje é um domingo cinzento. Dia propício para o mocotó. Deixem-me apressar, senão perco o meu e o bate-papo. Aí, domingo à tarde também é domingo em qualquer lugar do mundo. Muito chato!

 

P.S.: Dizem que nosso país não é sério. Disso já sabemos, mas vindo da Itália, berço da civilização e precisamente da Ferrari, a atitude contra nosso Rubinho, no GP da Áustria, é, no mínimo, uma cafajestada. Indignado, revidarei: não mais comprarei uma Ferrari, só vou de fusca.

 

 

 

 

EDUARDINHO

 

 

 

            Dias atrás, quando voltei de Camargos, fiquei sabendo do falecimento do meu amigo Eduardo Lopes, tratado por todos, carinhosamente, por Eduardinho. Sua morte não me surpreendeu já que seu estado de saúde vinha se agravando. Um macho da qualidade dele não foi feito para se decompor numa cama. Após enfrentar, na selva e nas aventuras de que participou, tantos perigos e adversidades, não seria justo permanecer prostrado num leito de hospital. Aquela situação sem dúvida o incomodava. Porém, a notícia abateu-me profundamente.

            Dizia meu amigo Dinho das Rosas:

            — Quando nós fazemos falta lá em cima, o Senhor nos chama.

            Talvez tenha acontecido isso mesmo. O paraíso estava monótono e o Oswaldo Magaldi, sentindo falta do velho companheiro de caçadas e churrascadas, convocou-o.

            Quando faleceu seu pai, Eduardinho chamou para si a responsabilidade de acabar de criar os irmãos menores. Assim sendo, só foi constituir sua própria família mais tarde, quando se formou professora sua última irmã.

            Dotado de grandes virtudes, Eduardinho possuía a maior delas: sabia ser amigo dos amigos. Sempre solidário, alegre e contador de causos. No ambiente em que chegava, formava roda. Tive o privilégio de desfrutar da sua amizade e, algumas vezes, acampamos lá pelas bandas do Mato Grosso e do Araguaia. Apreciava o seu jeitão.

            É sabido que todos os caçadores e pescadores têm pressa de chegar ao lugar de destino. Com Eduardinho era diferente. Parávamos em algum posto de gasolina e ele sumia. Os companheiros aflitos, com pressa de seguir viagem, iam a procura dele. Não foram raras as vezes que o encontramos tomando uma pinga, comendo um tira-gosto e curtindo um bom papo com aquele que tivesse tempo disponível, fosse ele da elite ou pé de chinelos. Tratava todos com alegria e sem distinção de categoria social.

            Não sei por que a vida nos reserva essa punição, esse tributo tão estressante de ver nossos amigos e pessoas queridas nos deixarem. Quando embrionários, se nos dessem a chance de responder se gostaríamos de nascer, talvez a resposta fosse não. Lembro-me da infância feliz que tive, junto aos meus pais, avós, tios, primos e irmãos. Hoje, com raras exceções, restam apenas pó e saudades. Aqueles já são saudades velhas, o meu amigo Eduardo é uma saudade nova. Não sentirei mais o aroma do seu cachimbo, que o tornou um tipo inesquecível. Poucos dias antes de morrer encontrou-me e disse de chofre:

            — Na política não temos inimigos, mas adversários.           Talvez tenha lembrado do seu companheiro de amenidades Dr. Tancredo.

            Descansa em paz, amigo, você merece.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O ENGODO

 

 

 

            Há anos, quando ainda não existia TV por assinatura, atendendo a um apelo de marketing, fui um dos primeiros em São João a me filiar ao sistema recém inaugurado da Globosat, que oferecia seis canais a um preço mensal de 20 reais.

            Para usufruir daquela programação, tive que investir a quantia equivalente a três mil dólares na compra de uma antena parabólica e um decodificador de sinal. Passado algum tempo, a qualidade da imagem vinha caindo, quando, certo dia, liguei a televisão para sintonizar o canal de desenhos animados para meu filho e fui surpreendido com uma mensagem na tela: “Encerramos nossas atividades”. Não acreditei. Entrei em contato com a empresa e, de , obtive a informação que eu receberia “inteiramente grátis” uma moderna antena parabólica e um novo decodificador de satélite para captar a nova programação que constava de 140 canais ao preço de 52 reais. Mentira. De verdade, somente o preço, quase triplicado. O contrato anterior foi feito dentro de minhas posses de aposentado. Como iria arcar com uma prestação dessas, se meu aumento anual é de 3 ou 4%? De resto, na fatura dos aparelhos, veio a expressão “em comodato”, o que significa dizer que passei a ser apenas um depositário e não um proprietário, como dizia a frase “inteiramente grátis”. Os 140 canais a que se referia a propaganda também era mentira. Somente 70 canais são de vídeo (de gosto duvidoso e linguagem indecifrável) e 70 de áudio.

            Não conheço ninguém que ligue um aparelho de televisão para ouvir música - uma coisa de gosto muito pessoal, que obedece a um ritual de escolha próprio, muitas vezes não disponível naquela programação.

            Sentindo-me lesado, procurei meu direito. Fui ao Procon, onde me deram ganho de causa, mas justificaram sua incapacidade de prosseguir com a demanda, visto que a empresa era de São Paulo, fora de nossa jurisdição. Recorri ao Juizado Especial de São João del-Rei e, nesse ínterim, veiculou-se num desses jornais de televisão, a notícia que uma empresa prestadora de serviços, nos moldes da Globosat, lá nos Estados Unidos, talvez até a matriz da nossa, foi condenada a indenizar uma família de negros americanos com a bagatela de quatrocentos mil dólares, somente porque o equipamento daqueles consumidores tornara-se obsoleto. Meu sentimento de vitória na ação aumentou. Como é comum copiar o que nosso patrão do Hemisfério Norte dita, por que então não copiar o que é benéfico para o consumidor tupiniquim? Na última audiência da minha ação, aqui no fórum, o juiz responsável manifestou-se, inverteu o ônus da prova, penalizou a Globosat e ainda acrescentou: “Se eu der minha sentença, agora, em cinco minutos, o Brasil inteiro saberá”, insinuando que decidiria a meu favor. Saí da audiência aliviado. Finalmente se faria justiça. Não queria nada além do que aquilo que gastei. Ledo engano. Trocaram o juiz e eu, um reles consumidor brasileiro, fui condenado.

            Manda quem pode, obedece quem tem juízo.

            Até quando, Catilina? Obrigado, ilustres julgadores.

 

P.S.: Mais uma vez o Brasil no topo do pódio. Desta vez o Wanderlei deixou os quenianos para trás e faturou o primeiro lugar na Maratona Internacional de S.Paulo e a Severina repetiu o feito entre as mulheres. Parabéns para ambos que baixaram a marca da pista. Daqui a pouco o hino brasileiro substituirá a Aquarela do Brasil, a música brasileira mais tocada pelo mundo afora.

 

 

 

21 DE ABRIL DE 2000: BRASIL 500 ANOS

 

 

            Comemorar o quê? O extermínio dos primeiros brasileiros, habitantes desta “Terra de Vera Cruz”, como a chamaram os invasores? Que eram mais de três milhões de indivíduos e hoje são apenas 300 mil? (E ainda dizem que nossa colonização foi pacífica.) As carnificinas das guerras encarniçadas como a da Cabanagem, liderada por Avelino, cognominado Angelim — uma referência à inflexibilidade de seu caráter, comparável à rigidez daquela madeira amazônica —, que representou a resistência dos caboclos brasileiros à invasão lusitana? O saque de nosso ouro, remetido à coroa portuguesa depois de arrancado de nossas minas com o suor e a chibata no lombo dos índios e negros feitos escravos?

O enforcamento de Tiradentes, com requintes de crueldade, na Praça da Lampadosa? Aproveitaram do seu sangue e lavraram uma certidão de que a sentença do enforcamento havia sido cumprida. Metidos em salmoura, seus restos mortais voltaram a Minas Gerais. A cabeça foi exposta em Vila Rica e os quartos espalhados pelo Caminho Novo — em Cebolas, Varginha do Lourenço, Barbacena e Queluz (ex Carijós), chamada às vezes Sítio das Bananeiras — naqueles lugares, enfim, onde o “malvado alferes” fizera suas “infames prédicas” pela liberdade da pátria.

            Os 400 anos de escravidão impostos aos negros, arrancados de sua terra natal além-mar, submetendo-os a humilhações e maus tratos, como o vexame do tronco, onde eram açoitados a mando de seus senhores até à morte? Que comemoração macabra! Os que trucidaram e dizimaram vidas humanas são exaltados e reverenciados como heróis descobridores?

            O que comemoramos? A entrega de nossas riquezas minerais, como a da Serra do Navio, no Amapá? A sangria produzida na maior reserva mineral do mundo, na Serra de Carajás, onde até uma ferrovia e um porto foram construídos em tempo recorde para escoar o minério extraído antes que algum brasileiro pudesse se dar conta?

            O assassinato de milhares de jovens, a maioria universitários que seriam o futuro da nação e representavam “perigo” para a “revolução moralizadora” de 31 de março?

            A geração de 13 milhões de desempregados, 30 milhões de analfabetos, 44 milhões de miseráveis e 22 milhões de pobres?

            As chacinas produzidas contra cidadãos indefesos, desempregados e sem terra?

            O roubo na Previdência Social? Aliás, esse um dos maiores fundos do mundo em arrecadação, pois passou 30 anos recolhendo uma parcela significativa do salário de cada trabalhador brasileiro sem pagar uma única aposentadoria, a não ser as por acidente? Descaradamente, dizem que está falida. De quem é a culpa? O dinheiro foi descontado religiosamente de nossos salários, mas colocados à mercê da gastança perdulária do governo.

            Devemos comemorar a “venda” da Cia. Vale do Rio Doce e de suas jazidas, empresa pública classificada entre as melhores e mais eficientes do mundo, cedida pela bagatela de três bilhões de dólares? Ou talvez devêssemos festejar o repasse de um bilhão e meio de dólares, metade do que foi faturado com a venda da companhia, aos banqueiros internacionais donos dos bancos Marka e Fonte Sindan, sob o pretexto de que esses bancos desconhecidos ameaçavam o sistema financeiro brasileiro?

            O salto da nossa dívida, que saiu de 70 bilhões para 500 bilhões, provocando um pagamento de juros da ordem de 300 milhões de reais por dia, também pode render alguma alegria hoje?

            Preferiria o Brasil colônia. A sangria era menor, pois levavam somente o ouro. Hoje levam o ouro, a dignidade, o sangue e o suor desse povo humilhado e ultrajado.

            O FHC com F de “Fantoche” está lá. Todo empertigado, travestido de estadista, satisfeito de ter pago o preço que pagou para deixar seu nome na história do Brasil como o presidente dos 500 anos.

            Não. Para muitos brasileiros, certamente para a maioria, ele passará como o mais vil e covarde deles. Um genocida maquiavélico que não deu ouvidos ao clamor de tanta gente que morreu de fome por falta de trabalho, mas deu fábricas de automóveis de presente para as multinacionais produzirem meia dúzia de empregos de baixa qualificação, enquanto os cargos mais elevados são ocupados por estrangeiros.

            Comemorar três milhões de reais por uma caravela que não funcionou? Ela está na medida certa para uma viagem do presidente e sua equipe econômica. É onde deveriam ficar, onde o mar é mais profundo e inóspito, num mausoléu submerso, onde construíram sua própria incompetência.

            Fora FHC! Este país não é teu.

 

 

 

 

 

 

 

CARTA AO MEU FILHO

 

 

 

            São João del-Rei, 18 de junho de 1997.

 

            Meu filho,

 

            Ao sentir aproximar-se o final da minha jornada, gostaria de deixar consignadas algumas considerações úteis na tua caminhada que se inicia. Peço-te perdão pela ousadia de te colocar no mundo sem ouvir tua opinião. Assumo metade da culpa.

            Pela tua herança genética, certamente lidarás com muitos defeitos e algumas virtudes de teu pai. O dia em que nasceste foi de grande alegria e profunda reflexão. Ser teu pai com a idade já avançada seria irresponsabilidade ou desafio? Talvez, um certo egoísmo. Usufruir do teu sorriso inocente, do teu terno abraço, da tua pequenez angelical. Vieste preencher minha vida.

            Gostaria de te falar sobre muitas coisas que nossa diferença de idade não permite. Um momento só e uma folha de papel não basta. Gostaria de caminhar a teu lado, às vezes contigo no colo, sangrar com prazer, pisando nos espinhos que por ventura a vida te reserve. Faze da vida uma trajetória de sorrisos. Deixa que as pessoas te procurem pela tua alegria e não te evitem pelas tuas tristezas. Nunca sejas subserviente. Caminha de cabeça em pé. Não aceitas humilhação e nem abdicas do teu direito. Protege tua mãe. Não deixa que a façam infeliz. Ela enfrentou a maledicência de uma sociedade vil e austera para te ter.

            Se a indagares se valeu a pena, certamente ela não hesitará em te abraçar e, sem palavras, sentirá as lágrimas dela umedecerem teu ombro.

            Se puderes ter dinheiro, será bom, porém, se faltar, não te maldigas; ele é o grande culpado das mazelas do mundo. Nas mãos de pessoas fracas, a riqueza acaba por eliminar o que o ser humano tem de mais admirável: a dignidade.

            Respeita os idosos. Quando por eles passares, reverencia-os. Ali vão anos de experiência vencidos pelo tempo, e quando fores senil, lembrarás do que hoje te falo. Somente aí, nessa época, entenderás.

            Te amo.

            Teu pai.

 

 

 

FRANCAMENTE

 

 

 

            Sopravam ares benfazejos de austeridade e ética sobre o Congresso Nacional, especialmente nas duas últimas gestões de sua presidência, exercidas por Aécio Neves e, posteriormente, por João Paulo Cunha(?). Tinha-se a sensação de que finalmente o Brasil caminhava para se alinhar entre as nações mais sérias do planeta. A imagem desgastada do Congresso começava a se recuperar e, conseqüentemente, a dos políticos que ali atuam. Por um momento, chegamos a acreditar que aqueles deputados sem projeção política alguma, que usam seus mandatos apenas para satisfazer interesses pessoais, estavam ficando para trás. Mas na hora da votação, como a da eleição do presidente da casa, vimos que esse chamado “baixo clero” ainda é uma fatia expressiva dos nossos “representantes” e o presidente eleito, Severino Cavalcanti, o líder desses bonifrates.

            Não foi difícil se eleger. Enquanto aqueles de retórica brilhante, com os holofotes sobre si, preocupados com a mídia, se digladiavam lá por cima, sorrateiramente, pelos subterrâneos do Congresso Nacional, Severino corrompia seus pares com a promessa vil de aumento de honorários. Na primeira entrevista após a vitória, com a imagem de “coronel de engenho”, vociferou que daria aumento aos deputados e aqueles que não concordassem, abdicassem, através de documento próprio. Em seguida, com o objetivo claro de bajulação, declarou-se favorável à prorrogação do mandato do presidente Lula. Que vergonha!

            Quando se fala em políticos corruptos no Congresso, logo nos vem à mente a imagem daqueles que pontuam o ranking. Mas eles não são poucos e, talvez por isso, nem todos, conhecidos. O Severino, por exemplo, está na décima legislatura seguida, mesmo depois de ter sido protagonista, juntamente com Inocêncio de Oliveira, de um dos maiores escândalos da história da República, que ficou conhecido como o “escândalo da mandioca”. Fizeram um projeto de plantio de mandioca em floresta e apresentaram-no ao Banco do Brasil para obter o financiamento. Era tanta mandioca que se o projeto realmente fosse executado, não caberia no pequeno município indicado. O pior é que o dinheiro foi liberado e a mandioca nunca se viu, enquanto esses ratos continuam a vilipendiar as leis, impunes e superiores a tudo.

            Resta-me o consolo de que aquela velha política de São Francisco, de que “é dando que se recebe”, praticada corriqueiramente no Congresso, está acabando, pois, caso contrário, o partido dono da chave do cofre nunca perderia eleição.

 

 

 

O FÜHRER

 

 

            O “Anjo da Morte”, que dizimou na Alemanha, de maneira cruel, milhões de judeus no passado, volta agora travestido de presidente dos Estados Unidos, na figura arrogante de George W. Bush, e no lugar de judeus, desta vez, o alvo são os muçulmanos.

            Interessante: em 1918, o Führer fora internado em um hospital, vítima de um gás tóxico disparado pelos aliados, dos quais faziam parte os Estados Unidos. Esse mesmo país que hoje condena tal tipo de armamento e usa-o como desculpa para cometer assassinato em massa contra populações civis indefesas, como as do Vietnã, do Afeganistão e do Iraque, embora nunca tenha conseguido seus objetivos.

            Os EUA alegam que o Iraque possui armas químicas de destruição em massa, porém, até ontem, não apontou essas armas. Se forem gases letais, quais são eles? De que tipo? Qual o nome do gás? Pura desculpa esfarrapada.

            Apesar de todo o equipamento bélico - oito porta-aviões, 80 aviões de caça com ogivas nucleares, 280 mil homens, mais tanques, aviões espiões de última geração e outras parafernálias -, quase sempre os americanos não conseguem seus objetivos.

            Contra o Japão, a meu ver, os vencedores foram os nipônicos que, num ataque estrategicamente perfeito a um alvo militar, destruíram a frota americana baseada no Pacífico, em Pear Harbor. Num ato de vingança, o presidente Truman determinou o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, provocando o maior genocídio da história da humanidade.

            Se não tivessem a bomba atômica e fossem obrigados à uma guerra convencional, talvez o desfecho fosse outro.

            No Vietnã, foram derrotados e humilhados. Usaram todos os tipos de arma química, inclusive o desfolhante laranja (o que isso?) contra os pobres vietnamitas, que os enfrentaram usando armas, algumas delas artesanais, feitas de bambu. Foi uma guerra que serviu para produzir aqueles jovens rapazes americanos, fantasmas assassinos, que vivem disparando seu medo e seu sofrimento mental, através de armas de fogo, contra seu próprio povo pelas ruas de Nova Yorque.

            No Afeganistão, nada. O tal de Bin Laden continua dando entrevistas, tripudiando sobre a parafernália bélica americana, que, inclusive, fabricou uma bomba especial, de não sei quantas toneladas, para matá-lo dentro das cavernas.

            Agora é a vez do povo iraquiano sofrer por ter o privilégio de possuir petróleo. O que o Bush quer é o petróleo. Ele está pouco se incomodando se o Sadam Husseim é ditador, se fabrica armas de destruição em massa e se oprime o povo. Ele quer é roubar, assaltar o petróleo que não lhe pertence. Se não, por que ele não intervém nas atrozes ditaduras africanas? Por que não invade Cuba? Porque não existe petróleo. Será que esse fanfarrão não vai atender aos protestos contra a guerra realizada no mundo inteiro? Será que não tem alguém de bom senso naquele governo capaz de demovê-lo dessa idéia macabra? Será que quem governa é a KKK? Por vontade do seu vice-presidente, o Iraque seria bombardeado por bombas atômicas. Que tragédia! O mundo está à mercê de um louco covarde. Primeiro, manda desarmar a nação que vai atacar e depois despeja seus foguetes e bombas num país desprotegido.

Os americanos podem possuir qualquer tipo de armamento condenado pelo tratado de não proliferação de armas nucleares, o resto do mundo não. Interessante. Por que a ONU não manda fiscalizar os arsenais norte-americanos? Por que a ONU não exige o desarmamento dos Estados Unidos?

            Segundo um porta-voz da rede Al Qaeda, existem instaladas dentro das sete principais cidades americanas, sete bombas atômicas que poderão ser disparadas a qualquer momento. Verdade ou mentira? Ninguém sabe. E se os muçulmanos estiverem esperando o primeiro tiro? Aí terão uma justificativa: “Apenas revidamos”. Certamente a opinião do mundo ficará dividida e o sentimento anti-americano se ampliará. Poderão dominar o mundo pela força, mas, pela simpatia, está difícil.

 

P.S.: O Lula tem meu voto de confiança por quatro anos, afinal, foram 500 anos de domínio da elite. Mas daí a dizer que não sabia do poder das agências de controle do governo de alterar os preços das tarifas públicas sem seu conhecimento vai uma grande distância. Por enquanto, “tudo como dantes no quartel de Abrantes”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

HONDURAS 3x0

 

 

 

            Na Copa América de futebol, disputada na Colômbia, fomos derrotados pela equipe de Honduras. Apesar dos protestos de nossos patrióticos narradores contra a arbitragem, quem saiu prejudicada foi a equipe adversária, pois o árbitro não consignou em sua súmula um gol legítimo dos hondurenhos, terminando o jogo com o placar de 2 x 0. Prolfaças aos hondurenhos.

            Já me acostumei a ver nossa Seleção de futebol ser derrotada. Fato raro antigamente. Não me abato mais e já consigo assistir às derrotas até o final.

            Na minha maneira de ver, várias razões têm que ser consideradas. João Saldanha, o melhor comentarista e técnico de futebol que vi, responsável pela conquista do tri, dizia que a escassez de terrenos baldios com as peladas de bola de meia estava prejudicando a formação de novos craques, na maioria, emergentes desses lugares. Sim, porque controlar uma bola de meia não era para qualquer cabeça de bagre. Perguntem ao Batistinha. Dizia também o João que, desde a criação do futebol, a medida da trave e a do campo de jogo mantiveram-se estáticas, enquanto o homem vem, desde então, superando suas marcas atléticas em todas as Olimpíadas. Como é difícil aumentar o campo de jogo, sugeria que se tirasse um jogador, passando uma equipe a ter dez em vez de onze jogadores, a fim de se criarem mais espaços.

João sempre combateu o que se chamava de “futebol força”, praticado pelos países europeus e principalmente pela Inglaterra. Esse tipo de futebol beneficia o atleta de baixa qualidade, o tal do “botineiro”, que, no lugar de jogar futebol, vai ao campo para aleijar os adversários. Um desses quase acabou definitivamente com a carreira do último craque extra-clase do Brasil, o Zico. O nome dele ninguém guardou, o do Zico, felizmente, continua a fazer eco pelo mundo afora, em favor da arte de bem jogar futebol. Além disso, temos que considerar que nossos jogadores, do futebolmolequecheio de ginga e de firulas, são comprados a peso de ouro pelos países que têm seu futebol organizado e lucrativo. Não é essa baderna que se por aqui. Em chegando, são adaptados a esquemas impostos pela filosofia dos técnicos daqueles países, adeptos do estilo “futebol força”. Na época de competições como a Copa do Mundo, são convocados para representar o futebol do Brasil. Eles podem até representar como garotos propaganda de umbros e nikes à vontade, mas o futebol do Brasil não.

            Nossos técnicos saíram daqui e foram para nações praticamente virgens em futebol e ensinaram-lhes aquele futebol arte. Hoje quem pratica nosso futebol de outrora são os africanos que já classificaram cinco equipes para a Copa do Mundo de 2002, enquanto nós, professores, estamos capengando na beira da eliminação. Ficaremos de fora, pela primeira vez, de uma Copa do Mundo?

            Fico espantado ao ouvir o ufanismo de alguns comentaristas, quase a unanimidade: “Temos a melhor técnica”, “a equipe adversária não tem tradição futebolística”, “o placar será 4x0”. Isso dito pelos mais modestos. Inventaram que o Alex é craque. Para mim é o maior “chupa-sangue” dos companheiros. Em outras épocas nem banco pegaria.

            E tem mais: escalar Walmar, Rockenbach, Guilherme? Só se for para subir o preço do passe deles no mercado internacional e, na hora da venda, o treinador ou o Ricardo Teixeira receberem suas comissões.

            É demais. Para quem viu Dino Sani, Gerson, Riva, Pelé, Garrincha, Zico e toda a Seleção do Telê Santana, dá sono e calo na vista assistir a esses “cabeças de bagres”, dando trombada no meio do campo, carrinhos escandalosos. Não dá!

            Colocaram um cabeceador dentro da área, mas os alas, laterais e outros bichos não acertaram um cruzamento sequer para que ele pudesse ser testado. Incrível. Acho que teremos que naturalizar o Petkovitch ou nos veremos na repescagem contra o que sobrou da Concacaf.

            Não se assustem. Vão virar a mesa. Copa do Mundo sem o Brasil não faz sentido. O Havelange ensinou o “jeitinho” brasileiro ao seu sucessor na Fifa. Sem o Brasil, o número de telespectadores no mundo cairá drasticamente. Como nas antigas arenas romanas, todos querem ver o leão derrotado. Só que neste caso, o leão, atualmente, é apenas um gato.

 

P.S.: Obrigado à Funrei, pela edição do 14º Inverno Cultural. Está igual ao vinho: cada ano que passa, fica melhor. Mais cultura, mais alegria, mais turistas e mais empregos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

IMPRENSA

 

 

 

            Para a civilização ocidental, a técnica de imprimir teve início na Europa do século XV, mas os chineses, japoneses e coreanos, há muito, conheciam-na e usavam-na.

            Os mais remotos vestígios de imprensa de que se tem notícia são os amuletos que a imperatriz Shotoku, do Japão, mandou confeccionar antes do ano 770 de nossa era, dos quais ainda restam alguns exemplares pelos museus da Europa. Em 1900, numa caverna em Tunhuang, na China, foi encontrada outra relíquia desta natureza, conhecida pelo nome de “sutra do diamante”. É o mais antigo livro datado que existe (16-V-868) (sugiro: 16 de maio de 868, é isso mesmo?).

            A arte de imprimir utilizando blocos entalhados é a forma clássica da imprensa chinesa. Entre 971 e 983, foi impresso o Tripitaka, a Bíblia budista, cuja consecução exigiu o entalhe de nada menos do que 130 mil blocos de madeira.

            A imprensa foi introduzida no Brasil com a corte de D. João VI. O material gráfico, que pertencia à Secretaria dos Estrangeiros e da Guerra, foi colocado no porão do navio Medusa pelo conde da Barca, e, posteriormente, instalado em sua casa. Depois de um ato real, a casa passou a funcionar como Imprensa Régia e de lá saiu, a 10 de setembro de 1808, o primeiro jornal editado no Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro, dirigida por frei Tibúrcio José da Rocha. Depois de passar por várias direções e denominações, sempre porém com caráter oficial, tornou-se em 1º de janeiro de 1892, o Diário Oficial, que se conhece até hoje.

 

 

 

 

INDIFERENÇA

 

 

 

            Uma noite dessas, quando entrava na Rádio, às 21h30, fui abordado por um menino, que devia ter entre dez e doze anos. Com vários argumentos - não me cabe julgar se falsos ou verdadeiros – pediu-me um “trocadinho”. A primeira reação – resultado desses anos todos de Brasil patrão, de “minha empregada”, “meu empregado” em vez de minha auxiliar e meu auxiliar, palavras menos ásperas e menos discriminatórias - foi de desconforto e indiferença.

            Felizmente, sou uma pessoa que respeita a cidadania e tenho ouvidos e educação para os meus irmãos menos favorecidos pela sorte. Caí em mim e dei atenção àquele pequeno ser desprotegido, talvez pelo pai, pela mãe e pelo Estado, com certeza. Meu dever não é julgá-lo nem expulsá-lo, mas sim ouvi-lo e acudi-lo. Não quero saber se mente, do que duvido. Ninguém queira saber o que é pedir, principalmente quando se pede o que comer. Na minha retina veio a figura do meu filho, na mesma faixa etária, no lugar daquela criança. Ele que vive brigando para não comer. Naqueles olhos a súplica cruel de um ser humano aos pés de outro ser humano. Agindo como um robô, dei-lhe uma ou duas moedas, ao que me agradeceu e saiu sem perceber que deixara para trás uma verdadeira estátua.

            As infalíveis perguntas voltam a massacrar meu coração. Por que 500 anos de colonização de um país tão rico e belo produziram 50 milhões de miseráveis? 500 anos não são 500 dias! Um país que tem mais de 500 deputados federais e mais de 80 senadores com honorários altíssimos. Para que? Não querem saber se em algum lugar do Brasil existe alguém morrendo à míngua, de desnutrição e indiferença, quando também estão entre suas missões, proteger e amparar os descalços e descamisados.

            Vai menino! Talvez, um dia, tu serás presidente da República!

 

 

P.S.: Fugindo dos alimentos industrializados, sobrecarregados de agrotóxicos, a população, que não é idiota, foi se refugiar nos “produtos da roça”. Pois bem, de uma hora para outra, o mercado se viu infestado de “ovo caipira” com embalagem, rótulo e filme de PVC, porém, quase não se distingue a clara da gema de tão pálida que é. Já tem até multinacional brasileira do ramo de alimentos vendendo “frango caipira”. Parece-me que não podem ser contestados, afinal de contas, nunca vi uma granja em centro de cidade, por tanto elas estão todas na roça. Agora, que a diferença é brutal entre o – digamos assim – legítimo caipira e o caipira de gravata, isto é verdade. O legítimo caipira dá banho!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

LI

 

 

            Li na rede internacional o seguinte: o assassino do índio pataxó agora é funcionário federal e ganha 6,6 mil reais por mês. A informação foi publicada pelo Correio Brasiliense, em 22/12/2002. Sob a manchete “Nomeado com louvor”, a reportagem contava que Bruno, o rapaz que matou o índio Galdino queimado, foi libertado, “passou” no concurso público e agora ganha esse salário.

            A matéria dava outros detalhes. Contava que Bruno, filho do presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, fez concurso público para o cargo de segurança (12 vagas disponíveis; salário de 1,3 mil reais; nível exigido 2º grau) e ficou em 65º lugar. Depois do resultado, o número de vagas aumentou para 70. Após 12 dias no cargo, ele foi promovido a dentista do TJDF para ganhar 6,6 mil. O presidente do Tribunal, o pai, juiz (?!) Edmundo Minervino, ainda teve a cara-de-pau de afirmar na entrevista: “Não houve ato ilegal nenhum”.

Depois dessa vergonha toda, nós, cidadãos brasileiros, perguntamos: se Bruno é tão bom assim, por que não fez concurso para o cargo de dentista? Por que aumentar o número de vagas exatamente para 70? Como estão se sentindo as outras pessoas que foram mais bem colocadas que Bruno no concurso? O que se pode esperar de um país que tem na sua justiça um juiz federal com esse comportamento? Que julgamento foi esse, que pena foi essa que o assassino cruel de uma pessoa já cumpriu, já foi solto e até teve tempo de fazer concurso? Assassinos podem fazer concurso público?

            Incrível, abominável e revoltante.

            A União é o maior, melhor e mais benevolente patrão. Vá um de nós, míseros mortais, cometer um delito dessa monta e ver o que acontece. No mínimo apodreceríamos num cárcere até o final de nossos dias.

            Infelizmente, nosso país ainda é o país da “carteirada”. Recentemente, um outro juiz, desses que julgam nossos atos e deslizes perante a lei, assassinou a sangue frio um pai de família dentro de um supermercado no Recife. A cena foi toda filmada pelo circuito interno de televisão. O canalha executou sumariamente um chefe de família no cumprimento do dever. O desespero do filho da vítima, um menino de oito anos, foi de cortar o coração. Para esses casos deveria haver um rito sumário e pena máxima.

            Nosso país é tão interessante que os “insignes” legisladores (aqueles que receberam aumento de 25% de verba de gabinete, dado pelo gnomo Severino Cavalcanti na barganha para sua eleição) criam leis que beneficiam delinqüentes, como é o caso daqueles que têm curso superior e direito a cela separada. Por quê dar regalia a bandido? Não somos iguais perante a lei?

            Enquanto esses exemplos de impunidade continuarem a prosperar em nossa sociedade nunca seremos nada.

            Levaram a capital do Brasil para Brasília para que esse bando de ratos pudesse se lambuzar com o dinheiro público, arrancado, muitas vezes, de uma legião de trabalhadores que recebem o miserável salário mínimo.

            Cuidado! Tudo tem limite. Brasília hoje está ficando sitiada pelas cidades satélites. Quem sabe, em breve, teremos uma versão moderna da Queda da Bastilha?

 

P.S.: Cadê os relógios digitais das nossas praças?

Vamos mudar o nome da Avenida 31 de Março para Avenida dos Imigrantes?

 

 

 

 

 

 

FINAL DE SEMANA EM MACAÉ

 

 

            Depois das festas comemorativas dos 70 anos do primo Lysis, inconformados com o fim daqueles momentos de intensa alegria, combinamos a ida até a casa do primo José Geraldo, em Macaé, cidadela dos Barrosos, naquelas plagas.

            Muitas dificuldades eu teria que superar, tais como locomoção e distância. Não tendo carro, apelei para minha filha Lia, visto que ela também contém em seu código genético, alguns cromossomos de seus antepassados Barroso.

            Desde minha separação, nunca mais havia convivido com minha filha por tantas horas. Criei a expectativa dentro de mim e fiquei na dúvida de qual seria a sua reação. Foi maravilhosa. Combinamos tudo e na sexta-feira comprei uma passagem para Belo Horizonte, onde nos encontraríamos. Peguei o ônibus, às 16h, perto de casa para não ter que ir à Estação Rodoviária.

            Quando o coletivo parou, já veio lotado. Mas eu tinha a passagem na mão e com meus joelhos em frangalhos, atacados por uma velha artrose que os vem corroendo desde a juventude, aceitei constrangido que a moça se levantasse para ceder-me o meu lugar. (Em outras épocas isto seria um acinte.)

            A passageira da poltrona em frente à minha, mais próxima à janela, entabulou uma conversa com sua amiga que estava na mesma fileira, mas na janela oposta, do outro lado do corredor. As duas pessoas que serviam de anteparo para aquele diálogo tão animado reclinaram as poltronas para facilitar o “olho no olho” das duas e não levar algum perdigoto fortuito em suas ventas.

            — O tio Nerso morreu!

            — Ele tava doente?

            — Não. É que dentro da cabeça da gente tem uma cuinha com um líquido e quando aquilo entorna dá o tar do derrame.

            — Ah, é? Interessante. Ele tava muito véi?

            — Não, sô, rapava os 80.

            Aquilo foi me deixando aflito. Só uma pessoa estava desconfortável: eu. Então, quem estava fora de lugar era eu, com meus resquícios de burguês individualista e egoísta. Se quisesse fazer uma boa viagem teria que mudar o pensamento. Assim o fiz e passei a admirar aquela gente modesta com sua maneira simples de viver e conviver com o próximo.

            A situação em que me encontro, morando retirado da cidade, dentro de um espaço de cinco mil metros quadrados, tornou-me uma pessoa isolada, circunspecta e reflexiva. Isto é bom para a alma, mas não é bom para a vida prática, pois ao nos isolarmos, tornamo-nos pessoas desatualizadas e inseguras.

            Imaginei que pegaria um coletivo dos meus tempos, isto é, aquelas jardineiras pachorrentas, que no da subida obrigavam o motorista cambiar as marchas até chegar à segunda e muitas vezes à primeira, gerando a sensação de que o motor explodiria, mandando pelos ares parafusos, porcas e virabrequins. Ledo engano. O ônibus deslizava pelo asfalto na mesma velocidade, para subir e para descer, sem se dar conta do grau de aclive das longas subidas. Coisas da tecnologia evolutiva dos motores do ciclo Otto. Senti firmeza. Uma boa surpresa. Uma viagem muito agradável.

            Em Belo Horizonte, minha querida filha Lia me esperava em frente ao BH Shopping. Ótimo. Como acontece sempre quando nos encontramos, umas cervejinhas na conversa e vãs filosofias até meia noite. Teríamos que partir cedo para Macaé, onde meus primos e família nos aguardavam. Levantamos cedinho, e, após um bom banho, pusemo-nos na estrada. Manhã chuvosa, tempo fresco, céu plúmbeo. Ideal para viajar. Lia conduzia o carro calmamente e fomos papeando tanto que esquecemos de entrar em Macaé no lugar próprio e só o fizemos após rodarmos 70 km a mais. A bem da verdade não existe nenhuma sinalização indicando o acesso a Macaé. Um verdadeiro absurdo. Consigno meu protesto. Amélia deve alertar o prefeito para melhorar a sinalização daquele trevo mal situado logo após uma curva. Isto é apenas detalhe. O importante estava para acontecer: o reencontro com pessoas tão queridas.

            Infelizmente, são momentos raros em nossas vidas efêmeras. Amélia havia anotado seu endereço e pelo celular da Lia nos comunicamos. Estávamos exatamente em sua porta. Devido ao erro em nossa entrada na cidade, não pudemos ser recepcionados pela turma Lysis, Cenira, Lysia, Roberto, Alfredo, Tales e Túlio, no trevo próximo à casa. Foi uma pena, mas em seguida estávamos todos juntos e aninhados em torno de uma farta mesa. Adrenalina nas alturas, coração apertado, olhos marejados, coriza provocada pelas lágrimas silenciosas, desviadas para o duto nasal. Pura emoção. Estava diante de pessoas tão queridas e que o destino me empurrou para distante delas. José Geraldo com quem convivi na minha infância e juventude no velho sobrado do Largo da , na casa da Dindinha. Lysis, o neto mais velho dos Barroso, por quem nutro um imenso carinho e amizade desde 1951, quando ele foi a Belém, acompanhado de seu irmão Lúcio. Naquela época eu ainda andava de calças curtas. Estávamos ali três galhos grisalhos remanescentes da frondosa árvore genealógica dos Barroso. Hoje se tornaram troncos de novas árvores que vicejaram e produziram lindos ramos e certamente se tornarão caules de outras tão viçosas quanto as nossas. Quantas recordações! No aconchego daquele verdadeiro lar, sentamo-nos em volta da mesa e nos deliciamos com os pratos da Amélia e Socorro. Verdadeiras delícias. Arroz com camarões, moquecas e as sobremesas supimpas de graviolas, muruci e torta de bananas. Horas de alegrias intermináveis, regadas a cerveja gelada. Barrosão, preocupado em não deixar faltar nada, me fez beber muita cerveja.

            A tristeza passou longe dali. Aliás, os Barroso têm a característica de não se lastimarem, pelo contrário, fazem da adversidade motivo para galhofa. Todos já com suas mazelas pelo avançado da idade, vivendo sem se lamentar, dão boas e sonoras gargalhadas.

            À noite, fomos prestigiar a apresentação do Barrosão no karaoquê, incentivado por ele para cantores anônimos. Atacou de Índia, do Cascatinha e Inhana, e finalizou com uma bela música do Dick Farney que, em sua voz, ficou muito bonita. Aplausos!

            Dali, fomos arrematar uns chopes no “Marisco”. Sim, porque segundo minha simpática e querida comadre Cenira, “festa sem chope não é festa”.

            Na comemoração dos 60 anos do Lysis, após tomarmos quase a Escócia toda de whisky, quando saímos, ela disse:

            — Compadre, festa sem chope não é festa.

Sentamo-nos em uma pizzaria, na praça da Paz, e nos entupimos de chope. Conclusão: fiquei tão tonto, que durante a madrugada, cismei que o gaveteiro do impecável guarda-roupa do hotel Marina, na esquina de Bartolomeu Mitre com Delfim Moreira, no Leblon, o metro quadrado mais caro do Brasil, era mictório e ali mesmo me aliviei. Que vergonha! Levantei aflito. Com todas as toalhas do apartamento, enxuguei o que pude. Com a mala em punho, alegando uma emergência, fechei a conta e bati em retirada acompanhado de um medo enorme de perceberem aquele acidental despropósito. Coisas da minha comadre.

            No Marisco não foi diferente. Nos levantamos após os garçons colocarem as cadeiras sobre as mesas e apagarem as luzes. Ainda nos desejaram “Boa noite”. Imagino.

            Na manhã seguinte, juntaram-se a nós meu amigo Carlos Alberto e Ana Lúcia, sua esposa. Nova emoção. Invadimos a acolhedora casa da Amélia e Alfredo, casal singular. Simpatia e carinho. Emocionante.

            Eu e Lia já havíamos desalojado seus “pequerruchos”, Tales e Túlio, “meu irmão”, ao dormirmos em suas camas, e agora, às dez horas da manhã, nos apossamos da sua cozinha e de seu whisky. Tomei uma talagada para dar trote ao coração descompassado, no que fui acompanhado pelo Lysis e Carlos. Em poucos minutos de batalha, o Royal Red Lable havia sucumbido, expondo seu fundo seco.

            Segundo o Geo:

            — Só tem “rebocador”! – alusão ao preparo físico da encanecida “rapaziada”.

Daí em diante, o que se viu foi a repetição do dia anterior: comer, beber e gargalhar. Após horas de trabalho em volta da mesa, Ana Lúcia, preocupada com o Carlos, alertou-o que teriam que ir embora. Naquelas alturas, a qualquer distância do bafômetro, ele já estaria em cana. Ainda mais quando Amélia colocou um teclado musical à sua frente, o homem virou Jobim Brasileiro e quando Cenira recitou o poema do Vinícius, não nos contivemos. Choramos lágrimas de esguicho.

            Carlos, o recalcitrante insistia em ir embora, tonto. Já o conhecia. É o amigo mais antigo que tenho. Amélia, que pensa em tudo, tratou de colocar sua camioneta atrás do jipe dele e fechar a garagem.

            — Vou embora.

            — Pois vá. Você está com a chave do carro?

            — Estou.

            — Pois estou com as chaves da garagem, retruquei.

            Assunto encerrado. Barrosão com seu jeito, após algumas considerações maçônicas, colocou o rapaz em decúbito dorsal na sua confortável cama. Todos exaustos.

Dia seguinte, “dia de branco”. Levantamos cedo e já encontrei Amélia e Alfredo, prontos para a luta, despachando o Tales para escola.

            Para toda chegada há sempre uma partida. Macaé me perdoe, voltarei para admirá-la. Desta vez, os olhos do meu coração estavam voltados exclusivamente para meus amigos e familiares.

            Amamos todos vocês: José Geraldo, Socorro, Amélia, Alfredo e filhos; Geo, esposa e filhos; Lysis e Cenira; Roberto e Lisia; Carlos Alberto e Ana Lúcia.

            Tenho certeza de que as lembranças desse final de semana permanecerão indeléveis em nossos corações, para sempre.

            Desculpem o transtorno.

            Até breve.

Aceitem nosso carinho e admiração,

 

            Pedro e Lia.

 

 

 

MAMÃE

 

 

 

            A natureza, após presentear sua obra prima, o homem, com todas as suas maravilhas, ainda assim achou sua criação incompleta. Decidiu, então, dar-lhe um presente que o emocionasse, que o embevecesse de ternura, que lhe despertasse o amor. Com toda sua sabedoria, colocou o homem dentro das entranhas de uma mulher para que ali fosse plantado, e para que ali germinasse, paralela à criação de um ser humano, uma relação de profundo afeto e carinho entre duas pessoas. Inicialmente, alimentado via cordão umbilical, posteriormente com leite, o soro da vida, por meio dos seios desse anjo, que se convencionou chamar de mãe.

            A sábia natureza não discriminou, e estabeleceu: todo ser humano, para existir, terá que ter mãe. Negros, brancos, amarelos, pobres, ricos e miseráveis têm direito à mãe, um tesouro natural e uma generosa oferenda da natureza.

            Também tive a minha. Hoje são somente lembranças que guardo na minha memória já enfumaçada daquela que me embalou e no seu regaço me protegeu do frio. Ensinou-me os primeiros passos. Preocupou-se em demasia com alguma febre corriqueira, perdeu noites de sono ao me esperar voltar da boemia altas horas da noite a fim de me defender com sua benção e eu, abençoado, dormir em paz. Esse era o ritual de todas as noites. Mãe de uma prole de cinco rapazes, só dormia ao abençoar o último a chegar. Não porque era a minha mãe. É o estigma de todas as mães.

            Lembro-me de um dia infeliz em que a fiz chorar por uma discussão banal de adolescente. Imediatamente lhe pedi perdão, porém me ufano das infinitas vezes em que lhe provoquei aquele sorriso terno que só as mães possuem.

            Não a tenho mais. Entre as perdas, feridas e cicatrizes que arrasto pela vida, ela é, sem dúvida, a mais sentida. Ainda a tenho na minha retina, às vezes no fogão, outras no ferro de engomar ou à frente de seu cavalete de pintura na sala do casarão em que morávamos, na tradicional cadeira de balanço, traçando em sua tela o que somente sua ótica de artista percebia e, aos poucos, com as suas pinceladas, ia dando vida e movimento, aos detalhes do velho cais do Ver-o-Peso, em Belém do Pará.

            De herança, guardo com todo carinho, emoldurada na minha sala de jantar, uma dessas telas. Uma pequena lembrança material que vi sendo produzida. Ainda ouço sua ordem:

            — Filho, compre uma bisnaga de tinta verde da marca Le Franc.

            A imagem esmaecida de minha mãe me acompanha, numa visão de um anjo entre nuvens. Infelizmente, não a tenho mais. A última imagem que guardo é da figura serena de seu rosto, rodeado de flores e seu corpo inerte dentro de uma urna funerária com destino à sua última morada. Para toda chegada haverá sempre uma partida. Esse desenlace ocorreu numa certa Quinta-Feira Santa! Que ironia! Se eu soubesse que ao morrer voltaria à sua companhia, certamente anteciparia minha morte.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

MÃE

 

 

Já não te tenho mais.

Órfão, sinto-me desprotegido.

Diferente do tempo em que existias.

Eu nada temia.

Não havia perigo nem adversidade que eu não enfrentasse,

às vezes de forma inconseqüente.

No meu mundo só vida. Morte era coisa dos outros.

Sabia que ao voltar para casa, tinha a me esperar a benção e a doçura do meu anjo maternal que apagava todas as imagens ruins, dos fracassos, das desordens e das orgias trazidas da rua.

Lembro-me bem do dia em que deixei minha casa rumo ao Rio de Janeiro, onde disputaria um campeonato brasileiro de remo.

Minha demora seria efêmera. Apenas 15 dias.

O coração materno não se engana. Da forma que me abraçou, comovida entre sentidas lágrimas e abafados soluços, instintivamente sentia que aquilo era um adeus.

E eu, ainda inocente, não me dei conta daquele momento.

Era realmente uma despedida.

Movido pelo ímpeto da juventude não percebi que deixava para trás, definitivamente, minha querida mãe.

Até hoje seus soluços ecoam dentro da minha alma vazia do seu carinho.

Várias vezes voltei para visitá-la, e ela dizia:

 

– Voltou a alegria da minha casa!

 

Ingênuo, também não percebia o bem que lhe fazia.

Se tivesse uma chance hoje, mudaria de atitude.

Deixaria que suas mãos me afagassem e dormiria junto com ela o sono eterno.

 

 

MÃE INÊS

 

 

            Esse era o nome da velha mucama que ajudara a criar minha mãe e seus irmãos e também ajudou a criar a minha geração: eu e mais quatro irmãos. Todos homens.

            Mãe Inês, essa angelical criatura, faz parte das doces lembranças da minha distante infância, lá pelas bandas de Belém do Pará.

            Sua imagem permanece indelével na minha retina. Negra centenária, pernas arqueadas, baixinha, com a carapinha esbranquiçada, voz mansa e pausada, recebia de todos nós de casa, o respeito e o carinho dedicados às pessoas mais caras. Todos lhe tomavam benção, inclusive minha mãe. Um costume respeitoso que hoje está em desuso.

            Oriunda de escravos — foi escrava de meu avô — quanto sofrimento deveria carregar naquele generoso coração. Seus ancestrais? Quem seriam? Qual deles teria resistido ao banzo e gerado aquela criatura maravilhosa.

            Morava conosco. Tinha seu aposento privado dentro do sobrado. Casarão antigo no Largo da Sé de propriedade da família Barroso, à qual pertencemos.

            Quando me cansava das traquinices de criança, buscava o quartinho da “Mãe Inês”, nunca sem antes pedir licença. Sentado no chão, ouvia suas histórias, enquanto ela pitava seu cachimbo. Absorto, envolto nas fantasias produzidas pelos contos daquela figura ímpar, a vida passava serena e eu não percebia que aquele era o meu paraíso.

            Ninguém preparava aquelas comidas da culinária paraense com o paladar que tinham as da “Mãe Inês”.

            Nas grandes festas no sobrado, ela era a mais solicitada. Com todo respeito, um a um, tiravam-na para dançar. Com sua cabecinha encostada em meu peito, ali naquele instante, hoje percebo que naquela hora, era ela quem sonhava. Quanto carinho e quanta saudade da minha querida “Mãe Preta”.

            Hoje estou lembrando dela com mais intensidade devido ao Natal. Família grande, cozinha imensa. “Mãe Inês”, com sua filha de ajudante, dava conta do recado. Burlando a austeridade da mamãe, que não deixava nenhum de nós entrar na cozinha, ela sempre conseguia nos adiantar um pedacinho de seus quitutes.

            Vim para o Rio com 19 anos. Maravilhado com a vida de jovem, naquela cidade linda, sem querer, fui me afastando um pouco de minhas origens, muito embora, não deixasse de ir todo fim de ano à minha casa. No afã de ser feliz, sem olhar para trás, entristeci dois corações que amava tanto: mamãe e “Mãe Inês”.

            Numa noite de Natal recebi a notícia de que ela havia descansado e suas últimas palavras: “Adeus, menino Pedro”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

MAMÃE

 

 

 

Mais um ano sem ti.

No dia em que vim ao mundo, na minha imaginação, transporto-me para aquele momento e vejo minha mãe querida.

Não era bela nem feia, nem rica nem pobre, era apenas a minha mãe. A mais bela a mais rica e a mais santa. A melhor.

A nossa será sempre a melhor, inigualável.

Posso ver sua serenidade e seu sorriso de anjo, sentir sua emoção de ter um filho.

Um filho saudável. Apenas, um filho.

O que eu terei representado para ela naquele momento? Sinto-me orgulhoso.

Qual dos dois era o mais feliz?

Por seu intermédio vi a luz pela primeira vez.

Que emoção terei sentido?

Após o parto, me terão colocado deitado junto ao seu coração para que me desse conta do compasso da vida? Certamente naquele momento seu coração pulsava forte de emoção por ter seu rebento, ali, em silêncio, num diálogo que somente os anjos escutaram.

Me vejo, mais tarde, com cabelos loiros cacheados, os braços roliços estendidos em sua direção a lhe pedir colo, sugar de seus seios o suco da vida para, em seguida, com a cabeça apoiada em se ombro, dormir o sono dos inocentes.

Alguns poucos anos a frente, com medo do escuro da noite, aproximava-me dela, que cochilava. Pedia-lhe que me deixasse dormir agarrado à suas costas.

Muitas vezes me negava, obedecendo à determinação de psicólogos, pedagogos e outros mais, que não conhecem nada de coração de criança. Ou não tiveram mãe ou se esqueceram rapidamente, concordando com seus compêndios.

Mas, mãe é sempre conivente com os filhos. Havia noite que ela, obedecendo seu instinto, aquiescia e deixava que eu desfrutasse daquele doce regalo. Agarrado a ela dormia ao som das trombetas dos querubins e serafins. Aí eu achava até que existia Papai do Céu.

Nesse clima de paixão recíproca, fomos vivendo a vida. Não percebia que envelhecíamos.

Um dia levaram-na de mim.

Por quê? Se eu a amava tanto! Não me consultaram e nem a ela, muito menos. Só porque eu queria dormir agarrado a ela? Só porque ela me amava? Eu não tinha fortuna, mas aquele era o meu tesouro.

Por quê? Quantas perguntas sem resposta.

Não é justo!

Não entendo porque temos que pagar um preço tão alto por ter vindo ao mundo, se o que temos de mais precioso nos levam.

Mamãe, nunca te esqueci.

Nem que eu viva mil anos tua imagem jamais me sairá da retina. Fui feliz e me sinto muito mais feliz por ter te feito feliz.

Como Barrabás, aquele trocado por Cristo, o homem que não morria, apesar dos sofrimentos que lhe foram impostos, eu também viveria mais 100 anos miseráveis, sofrendo todo tipo de humilhação e covardia, a troco de apenas poucos minutos em teus braços.

Não desisti. Ainda te encontrarei.

 

P.S.: Faleceu Dª Ione, moradora do Bonfim, mãe de meus amigos Gil, Marcinho e Valdir Gomes e esposa do Seu Jair, a quem devo inúmeros favores na construção de minha casa. É com profundo pesar que apresento meus sentimentos à família.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

TIA MARIA LUIZA

 

 

 

            Envelhecemos e, desta forma, nossas perdas se tornam mais próximas e mais freqüentes. Não foi diferente com Tia Maria Luiza que somou mais um pedaço dilacerado em minha alma.

Não fui surpreendido. As notícias que recebia eram as de que vinha definhando, lentamente. Nós, sobreviventes, ficamos com o consolo de quem passou pela vida e cumpriu suas tarefas com dedicação.            Em vida, abraçou uma das profissões mais nobres, sem dúvida, que é a de ensinar as primeiras letras e os primeiros passos às crianças e que, certamente, lhes servirão de alicerces preciosos na jornada de suas vidas.

            A mim, pessoalmente, Tia Maria Luiza me relembra momentos felizes que permanecerão indeléveis em minha memória, quando sua família ainda não tinha sido atingida por nenhuma perda precoce, como a do Robson, Paulo Maurício e Rominho, e a alegria ainda era plena.

            Lembro-me perfeitamente do casamento da Conceição com o Lica e do tradicional lanche da tarde na presença do patriarca, seu José Carmelo. Fica em mim a imagem de candura de uma pessoa especial. Mas seu coração bondoso de pessoa temente a Deus conspirava contra sua saúde.

            Resta-nos o consolo de que, sem dúvida, hoje estará entre os bem-aventurados do reino de Deus. A nós, míseros mortais, resta-nos a terrível sensação do nunca mais. Muitas vezes temos um pequeno tesouro guardado, uma jóia ou um relicário, que não usamos diariamente, mas sabemos que ele está ali guardado nos esperando. Com a morte de um ser querido, a sensação de não o ter nem o ver nunca mais, entristece-nos profundamente.

            O tempo, reparador de todas as mazelas do mundo, há de dar o consolo àqueles que hoje choram sua falta.

            Meu abraço afetuoso pela irreparável perda. Sinto-me privilegiado de, em algum tempo de minha vida, ter pertencido indiretamente, a uma família de pessoas tão discretas e honradas — o que é uma raridade. Criadas com dificuldades, não se corromperam com o fausto nem com o consumismo exagerado do mundo moderno.

            Quero deixar aqui meu abraço especial à Tia Beatriz que entre outras coisas boas, serviu de inspiração para o nome de minha primeira neta. A vida que se renova!

 

 

 

 

MEMÓRIA

 

 

 

            Memória é essa nossa companheira inseparável, que nos segue ao longo da nossa trajetória de vida. Às vezes amena, às vezes, severa, porém sempre melancólica e triste. À medida que o tempo passa, nosso arquivo aumenta.

            Quando menino, nossa memória não ultrapassa os dez anos, pouco diante do que ainda se tem para viver. Mas na velhice é o contrário. São dezenas e dezenas de anos acumulados, cheios de recordações e principalmente de saudades. Infeliz do homem sem memória.

            Pensava Marcel Proust:

            — O mundo é a idéia que cada qual tem dele, e, assim, a vida tem que ser vivida através da memória, pois só no passado é que se encontra a essência da personalidade. A memória funde a experiência do passado, que não está morto, mas apenas em estado latente, e precisa ser reacordado, unindo-se ao presente.

            Concordo plenamente com Proust, e assim é que sempre estou fazendo incursões pelo labirinto da minha memória em busca de respostas no passado para problemas do presente. É intuitivo sempre buscarmos lembranças alegres, deixando as mais tristes em um arquivo separado num cantinho do inconsciente. Todos têm uma concepção do fato de envelhecer. Eu, particularmente, não tenho dúvida de que o maior tesouro que levamos no decorrer dos anos é a nossa própria memória, que alguns preferem chamar de experiência. Por esses meandros, voltei a 1959.

Dia de regata na baía de Guajará, em Belém do Pará. Festa. A baía enfeitada de pequenas embarcações engalanadas, decoradas com bandeiras multicores. Nas grandes barcaças, vindas do Mississipi, propriedade da Port of Pará, impulsionadas por aquelas imensas rodas traseiras, muito conhecidas nos filmes de New Orleans, se realizavam grandes bailes durante a realização da regata. Cada clube alugava a sua. Tudo com muito glamour, com direito ao suave balanço da maré e à brisa vinda do leste. Não imaginava o que me esperava, naquela manhã festiva.

Minha guarnição de remo, composta de quatro remadores e um timoneiro, correria dois páreos, sendo que num deles o troféu vinha sendo disputado havia 19 anos. A posse definitiva só aconteceria no caso de três vitórias consecutivas, que poderia acontecer naquela manhã. Eu estreava na posição de voga, aquele que sob a orientação do timoneiro comanda o ritmo das remadas. Nossa guarnição estava muito bem preparada. Nosso forte era a remada picada, rápida. Alinhamos. A baía estava revolta. Foi dada a partida e eu caí num ritmo lento de remada para reservar as forças para o final. Nosso timoneiro não me orientou corretamente, porém quando percebi que não havia mais ninguém atrás de nós, alterei o ritmo. Já era tarde. Perdemos o páreo. Foi a maior decepção da minha vida no esporte. No páreo seguinte, com os mesmos concorrentes, ganhamos com sobra. De um páreo para o outro já estava mais maduro. Havia aprendido a lição que minha memória me ensinou.

            O esporte é, sem dúvida, um grande conselheiro. Com ele aprendemos a conviver pacificamente com sucesso e derrota. Uma parte da minha personalidade e do meu caráter foi fundida com a prática do esporte, que exigindo muito do físico não abre espaço para outros caminhos que degeneram a juventude.

 

 

 

 

MINHA ALMA CIGANA

 

 

            Hoje cedo, como é de rotina, abri minha caixa de correio no computador e lá estava aquela bela mensagem de minha amiga Terezinha: O Despertador do Tempo. Além das suas palavras produzidas pelo seu talento, a música de fundo, como se fosse uma ária cigana, me transportou imediatamente aos meus nômades ancestrais caucasianos.

Era uma grande trupe comandada pelo intrépido Nicola. Convidados pelo general Giuseppe Garibaldi, migraram todos (de onde?) para a Itália com o objetivo de lutar pela unificação do país. Depois, emigraram para o Brasil, juntamente com Garibaldi, e lutaram ao lado de Bento Gonçalves no Rio Grande do Sul (na Revolução Farroupilha).

            Nicola Maria Parente era um gênio. Amigo pessoal dos irmãos Lumière, dominava (quando?) a técnica de fazer cinema com iluminação de carbureto. Assim é que, fazendo cinema itinerante pelo interior do Brasil, chegou até Belém estabelecendo-se posteriormente em Abaetetuba, também no Pará. Essa foi a saga de meus ancestrais paternos.

            Aquela música me comoveu e interpretei calmamente tudo aquilo que estava escrito no texto. Uma linda reflexão a respeito do ser humano, sofrendo os efeitos da marcha inexorável do tempo. Pele sem viço, cabelos ralos e quebradiços.

Olhos opacos, envolto em meus pensamentos, através da lente enfumaçada dos meus cansados olhos, ainda pude ver a neblina se dissipando e descobrindo o exuberante verde do vargedo que nesta época do ano salta aos olhos. O contorno da serra aos poucos se foi desenhando no céu ainda nublado. A brisa fresca soprando suavemente do rumo nordeste prenuncia bom tempo. A relva tenra deita-se aceitando sua carícia. A passarada se agita em busca de alimentos para os filhotes que piam incessantemente nos ninhos. Um belo espetáculo, num grande cenário desse maravilhoso teatro da natureza.

            Despertar é um privilégio, dessa forma então é uma sensação indescritível. E pensar que somos figurantes desse grande espetáculo!

 

 

 

 

O MISERÁVEL

 

 

 

            Há aproximadamente 40 anos, nasceu numa pequena cidade mais um brasileiro, oriundo de família operária de fábrica de tecidos, batizado com o nome de João Diogo. Como a maioria de seus conterrâneos, cursou o grupo escolar e parou. Ingressou na fábrica, casou-se e teve um casal de filhos.

            Para alguns, constituir família é ser feliz e, no caso do João, foi exatamente o contrário. Com pouco dinheiro, a mulher sempre exigindo além de sua capacidade, as desavenças começaram. Certo dia foi ameaçado de traição pela própria mulher. Achando que ela havia chegado ao máximo na sua humilhação, juntou alguns trapos e saiu de casa. Aí começou sua desdita. Todos os dias ela ia até a porta da fábrica esperar ele sair e ali, na frente de todos seus colegas, lhe dirigia os piores impropérios e as piores ofensas.

            João deu para beber e perdeu o emprego. Como não se tratava de um vadio, passou a fazer bicos, ora como chapa de caminhão, ora como jardineiro, servente, pintor. Homem das dez profissões e onze necessidades. Até que um dia foi trabalhar numa chácara. Três vezes por semana tratava das coisas da propriedade, em troca de um casebre, onde morava sozinho, na mais cruel solidão, recebendo 70 reais por mês. Sua ex-mulher, com um amante dentro de sua ex-casa, levou-o às barras da lei, exigindo pensão alimentícia para os filhos.

Nada mais justo, não fosse a condição subumana em que se encontrava. No dia da audiência, o inocente João, desprovido de qualquer malícia, achando que o juiz iria entender sua situação, foi sozinho. Sem qualquer companhia ou orientação.

            Ludibriado pela desonesta esperteza do advogado da outra parte, assinou um documento em circunstâncias absolutamente contrárias a ele, comprometendo-se a dar um salário mínimo de pensão alimentícia para sua família. Como? De que jeito? Se o que ganhava não dava para ele se manter. E, mesmo assim, ele havia ido à presença da autoridade imbuído do espírito de dividir sua miséria por dois, doando a metade dos 70 reais a título de pensão alimentícia. Passaram-se alguns meses, chegou uma intimação para que pagasse algo em torno de dois mil reais ou seria recolhido à prisão. Aquele pobre homem desesperou-se.

            — Não foi isso que assinei.

            — O acordo que o senhor assinou é esse. Vou dar-lhe três dias de prazo, disse-lhe o oficial de Justiça.

            Sem ter a quem recorrer, sentindo que o único tesouro que tinha, sua própria liberdade, estava ameaçado, tomou sua decisão. Com as mãos calejadas de trabalhos árduos pela lida diária, com o dinheiro da passagem para São Paulo no bolso, com o coração cheio de revolta, foi-se embora, misturar-se aos descalços, desesperançados, descamisados, delinqüentes ou quem sabe bandidos daquela metrópole.

            Escapou da cadeia da sua cidade, mas provavelmente não escapará da cadeia da cidade grande, onde essas pessoas inocentes e sem maldade são um prato cheio para aquelas polícias.

            Parece que desta feita a justiça não foi justa. Jogou um trabalhador miserável para a marginalidade e para o crime, fruto da sentença de um leguleio.

            Enquanto isso, lá naquela cidade que o João escolheu para tentar a vida, bem pertinho dele, se discute, se um poderoso magistrado, que roubou cento e tantos milhões de reais de dinheiro público, é culpado ou inocente; se poderá ser julgado em liberdade; e outros “ses” mais a seu favor.

 

Obs.: Os fatos aqui relatados e o personagem são ficção do autor e caso se encaixem na vida íntima ou pública de qualquer pessoa é mera coincidência.

 

 

 

 

 

 

MISÉRIA

 

 

 

            Ouve-se muito falar em “perversa concentração de renda”. De fato, em 504 anos de descobrimento (?) do Brasil, a sociedade dominante conseguiu produzir mais de 55 milhões de brasileiros miseráveis. Pessoas que, segundo a FAO, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, sobrevivem com uma renda diária de dois reais.

            As conseqüências são desastrosas: aumento desmesurado da violência, pessoas disputando alimentos com ratos nos lixões, prostituição infantil e as crianças, cada vez mais, sendo vítimas de traficantes que as usam como “mulas”, graças à sua imputabilidade penal pela menoridade.

            Há de se refletir. Um pai de família, após dias, buscando trabalho para ganhar algum dinheiro, chega em casa exausto, encontra os filhos famintos, clamando por comida. Esse pai miserável, que não teve oportunidade de se educar e nem certamente seus filhos, não terá equilíbrio mental para suportar aquela cena. Nessas horas, me parece que o instinto animal latente no ser humano se sobrepõe a qualquer resquício de racionalidade e ele passa a lutar com todas as forças e com todos os meios pela sobrevivência de seus filhotes. É uma lei da natureza. Desesperado, sairá de casa e voltará à rua em busca de alimento. Aí os meios justificarão o fim. Seja qual for o preço.

            Por que essa barbárie com nossos irmãos brasileiros? Devido à elevada carga tributária, o governo finge que arrecada e o empresariado finge que paga. Aí se criou a cultura da sonegação – até um senador da República, de terno branco, meia branca e alpercata, se não me falha a memória, Ney Maranhão, afirmou outro dia diante das câmeras de televisão, em alto e bom som: “Todo brasileiro sonega”.

            Ora, aonde vai o dinheiro da sonegação? Enriquecer (concentrar renda) as famílias dos empresários via caixa dois. O dinheiro sonegado não pode aparecer. Então compra-se um carrinho aqui, no nome de um filho; um sitiozinho ali, em nome da mulher; outro no nome da amante, com direito a uma caminhonete importada; um jatinho; um iate; um apartamento em Miami; uma conta CC5 (em que não há necessidade de se identificar o correntista?) etc.

            Dinheiro que, se arrecadado, deveria ser revertido em benefício da população com serviços sociais, saúde, transporte, educação, saneamento básico e segurança.

            Por outro lado, a maioria das pessoas não gosta de pagar impostos porque não recebe de volta do governo serviços essenciais satisfatórios e também porque não há controle sobre aquilo que arrecada, permitindo que se proliferem Nicolaus, Silverinhas etc.

            Com uma carga tributária justa e maior rigor na aplicação do dinheiro público, parece-me que o problema da má distribuição de renda no Brasil estaria quase que totalmente resolvido. É o que penso.

 

 

 

 

 

 

 

 

PEDRO SALOMÉ

 

 

 

            Dentre os bons e queridos amigos que fiz aqui em São João del-Rei, um, sem dúvida, mereceu destaque: meu inesquecível amigo Pedro, que a morte sorrateiramente tirou de nosso convívio.

            Está se tornando rotina escrever meu adeus a amigos que partem. Foi assim recentemente com o Roberto Rivetti e desta feita o Pedro. As luzes dos refletores de nossa ribalta, aos poucos, vão se apagando e nosso espetáculo da vida vai chegando ao fim.

            Bom filho, bom marido, bom pai, bom companheiro e bom amigo. Acompanhei seu início de carreira como advogado em São João, enfrentando as dificuldades próprias de um iniciante, porém mais tarde sobressaiu-se com desenvoltura e de maneira brilhante, tendo sido o responsável pela criação do Departamento Jurídico da Docegeo, empresa subsidiária da Companhia Vale do Rio Doce.

            Naquela época, o tradicional casarão do Largo de São Francisco era alegria. Principalmente na época de Carnaval e Semana Santa. Família numerosa, dona Aura tinha sempre uma palavra de carinho para os amigos de seus filhos que ali freqüentavam. Que saudades!

            Numa daquelas noites, encontrei-me com o Pedro no Kibon. Eram 23 horas. Como bom mineiro, convidou-me com aquele tradicional:

 

            Xará, vamos tomar uma cerveja. Sem exemplo?

 

Eu adorava sua prosa mansa e inteligente, acompanhada do cacoete de, mansamente, alisar uns fios da barba espessa. Tratava todas as pessoas pelo nome, mesmo que fossem de uma classe social inferior. Memória invejável de um cidadão exemplar. Pois bem, nossa conversa foi se prolongando, tendo início num domingo de carnaval e terminando às 15 horas da segunda feira gorda sem que o assunto tivesse ainda acabado...

            Quando nos encontrávamos no Rio, era alegria. Sempre acompanhado pelo seu tio, o espirituoso, boêmio e engraçado Arthur Nogueira. Formávamos uma roda grande no Alcazar, tradicional bar carioca, ponto de encontro dos são-joanenses e deixávamos o tempo passar sob o som das ondas do mar de Copacabana arrebentando na praia.

            A esquina do Kibon sem ele está mais triste e sem graça. Nós sentiremos sempre a falta de sua opinião ponderada e suas tiradas hilariantes.

            Seu corpo foi incinerado no Rio de Janeiro, bem ao seu estilo, e as cinzas depositadas aqui em sua terra natal, onde descansará eternamente. A mim e a todos nós, seus familiares e amigos, restou a saudade.

Adeus, amigo, descansa em paz!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PESCARIA

 

 

 

            Há muitos anos, lá pelos idos de 1974, reuni meus amigos que formavam uma turma grande e nos preparamos para passar um final de semana em um rancho, nas margens da represa de Camargos.

            Perdoando a já fraca memória, alguns nomes ainda permanecem intactos na minha lembrança: Salvador (Dodô), Arthur (Leréia), Robenson (Asa Quebrada), Marco Antônio (Judas), Maurílio (Bolão), Márcio (Parruda), Juarez (Juju), Waldemar (Valente), Benedito (Bené) e Dunga.

            Nos preparativos, o exagero de sempre. Excesso de tudo, principalmente, cerveja e pinga.

            A turma era eclética nos hábitos, na instrução e na cultura e, aproveitando a ocasião, há sempre alguém querendo se sobressair como mais esperto ou o mais inteligente. Daquela feita não foi diferente. Surgiu logo um “exímio” cozinheiro que se prontificou a preparar a comida para o resto da turma. O rapaz era boêmio inveterado e surpreendeu-me a disposição, pois não sabia dos seus dotes culinários. Conhecia sim sua admiração pelos cariocas com quem aprendera a tocar cuíca, usar camisa listrada e sapato branco. Um grande amigo que eu muito admirava. Lá pela décima dose de pinga, disparava a falar “uai”, “uai”, “uai”... e a passar a mão na nuca arrumando os cabelos e, assim, um ombro ficava mais alto que o outro, motivo pelo qual foi apelidado de “Asa Quebrada” ou simplesmente “Asa”. Aquele era o sinal de que já estava no ponto de bala. Já durante a vigem, por sugestão do próprio Asa, teríamos um frango com ora-pro-nóbis e, como se sabe, o ora-pro-nóbis é um mato comum em Minas e dá pendurado em cercas ou barrancos. Argumentei que não tínhamos a tal da erva.

 

            — Que é isso? Só se eu não fosse mineiro para conhecer ora-pro-nóbis! Deixa comigo.

 

            Chegamos ao rancho e imediatamente o Asa foi procurar o ora-pro-nóbis nas cercanias.

            Como todo rancho, era uma casa modesta, de alvenaria, com uma pequena cozinha, sala, banheiro e um amplo quarto para acomodar muita gente. Descarregamos as coisas e cada um se ocupou de algum afazer. Uns foram pescar, outros foram beber, outros conversar em volta da mesa, num animado jogo de truco e eis que chega nosso cozinheiro parecendo um bicho folharal, tal a quantidade de ora-pro-nóbis que trazia. Alguém duvidou do mato e tomou uma bronca do Asa.:

 

            — Que é isso cara? Então eu não conheço ora-pro-nóbis?

 

            Todos distraídos e o nosso cozinheiro na lida, já mandando seu show de “uais” em todas as entonações e modulações. Temperou três frangos caipiras que compramos no Mercado Municipal e começou a fazer o almoço. Numa panela de pedra grande, derramou azeite extravirgem até cobrir o fundo. Juntou dois dentes de alho amassados e uma cebola de cabeça picada, um pouco de tempero caseiro e adicionou aos poucos os pedaços do frango. Pingando água, foi dourando a carne em fogo alto. Quando os frangos estavam dourados, adicionou algumas batatas descascadas e mais um pouco de água. No momento em que as batatas estavam cozidas, com a panela destampada e o molho reduzido, nosso mestre cuca ia deitar as folhas já lavadas do tal ora-pro-nóbis, quando o Dodô interrompeu, ajeitando com o dedo indicador os grossos óculos de grau.

 

            — Peraí! Eu não sou coelho pra comer mato. O meu frango é sem esse tal de não-sei-o-quê pronobilis!

 

Mais alguns foram na dele e comeram só o frango com batatas e arroz branco.

            De fato estava muito gostoso e nosso cozinheiro recebeu os aplausos da galera que optou pelo frango com batatas.

            Em seguida, o Asa adicionou as folhas do ora-pro-nóbis e pingou algumas gotas de limão a fim de evitar a baba.

            A turma do baralho, que estava faminta, caiu matando no frango do Asa. Ato contínuo, só se viu a rapaziada encostando os pratos — aqueles menos íntimos — e outros cuspindo fora devido ao paladar amargoso produzido pela tal erva, que de ora-pro-nóbis não tinha nada.

            Nosso Asa, coitado, de cozinha até que entendia, mas de botânica mineira, estava completamente por fora. Quem se deu bem foi o cachorro do caseiro.

 

 

 

 

 

 

 

 

PORQUE ME UFANO DO MEU PAÍS

 

 

            Está arraigada em nossa cultura a mania de exaltar o que é estrangeiro em detrimento, muitas vezes, de produtos de melhor qualidade feitos aqui no Brasil. Se você vai a uma loja comprar alguma coisa, logo oferece o atendente:

 

            Este aqui é importado — querendo dizer com isso que se trata de mercadoria melhor do que a nossa.

 

            Isso é uma mentira deslavada. O Brasil é líder em várias coisas, inclusive um dos maiores exportadores de alimentos do mundo. Não se deixem levar pelo pessimismo leviano transmitido por Miriam Leitão e Alexandre Garcia nos jornais televisivos da Globo que sabem exaltar o crescimento da China em 10% e de outras ditaduras que exploram o ser humano em regime de escravidão, pagando-lhes salários aviltantes. No caso da China, explora-se a mão-de-obra de presos e encarcerados, principalmente no ramo têxtil, a ponto de as costureiras trabalharem a bordo de navios, costurando até aportarem no destino da encomenda, em condições subumanas. Não sei nem se recebem salários pelo trabalho.

Aí, desembarca aquela avalanche de produtos de péssima qualidade com preços irrisórios, prejudicando trabalhadores e empresários que pagam aqui impostos de toda natureza.

            Recebi uma mensagem de um amigo, via internet e como condiz com aquilo que penso, peço licença para retransmiti-la.

 

“Podemos citar que o Brasil é:

            1. O único país do mundo onde se pode abastecer simultaneamente um carro com álcool, gasolina e gás. Tudo isso, com tecnologia nacional;

            2. O primeiro país do mundo a desenvolver o biodiesel à base de mamona. Novamente tecnologia nacional que será a redenção do Nordeste, pois a mamona é praga por e a Petrobrás está começando desenvolver o sistema produtivo;

            3. Onde estão as mais modernas fábricas de produção de automóvel;

            4. O único país do mundo a deter, via Petrobras, a tecnologia completa de produção de petróleo em águas profundas;

            5. Onde as empresas produtoras de aço estão com sua capacidade máxima instalada;

            6. Exportador de aviões (Embraer) para os Estados Unidos, que se renderam à qualidade das nossas averonaves e vão usá-las para treinamento de sua força aeronáutica; (fonte: Antropos Consulting)

            7. Exemplo mundial no combate à Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis;

            8. É o único país do Hemisfério Sul que está participando do Projeto Genoma;

            9. Solidário, pois numa pesquisa envolvendo 50 cidades de diversos países, o Rio de Janeiro, sempre lembrado pela violência, ficou com o primeiro lugar em solidariedade;

            10. Exemplo de eficiência de sistema eleitoral, com votação informatizada em todas as cidades e apuração total em tempo recorde. Um sistema que impressionou até os Estados Unidos, onde a apuração dos votos teve que ser refeita, várias vezes, atrasando o resultado e colocando em xeque a credibilidade do processo;

            11. Um país em desenvolvimento e, mesmo assim, os internautas brasileiros representam uma fatia de 40% do mercado (consumidor?) na América Latina.

            12. Sede de 14 fábricas de veículos e tem outras 4 se instalando, enquanto alguns países vizinhos não têm nenhuma;

            13. Um país em que 97,3% das crianças e adolescentes, entre 7 a 14 anos, estão na escola;

            14. O segundo maior mercado de telefones celulares do mundo, com 650 mil novas habilitações a cada mês;

            15. O quinto maior país do mundo em número de linhas de telefone fixo instaladas;

            16. Entre os países em desenvolvimento, o que tem o maior número de empresas nacionais com certificado de qualidade ISO 9000 (6.890). No México, são apenas 300 empresas e, na Argentina, 265;

            17. É o segundo maior mercado de jatos e helicópteros executivos do mundo.

           

Por que esse vício de falar mal do Brasil? Porque não se orgulhar de dizer que:

            1. O mercado editorial de livros é maior que o da Itália, com mais de 50 mil títulos novos a cada ano?

            2. O Brasil tem o mais moderno sistema bancário do planeta?

            3. As agências de publicidade ganham os melhores e maiores prêmios mundiais?

            4. O Brasil é o país mais empreendedor do mundo e que mais de 70% dos brasileiros, pobres e ricos, dedicam considerável parte de seu tempo em trabalhos voluntários?

            5. O Brasil é hoje a terceira maior democracia do mundo?

            6. Apesar de todas as mazelas, o Congresso está punindo seus próprios membros, o que raramente ocorre em outros países ditos civilizados?

            7. O povo brasileiro é um povo hospitaleiro, que se esforça para falar a língua dos turistas, gesticula e não mede esforços para atendê-los bem?

            8. Seu povo faz piada da própria desgraça e enfrenta os desgostos sambando?

É, o Brasil é um país abençoado de fato! Bendito este povo que possui a magia de unir todas as raças, de todos os credos. Bendito este povo que sabe entender todos os sotaques. Bendito este povo que oferece todos os tipos de climas para contentar toda gente.

Bendita seja querida pátria chamada Brasil!

Divulgue esta mensagem para o máximo de pessoas que puder, inclusive para as nossas crianças. Com essa atitude, talvez não consigamos mudar o modo de pensar de todo brasileiro, mas vamos despertar, pelo menos por alguns momentos, a reflexão e, quem sabe, um pouco do orgulho de ser brasileiro!

 

P.S.: 1. E os nossos relógios digitais. Até hoje! O Cidinho sairá da Prefeitura e os relógios não voltarão aos seus lugares.

2. Os moradores da Colônia do Giarola pedem uma placa indicativa, ali próximo às mangueiras, na avenida 31 de Março.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O PRESERVACIONISTA

 

 

 

            No dia cinco de junho, comemorando o Dia do Meio-Ambiente, FHC, entre sorrisos e sem nenhuma preocupação, pois a CPI da corrupção já fora sepultada e o país encontra-se às “mil maravilhas”, discursou para uma platéia de governadores e políticos, que ali estavam com o objetivo de serem beneficiados com uma parcela de novo financiamento do BID para despoluição de rios e proteção do meio-ambiente. A fim de disfarçar um pouco a calamidade da falta de energia elétrica pela qual ele, irresponsavelmente, é o culpado, dirigiu sua preocupação para a falta de água doce que se abaterá sobre o mundo.

            Os mais otimistas dizem que o estoque de água doce do planeta, terminará dentro de 40 anos. Pois bem, para não dizer que tenho má vontade para com o governo, vou fazer uma sugestão.

            Nosso conceito de higiene tem que ser revisto. Vamos considerar um exemplo hipotético a título de ilustração. Sabe-se que cada descarga em um vaso sanitário consome, em média, 20 litro d’água. Se uma cidade como São João possui 25 mil casas e todas contam com as condições mínimas de saneamento básico (água e esgoto) e considerando que essas casas sejam habitadas por quatro pessoas (média das famílias brasileiras), se cada uma dessas pessoas urinarem uma única vez durante a noite e derem descarga no vaso sanitário, então, cada casa terá mandado pelo esgoto, só essa noite, 80 litros d’água doce e, muitas vezes, tratada. Juntos, os moradores de São João terão jogado pelo esgoto, numa única noite, dois milhões de litros de água para limpar a casa de alguns mililitros de dejeto.

            Mas, se cada pessoa usasse o seu velho e esquecido penico e pela manhã todas elas despejassem o líquido no vaso e dessem uma só descarga, cada casa economizaria, somente durante essa noite, 60 litros d’água. Juntando a economia de cada casa, evitaríamos o despejo de um milhão e 500 mil litros de água no esgoto em apenas uma noite. Em um mês, São João pouparia 45 milhões de litros e, em um ano, seriam 540 milhões de litros d’água economizados.

            Consideramos aqui, apenas a parte noturna de pessoas normais, sem contar os grandes consumidores de chope e cerveja.

            O Brasil está com uma população próxima de 172 milhões de habitantes. O mundo tem seis bilhões de habitantes. É bem verdade que muitos não têm casa, muito menos vaso sanitário. Mas poder-se-á fazer uma projeção proporcional. Vou deixar por conta dos calculistas, pois matemática não é minha praia. Desta forma, tenho certeza, que estarei contribuindo com FHC e com o futuro da humanidade, resgatando a utilidade do velho penico com sua vocação preservacionista, já aqui apelidado de o “Salvador da Pátria”.

            Que esta sugestão não sirva para que empresários inescrupulosos corram atrás do Sebrae a fim de levantarem empréstimos com a finalidade de montar fábrica de penicos com dinheiro público, pois penico é coisa rudimentar feita de barro. Na falta, uma garrafa de plástico descartável faz a vez.

 

 

P.S.: 1. Meu amigo Cláudio Salomé, fique de olho na sugestão, pois o problema está afeto à sua Secretaria de Meio-Ambiente e na sua fazenda tem barro de boa qualidade, à vontade.

2. A taxa de iluminação pública, na conta da Cemig, acho que por ordem da Prefeitura, dobrou de preço e o serviço piorou. Estou cansado de ser roubado. Qual foi o critério usado para que houvesse esse aumento? Qual foi o índice utilizado para se atualizar a cobrança? Não se explica nada. A população não tem direito a ficar sabendo de nada? A ditadura deixou suas marcas e alguns seguidores.

3. Esclareço que não sou eu que estou promovendo esse tal “Apagão”. O cara lá da corte de Brasília, tem o mesmo nome meu, porém a diferença é brutal em quilos e em dólares. Somos iguais apenas, na falta de cabelo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

EU TIRARIA – já contou boa parte dessa história no capítulo DESPERDÍCIO

QUEBRA-MOLAS

 

 

 

            Foram instalados, recentemente, no trajeto que faço da Colônia do Marçal para o Centro da cidade, mais cinco quebra-molas: três na avenida Leite de Castro e dois na rua Luiz Giarola. No percurso para o Centro, enfrento nada mais nada menos, do que doze quebra-molas. Considerando que minha mulher vai trabalhar de manhã cedo, volta para almoçar, volta novamente para trabalhar e retorna à noite, e no final do expediente, entrega-me o carro para que eu vá à rádio fazer meu programa noturno e retorne para dormir, nosso modesto veículo transpôs em um único dia, 72 quebra-molas. Em um mês de 20 dias úteis, ele terá transposto 1.540 quebra-molas e no final do ano 18.480 quebra molas. Dessa forma, creio que os moradores da Colônia do Marçal estão sendo penalizados. Por que a Colônia? Na Oito de Dezembro não há quebra- molas. Quantos morreram ali?

            A maneira pela qual os quebra-molas são construídos está totalmente fora das normas da lei, que determina três metros de largura e na parte mais alta 15 centímetros. Isso quer dizer que aquele que se sentir prejudicado tem todo direito de recorrer à Justiça para reparação de eventual dano material ao seu veículo.

            Se o quebra-molas é educativo e preserva a vida dos transeuntes, não discuto, porém, às vezes é inócuo, só atuando nos motoristas prudentes. Os irresponsáveis e imprudentes não são detidos por nada.

            Hoje existem barreiras inteligentes, como os redutores eletrônicos de velocidade que não causam nenhum tipo de dano aos veículos. É claro que é mais barato deitar esses postes no meio da via pública, pois não há dinheiro nem para restabelecer o funcionamento dos relógios digitais que indicavam também a temperatura e que hoje representam verdadeiros monumentos ao desleixo na nossa cidade.

            Colocar quebra-molas numa rua esburacada é no mínimo um deboche. Não sei de quem foi a brilhante idéia de instalar um posto da Polícia Rodoviária em frente ao aeroporto depois de um trevo. E ainda ridicularizam nossos irmãos lusitanos. Ali só trafegam veículos regulares, o tráfego proscrito foi jogado para a Rua Luiz Giarola, via trevo das Águas Santas, e desta forma, até carretas passaram a transitar por ali com cargas duvidosas. Claro que os infratores da lei, optam por transitar por ali, visto que não estão sujeitos a nenhum tipo de fiscalização.

            Conclusão: o asfalto do Nivaldo que era para durar 15 anos, segundo ele, virou uma cratera só. Não há automóvel que resista a esse tipo de situação. A solução é usar o transporte coletivo e ficar à mercê de seus horários.

            A pista até o aeroporto está sendo duplicada. Vai ficar muito bonita. Mas, qual será o objetivo? Fluir o tráfego com maior vazão? Seria uma incoerência enchê-lo de quebra-molas.

            Deixem as mangueiras onde estão. Servirão como redutoras de velocidade, pois debaixo delas tem um quebra-molas e ainda enfeitarão a entrada de nossa cidade para quem vem das bandas de Belo Horizonte.

            O “Brasileiro profissão esperança” está encerrando seu ciclo. Nunca vi tanta gente andando de cabeça baixa, falando sozinho e reclamando da vida. Sinal dos tempos.

 

P.S.: Continuo lulista.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFLEXÕES

 

 

 

            Cheguei ao topo da montanha da minha jornada pela vida. Inúmeras batalhas, muitas derrotas e parcas vitórias. Nessa caminhada, muitas desilusões foram forjando uma carapaça em torno de mim de modo a tornar-me um incrédulo habitante do planeta Terra.

            As alegrias, gargalhadas, grandes mesas e inúmeros companheiros de farra foram escasseando por motivos vários: uns perderam a saúde, alguns seu patrimônio e outros a vida.

            Para que nascemos, se no dia em que nascemos começamos a morrer? Aniversário de nascimento não deveria ser dia de festa, pois significa que é mais um ano próximo à morte.

            Parece mesmo que somos um prêmio de um ato de amor e . Viemos para dar alegria aos nossos pais. Os mais felizes premiados com filhos saudáveis, outros castigados (não entendo porquê) com filhos doentes.

            Os doentes sucumbirão, dependendo da sorte, deixarão de sofrer. Os sadios sofrerão mais ainda. Amores, desamores, incertezas, desemprego, fome, miséria, injustiça. Luta, somente luta. E como prêmio? A morte.

            Pelo caminho vamos deixando nossos pedaços dilacerados e arrancados de nós, avós, pais, irmãos e amigos.

            Quando atingimos essa idade provecta, os obstáculos e as dificuldades aumentam - no meu caso, devido à artrose que me corrói os dois joelhos, uma distância de cinco metros parece tornar-se um obstáculo de 50. Ficamos vulneráveis a qualquer tipo de ataque, seja pelas doenças ou por pivetes e malfeitores.

            Raros são os afagos, muitas são as ordens.

            Alguns nos olham como se fôssemos ídolos de bronze, indestrutíveis, imbatíveis, porém esquecem que somos de carne e osso e o que é mais importante, emoção e coração.

            Tornei-me reflexivo, calado, circunspeto e meditativo. Aprendi com os anos a aceitar muitas coisas que não aceitaria em outras ocasiões quando tinha a meu favor o ímpeto da juventude.

            Não cheguei ainda a ponto de virar o outro lado da face para receber outra bofetada como ensinou o Cristo. Não sou perfeito, pelo contrário, um cofre de defeitos.

            Hoje tenho mais tempo para contemplar a natureza a quem considero a mãe de todas as coisas e meu corpo inerte certamente contribuirá para adubar as árvores que nela florescem e frutificam.

            Olhando as pessoas caminharem na avenida Leite de Castro, imaginei: como seria nossa cidade se fosse habitada hoje somente por pessoas nascidas até 1905? A cidade seria um imenso deserto. Não restaria ninguém, talvez pouquíssimos anciãos centenários. E todos nós, com toda certeza, um dia faremos parte desse imenso ossário. Detesto a morte. Amo a vida.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ANTIGAMENTE

 

 

 

            Era 1967 quando aqui chegamos, eu, Raul e Giovani.

Os dois me convenceram a deixar o meu querido Leblon, no Rio de Janeiro, onde morava, a duas quadras da praia. Relutei muito em perder meu fim de semana, fazendo uma viagem a Minas Gerais, precisamente a São João del-Rei.

            Nosso objetivo era extração de areia, na estrada velha de Tiradentes, na Candonga, onde, segundo nosso historiador Fábio Guimarães, emboabas e mascates se digladiaram numa terrível carnificina tingindo as águas do rio de vermelho, tal a quantidade de sangue derramado, advindo desse episódio o nome de Rio das Mortes. Na cachoeira onde hoje ainda corre um filete de água, naquela época, na temporada das chuvas, formava-se uma forte queda-d’água.

            Viajamos à noite, após o encerramento do expediente de nossas repartições. Numa velha Rural Willys, vinham conosco o nosso inesquecível Arthur Leréia, que voltava definitivamente do Rio, e o Márcio Cueca.

            A comissão de recepção formada pelos boêmios mais insones, na esquina do Kibon, não era das mais recomendáveis, pois entre outros existia um trio tétrico, de arrepiar: Judas, Demônio e João Diabo. De atemorizar o mais destemido dos valentes.

            Um seminarista que viajava de carona conosco, na hora de ser apresentado ao Demônio, com ar de terror na face, pálido como uma cera, colocou os dedos indicadores das mãos em cruz na direção do apresentado e, com passos para trás, gritou desesperado:

            — Vade retro, Satanás! — e desapareceu em desabalada carreira pelo Beco do Agá.

            Pedro Salomé, Etel, Mafra e Natal também ficavam de plantão, aguardando nossa chegada, que passou a ser rotina nas madrugadas dos finais de semana.

       Dali mesmo emendávamos para nossa farra.

            No areal, onde funcionaria nossa indústria de extração de quartizita, tinha um pátio cimentado, onde passamos a produzir um racha da melhor qualidade, apesar dos conhaques e cervejas ingeridos. Servia como desintoxicante.

            No final, um banho nas águas geladas daquela generosa cachoeira. Pronto. Estavam repostas nossas energias, e se alguém estivesse embriagado, sarava na hora. Um bom sono à tarde e à noite, bailes, serestas e bares. Que maravilha era a vida! Tínhamos a nosso favor a juventude. Éramos superiores às intempéries.

            Comercialmente, no entanto, éramos um fiasco. Nossa indústria sucumbiu diante do nosso empirismo e da nossa inexperiência.

            São João era manchete nas revistas de maior circulação do país, devido ao seu belíssimo carnaval, incentivado pelo Jota d’Angelo (CONFERIR GRAFIA D’Angelo ou d’Angelo?), com sua escola e seus sambas fantásticos.

            São João, apesar do ar provincial, era uma cidade progressista.

Nas duas fábricas, onde mais tarde fui trabalhar, havia 2.700 operários, mais uns 1.500 da São Joanense e mais os da Fábrica Dom Bosco. O Regimento Tiradentes possuía outros tantos, a Rede Mineira outros mais. Onde foram parar esses postos de trabalho? Será que foram para Barbacena? Que hoje nos olha com superioridade e desdém? Ou será o resultado da tal cibernética?

            Na verdade, naquele período todo, somente duas novas fontes relevantes de empregos apareceram aqui: a Bozel e a Funrei, mas isto é um outro capítulo.

            Quero dizer, continuando minha história, que sou são-joanense por opção. Não se escolhe lugar para nascer, mas para viver e morrer, sim. O título de cidadão honorário, que muito me honra, me foi entregue em cerimônia na Prefeitura, pelas mãos do nosso saudoso “Cumpadre Vieira” que, na época, ocupava uma cadeira na Câmara da nossa cidade. Belenense de nascimento, são-joanense por opção.

            No Clever’s Bar, do José Carlos, eu olhava com admiração e respeito uma rodinha que todas as manhãs se formava em volta de uma das mesas do bar, para tomar cafezinho, naquele mesmo horário. Vinagre, Chiquito, Dr. Antônio Reis, Major Alvim e outros. Na hora do acerto da conta, cada um tirava suas moedinhas do bolso, na exata. Se algum dos participantes tentasse levar vantagem, havia um pequeno mal-estar, tudo, porém, dentro da maior educação.

            O tempo passou. Hoje, de certa forma, o lugar deles está sendo ocupado pela minha turma que envelheceu. Parabéns ao amigo Altamiro Braga e dr. Walter Baccarini que permanecem fiéis nas suas cadeiras cativas da, hoje, Confeitaria da Vovó. Sempre que posso sento-me com eles para dois dedinhos de boa prosa.

            A Cantina Calabresa vivia seus dias de glória. Seu Ítalo no balcão, dona Lina comandando a cozinha, onde produzia jóias da culinária italiana, a ponto do vice-cônsul da Itália, sr. Umberto Bucci me dizer que na própria Itália não se comia um caneloni igual ao de dona Lina.

            Aos domingos, tradicional mocotó. Os homens esticavam o aperitivo, esperando pelo resto da família, para que juntos, no almoço, saboreassem as delícias da Cantina.

            Era comum, após a missa, ainda de calça curta, Rogério Medeiros Garcia de Lima, hoje ilustre magistrado, primeiro lugar no concurso para juiz de direito, atleticano saudável, neto do dr. Garcia, orgulho de nossa cidade, pelas mãos de dona Laís, ir ao encontro do Tidinho, seu pai, que, com o bom humor que lhe é próprio, divertia os comensais nas matutinas reuniões dominicais da Cantina. Domingo na Cantina era uma verdadeira confraternização da sociedade são-joanense. Todos se conheciam. Os ocupantes de todas as mesas conversavam entre si como se formassem uma só família. Muito bom!

            Obrigado São João del-Rei, por me haver acolhido. Tudo de proveitoso que produzi na vida, como meus filhos, meus amigos que amo e meu pequeno patrimônio, foram com tua aquiescência generosa.

            Breve, mais uma dádiva para mim. Minha primeira neta vem aí. E dá-lhe Nara!

 

P.S.: Alguém pode me explicar por que o ICMS sobre as contas de energia elétrica, em Minas Gerais, é de 30%, quando o normal seria 25%? Era assim antes do Eduardo Azeredo ser governador. Dizem que o aumento de cinco pontos percentuais foi para financiar a campanha dele à reeleição. Será? E aquilo que era provisório, transformou-se em definitivo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

TRISTESSE

Estudo nº 3, op. 10

F. Chopin

 

 

 

            Numa certa tarde plúmbea de São João del-Rei, há muitos anos, quando desci do apartamento onde morava, em cima do Restaurante Benegas, ali nas proximidades do antigo Banco de Crédito Real, fui presenteado com a delicadeza de acordes primorosos de um piano bem tocado, reproduzido por um aparelho de som de primeira qualidade. Fiquei extasiado. E como não podia ser diferente, movido pela curiosidade, como se levitasse, cheguei até a loja “O Palácio da Música”.

            Não resisti, entrei e me deparei com uma loja muito bem equipada de aparelhos de som da mais alta qualidade. Segundo meu amigo Camilo, um sonho de consumo para nós míseros mortais que circulamos pelo universo dos assalariados.

            Fui recebido pelas simpáticas e eficientes recepcionistas da loja que imediatamente me apresentaram o proprietário, hoje meu dileto amigo Sílvio Assis, uma pessoa que conhecia profundamente o produto com o qual trabalhava além de possuir a sensibilidade de descobrir de que o cliente gosta. Tornei-me seu amigo e freqüentador assíduo daquele lugar. Qualquer cidade se envaideceria de possuir uma loja daquele gabarito – e eu estava vindo do Rio de Janeiro, a Meca da música, com centenas de lojas tradicionais, tais como a Guitarra de Prata, na Rua da Carioca.

            Sua discoteca era uma das mais famosas de Minas e talvez do Brasil. Lá dávamo-nos ao luxo de conversar com o célebre maestro Waldir Silva, na época vendedor de discos da gravadora Odeon, se não me falha a memória. Era difícil a vez que ali entrava e saía apenas com um LP. Sílvio, como profundo conhecedor, sempre tinha a melhor oferta para cada gosto e lá comprei uma jóia musical do Pixinguinha, que meu amigo Cezar (era mesmo com z?) Faria, pai do Paulinho da Viola, autografou. Guardo o disco como um tesouro.

            Assim foi que construí minha pequena discoteca. O melhor disco que tenho, foi sugestão do Sílvio. Conhecedor do meu gosto por árias clássicas, apresentou-me Óperas do maestro Waldo de los Rios, considerado maldito pelos eruditos por acrescentar instrumentos musicais à sua orquestra que não constam das orquestras tradicionais e por modificar o andamento da música clássica para música.

Assim é que até hoje quando quero chorar de emoção – sim porque chora-se pelos mais diversos motivos, tristeza, desilusão, raiva, e, no meu caso, por pura emoção – coloco meu velho vinil na “vitrola” e ouço a execução da ária da ópera Nabucco: Va. pensiero, de Verdi (conferir grafia, minúsculas e maiúsculas).

            Porém, na vida, nada é definitivo, e o progresso, avassalador, nos transforma em pessoas saudosistas e melancólicas. Não existe mais o Palácio da Música. Em seu lugar uma loja reluzente de telefonia celular, que na minha época, soava como ficção científica.

            Ai de nós se não fosse dona Mazinha, da Cia. Telefônica Sanjoanense, que com carinho e dedicação, na sua mesa telefônica, colocava as pessoas em contato, umas com as outras e São João del-Rei com o mundo.

            Recentemente, passando pelo Quatro Cantos, novamente, de longe, ouvi um som semelhante àquele que ouvira anos atrás na avenida. Não podia ser diferente. Vinha da Casa Assis, do nosso inestimável Jofre, falecido recentemente e que era irmão do Silvio. Não resisti, entrei, fui recebido por uma de suas tradicionais atendentes que me indicou o Sílvio. Ali sentado ao balcão com seu jeitinho peculiar, selecionando as músicas para o deleite dos transeuntes. Perguntei-lhe pela majestosa discoteca do Palácio da Música. Apresentou-me o pouco que restava, apenas uns cinco mil discos, sendo vendidos a preço de feira. Disse-me:

            — Aproveita que semana que vem vou fechar.

            Saí às pressas para não deixar transparecer minha desilusão.

Em casa, envolto nas minhas recordações, coloquei na minha “vitrola”, numa execução sublime de Pedrinho Mattar, a valsa Tristesse, de F. Chopin, belo fundo musical para um epílogo melancólico de uma fase esplendorosa da minha vida e da minha cidade querida.

 

P.S.: Nosso irreverente Du Ferreira nos pregou uma peça.

Isso não se faz, ô Du! Que sacanagem! Nos privar da tua alegria? Nunca mais vou andar num Mercedes Benz!

Descansa em paz. Viveste 100 anos em 50.

 

 

 

 

 

 

 

 

UFANISMO

 

 

 

            “Ó meu Brasil, tão grande e amado/É meu país idolatrado.”   

            Naqueles saudosos tempos, quando se nutria um grande sentimento de amor ao nosso país, o poeta, através dessa estrofe do samba exaltação — gravado, se não me falha a memória, pelo grande Francisco Alves, o Rei da Voz, exprimia todo sentimento do nosso povo.

            Era o meu “Brasil Brasileiro”, segundo Ary Barroso na Aquarela do Brasil.

            Gente altiva, alegre e laboriosa. O sentimento de pátria era muito mais aguçado. Incentivado nas escolas, nas competições esportivas e nos desfiles do dia 7 de Setembro. Os símbolos pátrios, respeitados e muitas das vezes, idolatrados. Que o digam nossos gloriosos pracinhas do 11 RI Tiradentes ( sugiro: 11º. - não é cardinal? - Regimento de Infantaria Tirandentes).

            Nosso hino, quando antecedia competições desportivas no Maracanã, era saudado com todo respeito pelos torecedores, contritos, de pé e em silêncio (não cantavam? Se não cantavam, acho que vale repetir: “...em silêncio, ninguém cantava, por considerar desrespeitoso.” Era isso?). Coisa bonita!

            Minha geração ficou marcada pela derrota da Seleção brasileira de futebol, na decisão da Copa do Mundo de 1950, em pleno estádio do Maracanã, para a Celeste Olímpica uruguaia. O que era apenas uma competição desportiva transformou-se num ultraje nacional. E nós, até hoje, nunca engolimos aquele revés. Restou-nos a imagem do heróico Obdulio Varela. (acho que vale acrescentar quem é ele. Eu não sei, foi o goleiro da Seleção brasileira que trabalhou como ninguém, fez defesas incríveis?)

            Nosso país merecia respeito. O que fizeram contigo Brasil?

Era comum, ao lado de uma mansão de milionário, um casebre de gente pobre. Conviviam em harmonia, ricos e pobres. Era também comum, o pobre ao lado prestar serviços ao vizinho milionário e os filhos dos ricos jogavam peladas com os filhos dos pobres. Nessa convivência, ou intercâmbio cultural, os pobres aprendiam as manhas dos ricos e vice-versa.

            Parece-me que foi um erro confinar a pobreza em guetos como as favelas e inúmeras Cidades de Deus sem as mínimas condições sanitárias e urbanas.

            Hoje, um terço da população de nosso país vive abaixo da linha de pobreza estipulada pela FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, isto é, pessoas que recebem menos de dois reais por dia. Verdadeiros miseráveis. Nessa miséria, os cidadãos disputam com ratos, restos de comida nos lixões.

            Brasil, te transformaram no país que detém a maior e mais perversa concentração de renda do planeta. Que vergonha!

            Apesar da idade, ainda tenho esperança.

Tu não tens culpa.

Ainda te amo!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

UM SONHO

 

 

 

            Despertei. Dia lindo, prenúncio de outono, manhãs claras. O contorno da serra de São José de Tiradentes contra o fundo azul de céu límpido é uma paisagem deslumbrante. Ano passado ela não foi incendiada e, desta forma, agradece com um vergel ameno e romântico, dando-nos a sensação de que realmente os homens que a depredam, desta vez, se sensibilizaram. Debalde esse cenário maravilhoso, acordei triste, reflexo de um sonho que acabara de ter.

Muito além das lembranças, o sonho é, de fato, o que nos coloca de volta na ribalta da vida. É quando, como expectadores, assistimos ao nosso desempenho nesse grande teatro. É interessante você se ver, não como em um espelho diante do qual você faz a caricatura que lhe convém. No sonho, você não tem domínio sobre suas ações, ali você pode ver suas virtudes e defeitos sem que possa alterá-los. Você não tem domínio sobre os cordéis que controlam os bonifrates, como nos teatros de pastorinhas. Foi assim, então, que me vi naquele filme passado não sei onde, com personagens e cenários desconhecidos. Ali, com a juventude a meu favor, eu corria, remava, nadava, namorava, chorava e cantava. Tempos pretéritos.

            Em certo momento, encontrava-me de mãos dadas com uma moça sem rosto. Luzes de todos os matizes. A música dolente acrescentava um clima romântico e lascivo. Nos outros rostos via claramente o excesso de batons e maquilagem naquelas mulheres que rodopiavam com seus pares ao som de um tango de Gardel. Fumaça de cigarro impregnando o ambiente dava o toque de volúpia ao cabaré. Nas mesas, garrafas de cervejas e aqueles boêmios, entre uma música e outra, a dedicar juras de amor à sua parceira, ou talvez, um gigolô tentando impressionar a moça a fim de lhe tomar seu dinheiro, produto de um trabalho muitas vezes asqueroso, aceitando em sua cama seres abjetos e mal cheirosos. O cabaré fervilhava. Sorrisos falsos e almas vazias. Muitos, exacerbados pelo álcool, faziam tipo machões e cafajestes.

Naquele cenário, estava eu. Terno branco, magro, cabelo louro e fino em desalinho, úmido de suor, dançando, fumando, bebendo e vivendo a vida, gastando-a de forma perdulária. Que sensação maravilhosa! De repente, acordei.       Desperto daquela letargia, a realidade. Deformado pela obesidade e atingido por uma artrose dolorosa que me corrói os dois joelhos, não corro mais e caminho com muita dificuldade. Meus cabelos caíram e as esperanças deram lugar aos desenganos.

Avante! Devo agradecer aquele momento de sonho onde minha performance foi marcante com minha parceira sem rosto. Do irreal para o real, agradecer à mãe natureza por ter me dado o privilégio de ver, enxergar e poder admirar o lindo dia de hoje, presente, agora, lógico e real.

 

P.S.: 1. E os relógios digitais das nossas praças? Quem os levou? Será que vai ficar por isso mesmo? Que pena!

2. Vamos trocar o nome da Avenida 31 de Março? Avenida dos Imigrantes, Avenida dos Italianos ou Avenida dos Imigrantes Italianos? Sugiram.

 

 

 

 

 

VERGONHA

 

 

 

            Foi necessário o assassinato de uma cidadã norte-americana para que o governo brasileiro tomasse alguma providência e atentasse para a questão fundiária no Estado do Pará. Ali vale tudo.

            Em 30 anos, na pesquisa mais recente, já foram assassinados mais de 700 líderes camponeses, lavradores, mulheres e crianças naquela área. Colonos expulsos de suas terras por grileiros, verdadeiros chacais inescrupulosos que se alimentam da carniça miserável dos menos aquinhoados pela sorte.

            É revoltante. Não se imagina o que passa o ser humano naquelas bandas. Meninas impúberes são arrancadas de suas famílias, negociadas e iniciadas no comércio prostituído de escravas brancas; homens com as mãos calejadas e faces embrutecidas pelas intempéries são leiloados como escravos entre latifundiários, grileiros e donos de paus-de-arara; donas de casa, mães de famílias são verdadeiras escravas negociadas entre aqueles bandidos para cuidar dos serviços domésticos. Desta forma, as famílias são destruídas, criando-se assim a cultura do medo e da revolta.

            Até quando, Catilina? Parece que minha gente está fadada à exploração e ao sofrimento desde a colonização. Haja vista que no local onde hoje é a cidade de Santarém, habitava a nação dos Tapajós. Uma civilização que possuía mais de 200 mil vidas e que, entretanto, foi aniquilada pelos tais colonizadores. E os selvagens eram os donos da terra!

            Das reservas fundiárias da minha família, herdadas de meus avós, ele, coronel da Guarda Nacional, não restou absolutamente nada. Todas as terras foram griladas por um baiano deputado federal pelo estado do Pará, daqueles que a lei é ele, capitão de jagunços.

            Está comprovado: a Amazônia tem um ecossistema frágil. Somente o homem daquela área sabe como lidar com a grande floresta. A fronteira da floresta está cada vez mais longe. Lembro-me de que, em 1967, fiz uma viagem em um fusca do Rio de Janeiro a Belém. De Ceres (onde é isso? Interior fluminense?) a Belém, uma distância próxima de dois mil quilômetros, a estrada era toda de terra, cortada no meio daquela imensa floresta. A estrada, muito larga, é uma reta só. Chega a ser monótona. Pois bem, naquela época, às 17 horas, o leito da estrada já era uma penumbra, projetada pela sombra das enormes árvores que margeavam a estrada. Voltei anos depois, lá por 1980, também de automóvel. Que tristeza!

            A floresta desaparecera ao alcance da vista. Em certas áreas, imensos areais desérticos. Comboios imensos de carretas transportando toras de madeira de árvores seculares, 24 horas por dia. Dá vontade de chorar. A cobiça de madeireiros inescrupulosos vai acabar com a floresta. Espero que não morra mais ninguém, vítima desses famigerados grileiros, e que o governo consiga colocar esses bandidos na cadeia, que é o seu devido lugar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

VIDA (INACABADO)

 

 

 

            No dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, encontra-se o verbete abaixo:

            “Vida [Do lat. vita] S.f. 1. Conjunto de propriedades e qualidades graças às quais animais e plantas, ao contrário dos organismos mortos ou da matéria bruta, se mantêm em contínua atividade, manifestada em funções orgânicas tais como o metabolismo (2), o crescimento (1) a reação a estímulos, a adaptação ao meio, a reprodução (1), e outras; existência.”

            Há alguns dias, me pilhei, pensando na carnificina diária que existe no mundo, exterminando, simplesmente, seres vivos, com objetivo específico de atender ao apetite voraz do também animal carnívoro chamado homem. São milhões de animais abatidos diariamente para nos alimentar, a nós, seres humanos: bois, porcos, cabritos, carneiros, frangos e, dependendo do país, cães, gatos, cobras e lagartos. Isso tudo feito em nome de nossa sobrevivência.

            Fui me aprofundando naquele melancólico pensamento, tentando entender o ser humano. Não será isso que incentiva a banalização da vida? O maior tesouro que a natureza nos dá está definitivamente desprestigiado. Mata-se um semelhante por motivos irrelevantes.

Na pacata São João del-Rei, são 24 o número de assassinatos no decurso deste ano. Jovens se matam por motivos fúteis.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

OUTROS ESCRITOS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

RUMO À BAHIA

 

 

 

            Rey (apócope de Reynaldo), um astuto e, por isso mesmo, próspero vendedor de livros, bem situado, com apartamento próprio no Leblon, resolveu aumentar seus lucros. Para isso decidiu investir em seus dois genros: Carlos, genro de fato e de direito, e Hila, corruptela de Hilário, ainda pretendente ao tal do fato e direito.

            Deliberou comprar uma Kombi, lotá-la de livros científicos de Direito, muito procurados à época: Processo Civil, de Carvalho dos Santos; Direito Penal, de Aníbal Bruno; Direito Internacional Privado, de Haroldo Valadão e Direito Romano, de João Carlos Moreira Alves. Sabia que todo bom advogado teria que possuir essas obras em sua estante, principalmente os alunos do primeiro ano, aspirantes ao bacharelato. Um verdadeiro filé para se vender.

            Levaram também, uma coleção infantil sobre a história do descobrimento do Brasil. Só tinha aparência. Ilustrações belíssimas, porém o conteúdo péssimo. Editada pela Time-Life e traduzida pela Larousse. Nela, se procurasse Cabral, achava Colombo. Por mais que se tentasse saber o nome da nau de Cabral, encontraria somente Santa Maria, Pinta e Nina, que compunham a esquadra de Colombo. Deveria ser vendida em grupos escolares e colégios. Tudo prêt-a-porter.

            Rey desempregou o Carlos, tirando-o de seu trabalho junto a uma multinacional, onde vinha muito bem, na função de supervisor de vendas, e convidou o Hila, que naquele momento estava descolocado, pois havia sido defenestrado de suas funções no Banco Irmãos Guimarães, onde um subgerente invejoso teceu umas intrigas.

Aliás, o próprio nome do cargo o qualifica “sub” tem sentido de inferior; se fosse “sobretalvez se esperasse coisa melhor. Achou que aquele garotão da zona sul, que usava terno de tropical inglês Super Mohair Pitex, contrabandeado de Paramaribo, camisa de cambraia de linho, abotoadura e gravata combinando, compradas na Otto, e sapato do Motinha, estava subindo muito depressa no Banco, ameaçando sua carreira de puxa-saco e mal humorado com os subalternos.

            Desse tipo que quando sai do quartel nunca mais deixa de cortar o cabelo no estilo dos militares para deixar transparecer que ainda é um sargentão e impor mais respeito no trem da Central. Em casa, botava os filhos em forma e lhes dava ordem unida. Aliás, quando o Hila se apresentava para trabalhar, logo de manhã, naquela pinta toda, os colegas da agência saudavam-no jocosamente, chamando-o de Geraldinho, uma alusão ao filho do dono do Banco.

            Hila se deliciava com a gozação dos colegas e retribuía, acenando com o jornal que sempre trazia dobrado debaixo do braço.

– Bancários, estão satisfeitos ou têm alguma reivindicação a fazer? Pois façam. Meus funcionários devem trabalhar contentes.

            O Normando, chefe da carteira de contas correntes, tinha uma saudação especial para o Hila:

– Salve, bancário antigo! – esse “antigoera dito no sentido de esperto.

            Era uma turma sensacional: Normando, Gilberto, Rogério, Paulinho, Souza, Lima, Fidélis, Clóvis e outros.

            No dia do pagamento, faziam a alegria das moças dos cabarés da Rua Alice. Em primeiro lugar, iam todos ao do alto da rua. Era uma casa discreta e silenciosa. Ao tocarem a campainha, eram recebidos através de uma janelinha na própria porta por um veado velho, que identificava a freguesia, com receio de ser a polícia. Ao verificar de que se tratava daquela turma de habitués, a bicha velha se desmanchava em salamaleques e com sua vozinha esganiçada botava a turma para dentro.

            Era um salão grande, alcatifado de cortinas de veludo surrado e com vários sofás distribuídos de forma estratégica para que os fregueses pudessem apreciar todas as moças ali sentadas confortável e recatadamente. Uma atmosfera muito solene em se tratando de um prostíbulo.

            Hila, muito tímido nessas ocasiões, quando se deparou com aquela cena, quis recuar. Normando, o mais antigo, o empurrou para o meio do salão. Tentou dissimular sua timidez, mas seu rosto o condenou pelo rubor. O restante da turma caiu na pele dele, enquanto a cafetina apresentava as moças, dissertando sobre suas aptidões.

            Cada membro daquela alegre confraria escolheu a sua e desapareceu para seus respectivos quartos. Instantes depois estavam todos reunidos novamente. Sorrisos nos lábios, um contando proeza maior que a do outro e se sentido o próprio macho.

            Desciam a de cima até a Casa Rosada, em baixo. Sem qualquer alusão à sede do governo portenho, ali faziam ponto algumas argentinas, que eram verdadeiras máquinas caça-níqueis. Faziam com a língua o que nenhum ilusionista do baralho faz com as mãos. Em minutos despachava o freguês. Não tirava nem a roupa e deixava o incauto de pernas bambas, dissipando as fantasias que o coitado tivera antes de entrar no quarto. Uma boa bochechada com água da talha e estavam elas prontas para o próximo.

            A Casa Rosada era muito mais interessante que a casa de cima. Ali era lugar de boêmio e de farristas, um verdadeiro cabaré. Mesas, luzes lúgubres, cervejas e muita fumaça. Não havia preconceito contra fumantes nem contra qualquer tipo de pessoa. Ali se misturavam autoridades, funcionários públicos, office-boys, mulatos, cafuzos, negros e brancos, todos com um objetivo: distrair-se e aproveitar a noitada.

            A turma sempre unida juntava duas ou três mesas e mandava descer cerveja. Dali a instantes, o grupo tinha dobrado de tamanho com a adição das companheiras de cada um. À medida que o estado etílico ia aumentando, aumentavam também as juras de amor e promessas de “tirar você deste lugar”. No final, tudo acabava na horizontal, e com o clarear da aurora, eles faziam a vaquinha incluindo as trepadas, apagavam tudo, entravam nos táxis e iam para casa, aproveitar um pouquinho do calor da cama para se refazer e dali a poucas horas estar de para a lida do novo dia.

            No dia seguinte à farra, Hila começava a rodear o chefe Normando, que sabendo do que se tratava, iniciava o diálogo:

            — Que queres, bancário?

            — Como está a disponibilidade da Mônica, filha menor de Normando? – era uma conta corrente que ele mantinha como reserva para o futuro de sua filha.

Seguia-se um coro de risadas, pois a turma já sabia e ficava de olho, só esperando a pergunta do Hila.

            — Bem, chefe, é que depois do ocorrido ontem, me exacerbei, de forma que hoje estou desprevenido. Será que o amigo não me adiantaria vintão até o final do mês?

            Para delírio da platéia, o bom amigo Normando nunca lhe negou, pois sabia que, no final do mês, aquele era certo. Ficaria na conta por alguns dias até que o Hila pedisse novamente emprestado.

            Eram tempos muito felizes.

 

            Na viagem rumo à Bahia, o Hila deve ter ido de contrapeso. De vendedor não tinha nada, principalmente em se tratando de livros, coisa que detestava, pois não conseguira ir além da 2ª série do curso ginasial no Colégio Salesiano Nossa Senhora do Carmo, em Belém do Pará. No caminho, as prioridades eram Itabuna, Ilhéus e Salvador, esta última possuidora de uma bela e tradicional universidade.

Formou-se então a equipe: Rey, o chefe, Carlos e Hila. Três personalidades com perfis totalmente diferentes. Rey, epicurista, entendia de tudo, sabia de tudo, contestava tudo, rabugento e resmungão, portador de úlcera nervosa e de uma diarréia crônica e imprevisível. Carlos, bem nascido em berço alfombrado, de educação pianística e filho de judeu, tinha no sangue o fino trato com o comércio e o dinheiro. De pais abastados, desde adolescente possuía automóvel e motocicleta. Em seu currículo constava uma passagem pela Aeronáutica, onde exerceu o ofício de batedor – não porque batia nas pessoas, mas porque abria o trânsito para as autoridades com as sirenes ligadas e pilotando uma maravilhosa Harley Davidson, o frisson da época. Esse ofício lhe custou um pedaço do calcanhar, arrancado pelo descanso da moto. Dos três, o único habilitado para dirigir automóvel.

Rey havia perdido as esperanças de aprender a dirigir, pois, segundo um brocardo popular, “papagaio velho não aprende a falar”. Hila, pela sua própria condição de proletário, vindo do Norte, nem sonhara possuir um automóvel. Apesar de seus 23 anos, era um boêmio tarimbado. Para ele tudo estava bom, se não lhe faltasse um prato de comida, uma cerveja ou um conhaque, ou um vinho, ou uma pinga... Boa companhia para qualquer situação, principalmente uma farra. Bem afeiçoado e com uma boa voz, fazia sucesso cantando nos botecos e cabarés por onde passava. Um boa praça.

            O primeiro impasse surgiu na hora da compra da Kombi. Rey, sabiamente, foi pedir opinião ao Carlos, o único que entendia do negócio. Rey gostou de um modelo azul mais modesto e o Carlos decidiu por um verde claro mais moderno por questões óbvias. A Kombi teria que nos levar, lotada de livros, e nos trazer de volta ao Rio. A Rio-Bahia, se hoje é cheia de buracos, naquela época existia o buraco. Contornado o problema, Rey, a contragosto, aquiesceu à opinião do Carlos e comprou a Kombi mais nova.  

Combinaram a saída num tal dia pela madrugada e Carlos providenciou o carregamento da Kombi com o respectivo romaneio de carga. Feitas as despedidas, na estrada. Rey deixava para trás mulher e três filhos; Carlos, esposa e um filho recém-nascido, e Hila, saudades de sua doce amada.

Carlos na direção, Ney e Hila a seu lado. Todos no banco da frente, o único que sobrou. O resto eram livros.

            Tudo bem! A viagem seria cansativa e de fato foi.

O tempo foi passando, aqui e ali, Rey, usando da prerrogativa de proprietário do patrimônio, insinuava que gostaria de assumir o volante. Carlos, sabiamente, fazia ouvido de mercador. Hila, no seu canto, sonhava com sua praia que havia ficado para trás e logo na época em que havia encontrado uma namorada que o deixara apaixonado, porém a aventura e o rumo ao desconhecido o excitavam mais. Afinal de contas, Salvador também possui lindas praias e, quiçá, belas morenas.

Numa pequena cidade à margem da rodovia, fizeram a primeira parada para tomar café. O sol ainda não havia dissipado a neblina que pairava naquela praça cortada ao meio pela linha da estrada de ferro e ladeada por flamboaiãs seculares. Hila ainda guarda na retina a imagem de uma velhinha dirigindo-se para a igreja a fim de cumprir o mister de iniciar o dia em paz com Deus. Após o café, na estrada.

Foi uma manhã tranqüila e monótona, naquele sertão. O calor incomodava muito. Hora do almoço, próximo a Jequié, Carlos parou numa birosca na beira da estrada. Chão batido, telhas de zinco, mesinhas mancas pintadas daquele azul tradicional com os também tradicionais cartões de visitas gravados com o garfo, enquanto os poetas esperam a bóia. Lia-se: “Adirson retratista”, “Zurmira ti amo”, “Parmira é puta”. Ali estava a maior concentração de moscas e de mendigos por centímetro quadrado que já vi. Aí a coisa apertou. Por causa da sua úlcera, Rey queria um especial à la carte. Carlos, acostumado aos bons restaurantes e de paladar apurado, retraiu-se e não fez pedido. Hila, com menos escrúpulos, mandou vir o da casa.

Num prato de esmalte, foi servida uma nata de gordura com alguma coisa por baixo. Não deu para identificar o conteúdo e, com certeza, algumas moscas compunham aquele negócio com sabor de sola de botina de soldado com caldo de meia de polonês. Era uma coisa horrível, porém a fome era maior. Após jogar na goela um gole da marvada, Hila pediu pimenta, tacou farinha, remexeu a lavagem e meteu o “remo”.

            Carlos comentou:

— Hila, essa pinga deve ser horrível!

Por isso que joguei no goto, para não sentir o sabor. O efeito é meramente terapêutico, importante é ela ajudar a derreter essa graxa que está indo em cima dela!

            Cada “remada” era disputada com as moscas, sob o olhar suplicante de mendigos e meninos famintos que, nus e catarrentos, quase se debruçavam sobre a mesa.

 Diante de tanta miséria, nojeira e promiscuidade, Carlos desistiu do almoço. Rey ensaiou algumas garfadas no seu especial, composto apenas pela gordura, sem o entulho submerso. Light. O medo da diarréia o fez parar na segunda garfada. Assim, o almoço não durou mais do que o tempo necessário para o Hila devorar seu ragu que, com o inchaço da farinha, havia virado um verdadeiro concreto. Após algumas espórtulas para os circunstantes, na estrada, com tudo o que aquele valente motor de 1.200 cc agüentava. Na memória, um desejo: esquecer aquela cena que ficara para trás.

            Após umas duas horas de viagem:

            —Pára! Pára! Rápido!

            Carlos, assustado, parou de repente, do jeito que deu, pois acostamento? nem sonhar. Rey, com um rolo de papel higiênico na mão direita, pulou por cima do Hila e caiu fora. Com a agilidade de um esgrimista arriou a calça de linho claro e deixou aparecer sua cueca samba-canção abotoada por dois ilhoses. Uma cena bizarra.

            Após se aliviar naquele desbarrancado barrento, o homem levantou-se, suspendeu a cueca, colocou a fralda da camisa social para dentro, levantou a calça, encaixou devidamente o suspensório, afivelou o cinto, ajeitou a gravata e arrumou o paletó. É verdade que todo ser humano — e parece até que é inerente ao próprio animalapós se aliviar, obrigatoriamente terá que olhar sua obra. Não poderia ser diferente com o Rey. Quando lançou seu olhar de verificação, constatou que seus sapatos de verniz e sola fina estavam devidamente atolados naquele produto que ele acabara de obrar. Foi uma tragédia.

O rasgo traseiro do paletó, de ambos os lados, serviria como um prato cheio a um laboratório de análises clínicas em substituição às lâminas, pois ali certamente encontrariam diversos membros da família dos micróbios e amebas que habitavam suas entranhas. E foram somente duas garfadas! Novo impasse. Carlos, por seus princípios de higiene, portador de um humor seletista e uma paciência efêmera, soltou os cachorros.

            — Assim não viaja comigo! Tem que trocar de roupa, sapatos e de preferência tomar um bom banho!

            O homem não era chegado a um chuveiro e foi salvo pelo local. Água ali, naquele instante, só nas gravuras das coleções infantis que levavam e que mostravam as caravelas de Colombo descobrindo a América do Norte e não Cabral descobrindo o Brasil. Eta coleçãozinha mentirosa.

            Humildemente, Rey que era um gaúcho brabo, relutou, mas obedeceu e resolveu trocar sua indumentária de dia de festa por um traje mais esportivo. Arrumou um bonezinho surrado, azul marinho, trocou os sapatos, a meia, a cueca, a calça, o cinto, substituiu a camisa social por uma esporte, abotoou até o pescoço, arrumou o bendito suspensório, mas não trocou a gravata. Usou a ponta da parte interna para limpar os óculos de grau, ainda com alguns respingos esverdeados da maldita disenteria bacilar ou amebiana.

            O Hila assistia àquilo tudo impassível e quando os ânimos se exacerbavam, agia como mediador, apaziguando as discussões e aturando as idiossincrasias de ambos. Dois temperamentos fortes e intempestivos. Animava, resoluto:

 — Vamos em frente!

            De vez em quando, apesar da assepsia do Rey, soprava uma refrega de vento, vindo do seu lado e ainda se sentia aquela inhaca que empesteou o barranco. Imediatamente a comida da birosca voltava à lembrança.

            De repente, chuva! Carlos acionou o limpador de pára-brisas e seu desempenho foi sofrível. Quando parou a chuva, Carlos, com muito cuidado, deu uma pressão na haste do limpador para que a borracha passasse sobre o vidro com mais pressão. O Hila, que a tudo assistia, gostou da idéia e partiu para melhorar o do carona. Com toda a arrogância própria do inexperiente, disse solene:

            — Vou fazer um cotovelo no meu.

            se ouviu um pequeno estalo e estava o Hila, com uma cara de palerma, sob o austero olhar do proprietário do veículo, com o limpador quebrado na mão. Todo sem graça, saiu de fininho e sentou-se em seu canto.

            Chão e mais chão!

            — Olha um coelho! – disse o Hila.

            Não é coelho, é uma lebre. – retrucou Rey.

            — Olha, um gavião! – disse o Hila.

            Não é gavião, é carcará. – novamente retrucou o Rey.

            — Olha, um jegue! – exclamou o Hila.

– Não é jegue, é jerico – corrigiu o velho Rey.

(Não consegui uniformizar o tamanho dos travessões)

            Decepcionado com a falta de sorte, pois não reconheceu nenhum dos animais, o Hila silenciou em seu canto, meio amuado.

Silêncio sepulcral.

            De quando em vez, alguém na beira da estrada pedindo carona. Para não negar, Carlos na direção e Hila na janela fingiam dormir. No retrovisor, a imagem da pessoa atônita sem entender nada. Como pode esse carro se manter na estrada se o motorista está dormindo em cima do volante?

            — Ô Hila, estás calado? – Rey quebrou o silêncio.

            Com um misto de deboche e raiva, Hila respondeu:

            — É que acabou a fauna do estado da Bahia, só restaram os urubus.

            — Não são urubus, são abutres.

            Aí o assunto encerrou-se definitivamente. Quase que o Hila perdeu a fleuma e desceu do carro em movimento.

 

            Noite chegando, hora de parar, tomar um banho, jantar e dormir. Eis que surge um dormitório à beira da estrada. Pelo adiantado da hora, a prudência recomendava não arriscar. Era bom ficar por ali mesmo.

            Uma placa anunciava: Temos banho quente.

— Graças a Deus! - murmurou o Carlos.

            Após conversar com a recepcionista, que era também a proprietária, ficaram entusiasmados com a pousada. As perguntas todas respondidas com entusiásticos “sim”. Banheiro com água quente? Sanitários limpos? Camas decentes? Boa comida?

            Escova de dente e sabonete na mão, toalha no pescoço, entraram os três no banheiro de barrado vermelho e cimento liso no piso. A primeira impressão não foi boa. Carlos olhou para o chuveiro, tinha o cano. O olhar do Carlos soltava faíscas. Hila, para amenizar a situação, adiantou-se ao Carlos e entrou debaixo do cano.

            — Ô Carlos, desde que tenha água com abundância, não tem problema!

            E o Hila, com todo cuidado, resguardou-se, temendo levar o primeiro jato de água fria, saiu da reta do cano e aos poucos foi abrindo o registro. A última volta da rosca do registro totalmente aberto deu passagem a um miserável filete de água que iniciou com três gotas enferrujadas. O primeiro que falasse alguma coisa, o Carlos engoliria vivo. Hila, com sua paciência e experiência dos que vêm do Norte, contemporizou:

            — Carlinhos, com boa vontade dá para tomar banho. Vou te mostrar.

            Colocou o dedo médio da mão direita, na boca do cano, deixando a água escorrer pelo seu dorso, até sair do outro lado, no dedo médio da mão esquerda.

            — Estás vendo, Carlinhos, dá para tomar banho.

            Descontrolado, sua resposta foi impublicável. Retirou-se indignado da sala de banho e partiu para o segundo item, o jantar. O Rey gostou da situação, não era chegado a uma água, tratou de passar Glostora no cabelo e ficou por isso mesmo. Hila, ressabiado e de mansinho, sentou-se à mesa junto ao Carlos, que estava mudo e mudo continuou. Após alguns minutos:

            — Quero só ver o jantar! – Resmungou entre dentes.

            Rey chegou, sentou-se à mesa, sem nada falar, com um ar de superioridade no semblante, sacou seu livro de Epicuro e esperou alguém se manifestar para começar seu cansativo discurso. Em tom provocativo, Hila perguntou:

            — Quem foi mesmo esse tal de Epicuro?

            Era o que o homem queria. Sabia tudo de cor como todo mentecapto. Inflamado, se ajeitou, levantou-se e mandou a verborréia para aquela platéia de descalços:

            — Epicuro foi um filósofo grego do período helenístico-romano. Em 323 a.C., seguiu para Atenas e daí para Mitilene, na ilha de Lesbos, e Lâmpsaco, onde lecionou até 306 a.C., quando retornou para Atenas. Pouco depois, nos jardins da casa em que morava, perto de Dipylon, fundou sua própria escola filosófica que consistia no materialismo e no prazer como bem supremo. Nasceu em Salmos, 341, e faleceu em Atenas, no ano 270 a.C.

            Quase foi aplaudido, mas como ninguém conhecia aquele candidato, a platéia permaneceu desconfiadamente em silêncio. Tudo decorado da enciclopédia Britânica. Nada de útil no seu cotidiano. Dizia-se materialista, mas portava no pescoço, dependurada em um cordão de ouro, uma medalha do Sagrado Coração de Jesus. Carlos, impaciente e ainda vermelho de vergonha pelo discurso do Rey, falou:

            — Hila, faz favor, chama o raio dessa garçonete!

            — Perfeitamente. Moça faça o favor de vir até aqui!

            — O que temos para o jantar?

            — Temos sarapatel, bucho e pode sair um bife de carne de porco com arroz e feijão. Antecipou-se o Rey:

            — Não tem salada?

            — Só se for de jiló com cebola e pimentão.

            O ambiente foi ficando tenso. Carlos olhou de soslaio para Hila que lhe respondeu com um sorriso amarelo. Em seguida, levantou-se, comprou um pacote de bolachas água e sal e, sem qualquer despedida, retirou-se para o quarto. Rey contentou-se com um pedaço de queijo num pão dormido, acompanhado de refrigerante, retirando-se em seguida com cara de poucos amigos. Aí, o Hila sentiu-se à vontade. Esfregou uma mão na outra e falou:

            — Moça, traga uma pinga, uma cerveja e um sarapatel!

            Os pinguços que assistiam a tudo com a acuidade do matuto sentiram firmeza no tal do Hila, que, por sua vez, notando que havia agradado a turma, sentiu-se em casa. A cachaça, como tudo naquele lugar, era de péssima qualidade. Quase deu retorno. O Hila chegou a sentir água debaixo da língua, mas segurou na chave e a bicha desceu queimando. Puro álcool diluído em água.

            Vige! Eta cachaça porreta! Exclamou o Hila.

            A dona do estabelecimento abriu-lhe um largo sorriso e os pinguços, lambendo os beiços, cochicharam entre si, meneando a cabeça positivamente. Veio a cerveja e, antes de colocá-la no copo, ofereceu aos demais, que muito a contragosto, educadamente agradeceram. Hila sorveu aquela num fôlego e pediu a segunda. Nessas alturas, arriscava uma prosa com a turma, mas somente quando a conclusão era apenas um monossílabo: “é” ou “não”. Esperto, não queria muita intimidade, pois o tal do sarapatel ainda não havia chegado. Assim que a garçonete colocou o prato sobre a mesa, acabou a prosa. Hila ficou mudo, não arriscou mais nenhum olhar para os lados. Sapecou pimenta no rango, pegou a garrafa de farinha e despejou. Instantaneamente, aquilo virou um grude. Hila se deliciava com aquela gororoba como se fosse um manjar dos deuses. Eis que, de chofre, irrompe o salão do jantar, com uma cara de fazer medo até ao Emiliano Zapata, o valente revolucionário mexicano, ninguém mais do que o Carlos. Desfigurado e furibundo, vociferou:

            — Nesta pocilga eu não durmo!

            Hila, como sempre muito solícito, interrompeu seu jantar e indagou:

            — O que foi que houve, Carlinhos?

            — Vem cá!

            Pegou o Hila pelo braço e saiu da sala pisando duro. A platéia entreolhou-se sem entender absolutamente nada. Adentraram o quarto e lá estavam, além de várias baratas, duas tradicionais camas patentes de solteiro, uma separada da outra, a uma distância de um palmo, tal a exigüidade do cubículo. Porém o que deixara o Carlos possesso era a marca do corpo de uma pessoa no colchão e o travesseiro afundado, denunciando que daquelas camas alguém havia se levantado recentemente. Não trocaram nem os lençóis e nem as fronhas. Hila não perdeu a oportunidade:

            — Que é isso, Carlos, tu não conheces? Essas são as famosas camas-quentes da Rio-Bahia, quando um levanta, outro deita. A água do chuveiro não estava quente, porém das camas não podemos reclamar. Tu interromperes meu jantar só por causa disto? Faça-me o favor!

Hila voltou para o seu jantar. Quando entrou no salão deparou a turma com olhar inquisitivo. Entre um sorriso sem graça, justificou:

            — Não foi nada, não foi nada, pequenos contratempos!

            Sentou-se à mesa e arrematou o resto da comida já fria que mostrava o excesso de azeite de dendê, deixando as bordas do prato esmaltado tingidas de vermelho.

            O incidente das camas deixou Hila preocupado com o Carlos. Apesar de acostumado com seus ataques, nunca o deixou sozinho e não seria dessa vez que o faria. Adiou a rodada de truco que havia combinado com os parceiros e foi fazer companhia ao amigo. Quando chegou ao quarto encontrou Carlos, sentado na beira da cama com os cotovelos nas pernas e as duas mãos sob o queixo. Nessas ocasiões a prudência recomenda muita cautela.

            — E aí, Carlinhos? Tudo bem? A comida estava jóia, tu perdeste.

            — Faço idéia, eu quero é ir embora desta merda! Aqui eu não durmo!

            — Não leva a mal Carlos, estou exausto, disse Hila.           Enrolou-se em sua capa de nylon, deitou-se, virou de lado e roncou. A indignação de Carlos aumentou ainda mais e conjeturou?

            — O Rey está certo, é coroa, passou por momentos piores, foi obrigado a comer capim com pólvora na Ilha Grande como preso político, deve estar acostumado. Agora, e esse outro? Nessa idade não tem princípios nem escrúpulos, deitou-se nessa imundície e ainda ronca. Não pode. – revoltado, cutucou o Hila:

            — Acorda, acorda! Vamos comigo ao sanitário!

            Ainda meio que dormindo, Hila falou:

            — É uma boa, o sarapatel já está fazendo efeito.

            O sanitário era do lado de fora, no quintal, numa casinha de madeira. Já conheciam o rumo, pois ao chegar, ainda claro, a dona lhes mostrou de longe. Era noite, um verdadeiro breu. Via-se naquela direção o bruxulear da luz de uma lamparina que iluminava a casinha. Naquela escuridão, Carlos pisa no rabo de um vira-lata que dormia no caminho. O bicho deu um ganido tão alto que deve ter acordado todos que dormiam. Quase dispensaram o uso da casinha. Por pouco a encomenda não ficou ali mesmo. Tateando com mais cuidado conseguiram chegar até lá. Hila empurrou a porta, a cena era cópia fiel do Mundo Cão. Baratas em todos os cantos, um quadrado de madeira com um buraco no meio, elevava-se do chão a uns 30 centímetros. Novamente Carlos embirrou.

            — Não dá! Aqui não vai dar!

            Hila desabotoando a calça avisou:

            — Então sai da frente.

            Em seguida ouviu-se um ruído como se fossem duas mãos em forma de conchas, batendo palmas. Era o sarapatel atingindo o fundo da cloaca.

            Finalmente amanheceu. A noite para o Carlos havia sido um suplício e além de tudo chovera torrencialmente. Rey insistia em dirigir. Carlos, o comandante, estava de saco cheio de tudo o que tinha acontecido, sua auto-estima em frangalhos e seu humor exaurido, disse:

            — Quer saber de uma coisa? Pois bem, toma a chave do carro e faz o que você quiser!

            Sentou-se no meio e começou mais uma etapa da viagem. As vidas nas mãos do Rey e as almas entregues a Deus ou ao diabo. vai ele todo faceiro de 2ª marcha. Carlos olhava para o Hila e balançava a cabeça negativamente. Não se conteve.

            — Não vai passar a terceira marcha desta merda?

            — Ih! Tem que passar? Não estamos muito devagar?

            — Claro! A segunda marcha só vai até aí, 40 por hora – falou Carlos.

            Passada a terceira marcha, o homem se entusiasmou e mandou o sapato até atingir 80. Lembrava o velho Chico Landi. Dormindo. Eis que, numa subida leve, próximo a uma lombada, fincada em um pau, uma placa numa folha de alumínio, de uns 60 x 60 cm, fundo branco, escrito em vermelho: “Cuidado Perigo!”. Hila, que evitava conversar com Rey, em se tratando da segurança de todos, leu o aviso em voz alta. Nosso arrojado piloto, se sentindo senhor da situação e como se tivesse domínio absoluto sobre a máquina, deu um sorriso matreiro e não aliviou o do acelerador. No topo da lombada, quando o carro estava embicado na descida, a estrada acabou, literalmente. A porrada foi tão violenta, que todos bateram ao mesmo tempo, com a cabeça no teto, as quatro calotas voaram longe, ribanceira abaixo. Imediatamente, com a mão esquerda, Carlos tomou a direção de nosso incauto motorista e berrou:

            — Não pisa no freio desta merda!

            O carro foi descendo naquele mingau até parar, graças a perícia do Carlos, no leito, do que no futuro seria a estrada. Os três se entreolharam. A imagem do Rey era cômica. A aba do boné que era azul marinho surrado agora estava cor de burro quando foge, devido à poeira que caiu na hora do impacto da cabeça contra o teto, virada para o lado esquerdo. Os óculos de grau completamente tortos, apoiados na ponta do nariz. A dentadura que voara longe foi de encontro ao pára-brisas, estilhaçando-se. No colo do Carlos, um pedaço da dentadura, do canino ao siso, lhe sorria.

            — Tira essa imundice de cima de mim! – gritou Carlos impaciente.

            Hila não se conteve e riu baixinho.

            Agora, desce e vai buscar as quatro calotas! – Carlos ordenou ao Rey.

            O homem ainda pálido não sabia se atendia à ordem do Carlos ou de sua cólica.

            Naquele trecho, estavam levantando o leito da estrada com piçarra, para preparar o macadame e, com as chuvas da véspera, o trecho parecia uma cobertura de chocolate. Rey, muito magrinho, arregaçou as bainhas da calça e, com todo o cuidado, foi pisando com seus sapatos de verniz naquele saibro para verificar sua densidade. Aos poucos os sapatos foram desaparecendo e o barro alcançou a metade de sua meia branca de cano longo. Olhou com um olhar de súplica para o Carlos e recebeu de volta um berro:

            — Ainda não foi?

            O que se viu a seguir dava para rir e chorar. O gauchão, ferido nos seus brios, saiu pisando duro sem cerimônia, naquele imenso lodaçal. Não foi muito longe porque levou o primeiro tombo.

            Hila e Carlos, dentro do carro, sequinhos, com os pés limpinhos, já com a adrenalina no seu devido lugar, assistiam à cena de camarote. Notava-se no semblante do Carlos um misto de ira e de glória, como se conjeturasse:

            — Tá vendo, seu idiota! Carro não é para qualquer um e é um risco nas mãos de imperitos e imprudentes.

            Na verdade, torna-se uma verdadeira máquina de matar. Não fossem os livros estarem muito bem acondicionados em caixas prensadas a servir de lastro para a Kombi, certamente esta história não estaria sendo contada, muito menos com essa pitada de humor.

            Na cabeça do Hila, o conciliador, do tipo que não liga para nada, penalizado, vendo o Rey naquela situação, arriscou:

            — Carlos, vou ajudar o velho!

            — Não faça isso, deixa ele se virar. Ele não é piloto? Então que se dane!

            Hila, na sua maneira de resolver as coisas a seu modo, calmamente tirou seu sapato cinza sem meia, de couro cru, feito sob medida no Motinha, tirou a blusa e a calça e ficou de cueca, apenas para demonstrar solidariedade com o coroa. Barreou somente os pés e não saiu do lado da Kombi, agarrado à porta. Felizmente, não havia platéia. Ali, não passava ninguém. Finalmente, chegou o Rey de forma triunfal trazendo as quatro calotas nas mãos e mostrando ao Carlos:

            — Ufa! Não foi fácil!

            — Agora, vê se coloca no lugar! Falou o Carlos com toda autoridade.

            Nessas alturas, Hila, que já estava com os pés na lama, fez uma média com o Rey, ajudando-o a colocar as calotas em seus respectivos lugares.

            Na vida nada é definitivo.

            Eis que surge um colono. Chapéu de palha, calça arregaçada, apoiado em um cajado e com o tradicional cigarrinho de palha no canto da boca, demonstrando intimidade em andar na lama, de mansinho, meio ressabiado, perguntou:

            — Os moço tão percisano di ajuda?

            O líder enlameado, vislumbrando uma saída honrosa para aquela situação que ele mesmo criou, em tom de súplica, falou:

            — Estamos sim moço, faça alguma coisa por nós, que Deus há de lhe ajudar! – Aí o grande materialista esqueceu-se do seu Epicuro.

            — Moço, eu agradeço a ajuda de Deus, eu tenho três junta de boi, que tira vosmices dessa enrascada, mas o preço é tanto.

            Era uma quantia soberba. O homem, que era usurário, quase caiu de vez na lama.

            — Dou a metade.

            — Eu completo o resto! – gritou o perdulário Hila.

            Chovia. Rey e Hila aproveitaram para tirar o excesso da lama que se impregnara em seus corpos.

            Decorrida mais de uma hora, chega o matuto com três belas juntas de bois zebus. Para eles, foi um serviço leve, principalmente debaixo da chuva que lhes dava uma refrescada no lombo. Em poucos minutos, estavam novamente em terra firme. Feito o pagamento ao homem dos bois, despediram-se. Carlos, irônico, perguntou ao Rey:

            — Vai dirigir?

            — Não, não, chega!

            Hila suspirou aliviado. Carlos assumiu o comando e partiram tranqüilos, porém exaustos. O susto e a tensão deixaram os três extenuados.

            O sol do sertão, deitando a oeste, tingia o céu de vermelho. Parecia que o firmamento estava incandescente. Por entre nuvens, os raios do sol faziam lembrar a estrela flamígera, que adorna o altar dos maçons.

            Tudo na viagem acontece de repente e, desta vez não foi diferente. Um barulho estranho no motor da Kombi e, no painel, acendeu-se imediatamente a luz de espia do dínamo. Carlos, atento, desligou a chave e, no embalo, parou no estreito acostamento de terra. Levantou a tampa do motor. Bronca feia. A polia do gerador, degolada. Impossível prosseguir. A pequena claridade do lusco-fusco, havia desaparecido e era noite. Todos tensos e apreensivos. Contavam estórias de pequenos assaltos a pessoas naquela situação. Estávamos indefesos e à mercê da própria sorte. Consertar o motor? Sem chance, pois a única chave existente era a de ignição. restava esperar. Nada é definitivo. O local era sinistro e a escuridão da noite era tão grande que estar de olhos fechados ou abertos não fazia diferença. Rey palpitou:

            — Se fosse o carro que eu escolhi, não estaríamos aqui parados!

            — Provavelmente estaríamos parados ainda, no Rio de Janeiro — respondeu Carlos furioso.

            Aquela situação o deixava impaciente. Todos envoltos em seus pensamentos, naquela situação desconfortável, espremidos entre livros num carro enguiçado num lugar perigoso. Ouviram ao longe um tropel de cavaleiros se aproximando. Todos temerosos. Passaram ao largo algumas vozes sussurradas e voltou o silêncio. Era medonho. O trânsito naquele trecho não existia. Tudo totalmente parado parecia mostrar que a situação era de alto risco. Eis que surge uma luz ao longe e vem na direção da Kombi. Aproximou-se, diminuiu a marcha. De dentro do carro, na outra mão de direção, alguém gritou:

            — Precisam de ajuda?

            — Sim, estamos enguiçados.

            Manobrou e parou na traseira da Kombi, de maneira que seu farol iluminava o motor e os três passageiros.

            Desceu de um fusca, um cidadão atarracado, de bigode vasto e revólver em punho.

            — Estão indo para onde?

            — Itabuna.

            — Vocês mexem com quê?

            — Livros científicos.

            — O que houve com o carro?

            — A polia do dínamo degolou.

            O homem levantou a tampa do motor e, com a luz que vinha do farol de seu carro, verificou que realmente os três falavam a verdade. Então, o homem despreveniu-se. Guardou o revólver no coldre e falou:

            — Hoje é o dia de sorte de vocês. Desculpem-me ter descido armado. Esta região é muito perigosa. Sou viajante de peças e por acaso tenho a peça que necessitam.

            A sensação naquele momento foi de alívio. O próprio homem trocou as peças, a correia, ajustou as arruelas e apertou a polia.

            — Dá a partida. Acelera.

            Beleza, a lâmpada do painel apagou. Na hora de pagar a conta, o homem não quis receber.

            — Não, de maneira nenhuma, estou direto na estrada e acho que esse é dever de cada um. Uns ajudando os outros. Assim a vida será mais amena. Só peço que rezem por mim para que no dia em que eu precisar não me falte ajuda.

            Os três ficaram constrangidos e quase carregaram o bom homem no colo. Esse sentimento de solidariedade parece próprio dos peregrinos e viajantes que fazem da sua vida, uma busca constante pelo novo, pelo inusitado. O novo não lhes assusta, pelo contrário, inebria-os. Após a troca de cartões de visitas e feitas as despedidas, na estrada.

Devido ao adiantado da hora, todos imbuídos do espírito de poupar o dinheiro, apesar das boas previsões, decidiram dormir dentro do carro. Após encontrar lugar seguro, na área de recuo de um posto de abastecimento, Carlos manobrou e colocou o carro sob uma frondosa árvore. Desceram, esticaram as pernas, esvaziaram as bexigas, se espreguiçaram como se fossem deitar em uma confortável cama.

            Aí caíram na real. havia o banco da frente disponível. Carlos e Hila, em respeito ao Rey que era o decano, decidiram que ele dormiria no banco da frente.

            — E nós, Carlos? – Sussurrou o Hila.

            — Vai ser difícil. Com esta quantidade de livros!

            — Peraí que dou um jeito.

            Metendo a mão no bolso, Hila dirigiu-se à birosca do posto de gasolina. Um candeeiro aceso e dois dorminhocos, o frentista, no balcão, e um gato malhado de cinza, numa caixa de óleo vazia. Entre as teias de aranhas, garrafas com os rótulos corroídos, Hila distinguiu um de conhaque Dreher. Passou a mão na garrafa, limpou as teias, pediu uma lata de sardinha, um pouco de farinha e dois copos emprestados. Carlos e sua indagação peculiar:

            — Que é que é isso meu amigo? Tá doido?

            — É o jeito, Carlinhos, de mais a mais, êta madrugada fria!

            — É – concordou – já estamos fritos, então vamos nessa.  

            Com a sutileza de um mestre de cerimônias, Hila serviu-o. Com a tradicional chavinha, abriu a lata de sardinha. Com o papel de açougue da farinha fez um prato, derrubou um punhado de farinha, entornou a sardinha em cima com todo aquele óleo frio que vem embalando as pobrezinhas e com a mão amassou até dar consistência de massa. Limpou a mão na flanela do carro e ofereceu ao Carlos:

            Essecapitão” tá no capricho! – serviu uma dose que meiou o copo de zona. Com a esquerda apertou a massa nas pontas dos dedos, arredondou e comentou:

            faltou a cebola – jogou o Dreher na garganta e rebateu com o “capitão” — Que delícia!

            Carlos torceu o nariz, mas estava sem opção. Que fazer? Tomar conhaque puro de barriga vazia não dá.

            — Ô Hila, você sabe que essecapitãome deu até água na boca. Prepara um pra mim!

            Pra Carlinhos. Na guerra, urubu é frango! Na falta da anchova, vai a nossa de sempre.

            Enquanto Rey roncava no banco dianteiro, os dois sorviam o Dreher às chapuletadas. Aí a viagem ficou interessante, os problemas se acabaram, as saudades se dissiparam e os projetos se tornaram os mais mirabolantes, muito comum na euforia inicial do efeito etílico.

            — Carlos, se eu me der bem lá, monto uma editora!

            — Eh, rapaz, nós vamos ficar ricos!

            As horas foram passando, o assunto acabando e os olhos fechando.

            — Amigo a hora é essa. Já vimos o fundo do litro, não tem mais nada – Hila entrou por cima dos livros ficando quase com o nariz esbarrando no teto. Carlos fez uma arrumação nas caixas e dormiu meio sentado, meio deitado. Após um litro de conhaque pareciam num hotel de luxo.

            Acordaram, moídos, com Rey lavando sua perereca substituta com um copo d’água na mão e toalhinha no ombro.

            — Vamos moçada! Tá na hora!

            Carlos e Hila quiseram morrer. Não fazia muito tempo que pegaram no sono. Se alguém falasse em sardinha, levaria um tiro. No banheiro do posto, lavaram a cara escovaram os dentes em profundo silêncio. Hila olhou no pedaço de espelho à sua frente. Entranhados em seu bigode, alguns grãos de farinha fizeram-no lembrar a noite anterior. Quase volta tudo.

            — Me dá um refrigerante!

            — Dois!

            Beberam, pagaram e saíram.

Embarcaram, o Rey no meio, Carlos na direção e Hila de co-piloto. silêncio. Ressabiados, os dois não se aventuravam a abrir a boca. O refrigerante foi chacoalhando dentro e parece que a sardinha resolveu nadar. Na primeira tossida do Carlos, Hila do outro lado, soltou a bichinha com todo o acompanhamento. Aí então se formaram dois repuxos, um de cada lado. Rey, que não participara da noitada e nada vira, resmungou:

            — O que vocês arrumaram?

            — Coincidência, uma pequena indisposição. Deve ter sido o refrigerante lá do posto.

            Daquele dia em diante, os dois sentem-se mareados até quando vêem anúncio de sardinhas.

            Finalmente chegaram a Itabuna, cidade que disputa a hegemonia da região com São Jorge dos Ilhéus, conhecida hoje somente como Ilhéus. Uma cidade mais confortável, onde poderiam descansar, usufruir das comidas do Hotel da Odete, parada obrigatória. A todos os transeuntes que pediram indicação do melhor hotel, Odete era uma unanimidade. De fato, a hospitalidade daquela senhora ecoa até hoje na consciência daqueles três viajantes que guardam boas lembranças de Itabuna, em que pese a efêmera estada.

            Recepcionados pela proprietária, apelidada “Mãe dos Viajantes”, estava aquela figura singular com seu vestido de chita estampado, de saia rodada, mangas curtas bufantes, franzidas de elástico com fitas vermelhas de passamanaria, que cobriam o corpo roliço de uma mulher moça, mas com as faces sulcadas pelas rugas que denunciavam a vida dura que levava. Seu semblante tranqüilo e sua fala mansa colocaram os viajantes em casa. Na porta do hotel, uma grande poça d’água estagnada, verde de líquens e de cheiro fétido insuportável dava as boas vindas aos visitantes. Infelizmente, os homens públicos, ávidos pelo poder e pelo dinheiro para si , desprezam os anseios das comunidades e a condição de estarem de passagem pelas prefeituras, construindo a história de uma cidade e, por extensão, a de um país, e deixam aquela podridão diante, talvez, do local mais visitado da cidade. É muita falta de sensibilidade, para dizer o mínimo. Passaram-se mais de 30 anos e aqueles viajantes não se esqueceram desse detalhe.

            Acomodaram-se em um quarto na parte de cima, Hila e Carlos, como sempre, juntos. Rey em outro, contíguo, e devido às suas encrencas intestinais, pediu uma coisinha leve como purê de batatas e um bife grelhado. Hila e Carlos, mortos de fome, pois haviam posto tudo para fora durante a viagem, caíram matando:

            — Duas pingas, uma cerveja, galinha a cabidela, caruru e dois acarajés quentes – Carlos se afogou no caruru e pediu bis.

            — Isso é que é comida! Até que enfim acertamos!

            Naquela refeição, já se fez sentir a presença do azeite de dendê, muito saboroso, mas também perigoso para quem não tem intimidade com ele.

            Após o almoço continuaram os pedidos de cerveja para amenizar o calor que era muito intenso. A tarde passou, caiu a noite e os dois glutões continuavam enchendo a cara, tanto que nem jantaram, provocando certa ira no Rey. Despeitado pela saúde dos dois, passava de vez em quando em frente à mesa e rosnava.

            Hila e Carlos eram companheiros de farra e nunca se sentavam por menos de 12 horas nos botecos. Ali rolavam os assuntos mais diversos e projetos mais estapafúrdios do mundo. Comprar um barco a vela da classe oceânica e morar dentro dele. A convicção era tão grande que por pouco não foram para a telefônica fazer a encomenda. Mas o tempo, mestre do mundo, aquele que põe tudo em seus devidos lugares, foi passando e deixando os dois heróis, D. Quixote e Sacho Pança, extenuados e combalidos. Caíram na cama e desmoronaram. Dormiram como justos. Morfeu os acompanhou em suas viagens oníricas. Até onde terão ido?

            No silêncio da madrugada, Hila levantou-se para aliviar a bexiga, na pia do quarto, tradicional mictório de viajantes preguiçosos. Raros eram os hotéis que possuíam banheiros completos dentro dos quartos e a explosão dos motéis ainda estava por vir. Ouviram-se ruídos vindos da barriga do Carlos, ruídos estranhos como se suas vísceras estivessem travando um tremendo combate entre si ou como se alguma tempestade estivesse ocorrendo dentro de suas entranhas. Hila pensou:

            — Ih! O azeite de dendê está começando a fazer efeito!

            Antes do Hila pegar no sono, novamente, de um pulo, Carlos alcançou a porta do quarto e foi direto para o sanitário. Fez uma espécie de ligação direta, com sua boca superior na pia e com a boca inferior no vaso sanitário. Despejou tudo que havia consumido durante o dia. O mau cheiro empestiou todo o andar do hotel. Hila preferiu os pernilongos e escancarou as janelas do quarto. Travou-se uma batalha de maus cheiros, o do sanitário e o da água empoçada na vala imunda, logo abaixo das janelas. Carlos voltou desfigurado, muito pálido e gemendo muito. Hila foi até uma farmácia de plantão voltou com aqueles tradicionais Elixir Paregórico, Eparema e Bicarbonato. Se não sarasse teria que ser internado.

            Humor nunca foi o forte do Carlos, nessa situação, então, nem é bom pensar. Hila pisava em ovos para não provocar o companheiro. Numa das idas à pia para urinar, tomou um esporro:

            — Não estás vendo que isso aí é para lavar o rosto e não para urinar? Onde está tua higiene?

            — Calma, Carlos, os engenheiros projetaram esta pia, já pensando em quebrar o galho dos viajantes. Podes ver que a altura está fora das normas da ABNT, ela está um pouco mais baixa, exatamente para não sacrificar e nem discriminar os baixinhos. Tem muita gente boa que usa esse recurso como, por exemplo, o Stanislaw Ponte Preta, o homem das “certinhas”. E ele não é pé-duro, é gente fina da alta. Mas não seja por isso, a próxima mijada vai ser pela janela.

Virou-se para o lado e dormiu. Aí, começou o cano da dita pia a gargarejar. Nunca se viu isso. Parecia propaganda do Anapion. Não parava um minuto. Hila pensou:

            — Era uma vez uma pia – e não deu outra.

            Carlos levantou-se transtornado, passou a mão no cano de chumbo do escoamento e o arrancou da parede. Sobrou reboco, areia e cal pelo quarto inteiro e o pior é que o gargarejo continuou.

            Carlos, encolhido na cama, parecia uma fera acuada pronta para dar o bote. Hila pensou na hora em que a proprietária visse o estado do quarto. Apressou-se em descer e falar para não incomodar, pois o Carlos iria dormir até mais tarde. Tomou o seu café e falou com o Rey:

            — O Carlos precisa de você lá em cima.

            Foi até a Estação Rodoviária pegou um coletivo para São Jorge dos Ilhéus e foi visitar uns parentes, deixando o problema para trás. Quando o Rey entrou no quarto e viu aquela bagunça, entrou em parafuso. O homem era muito certinho.

            — O que aconteceu por aqui?

            Quase que levou uma dentada do Carlos, que por fim respondeu entre dentes:

            — Um acidente. Tropecei na cama e quebrei a pia. Pode deixar que eu pago esta merda.

            Rey podia ser tudo, menos burro. Antes que levasse um coice, encerrou o assunto e desceu pisando duro.

            Hila voltou à noite com a notícia de que seu primo havia sido assassinado a pauladas em Ilhéus. Se por esse lado as coisas não eram boas, pelo menos Carlos havia se recuperado após a aplicação dos antídotos de dona Odete e agora estava com o semblante mais sereno. Hila, amedrontado com a situação em Ilhéus, confabulou com Carlos:

            — Vou chegar àquela cidade e os assassinos pensarão que vim para vingar a morte de meu primo, devo me resguardar e precaver-me. Vou comprar um revólver!

            Carlos, cético, ponderou:

            — Que é isso rapaz? Comprar revólver? Tu não és nenhum pistoleiro. Vais ficar andando armado com a gente? Isso é crime. Não faz isso.

            — Não, Carlinhos, tenho que zelar pela minha integridade física e a de vocês, porque certamente eles vão pensar que tu e o Rey fazem parte da minha gangue.

            — Então faz o que tu quiseres. Não enche o saco. Esse troço vai ser uma dor de cabeça a mais, ouve o que estou te dizendo.

            — Deixa comigo.

            Hila sabia como chegar aos contraventores. Comprou um Smith & Weson, calibre 32, lindão, e uma carga de munição.

            — Agora tô berrado, qualquer coisa, meto fogo!

            Carlos meneava a cabeça negativamente.

            — Tu és doido.

            Rey nem sonhava.

Na manhã seguinte, após o café, despediram-se de dona Odete e foram para São Jorge dos Ilhéus. Próximo ao cais, hospedaram-se no Hotel D. Pedro II. Um belo sobrado de dois andares com as tradicionais escadarias de madeira e ferro, onde se sentia a pujança dos tempos em que o cacau daquela região abastecia o mundo, trazendo riqueza e fazendo a fortuna dos fazendeiros daquela região. O casario bem demonstrava o que foi aquela cidade no passado. Hoje, com a queda do preço do produto no mercado internacional e devido a uma praga chamada vassoura de bruxa, São Jorge dos Ilhéus sobrevive com grandes dificuldades. Vale ressaltar a grandeza do seu povo simples e hospitaleiro. Como não poderia ser diferente, sentia-se no ar um clima de magia e mistério próprio da Bahia. Em suas incursões pelas madrugadas com os passos claudicantes de cerveja e pinga, Carlos e Hila, inebriados, totalmente envolvidos pelo ambiente, pareciam ouvir gemidos de negros e mucamas como se fossem uns lamentos vindo do âmago daquelas senzalas hoje desativadas, mas ainda latentes naquele lugar.             A imaginação voou longe e os romances de Jorge Amado com personagens vividos ali a excitaram ainda mais. Naquela época, o sucesso das oito horas da noite, era a novela da Globo, Gabriela Cravo e Canela, com Sônia Braga fazendo o maior sucesso. A novela retratava o romance de uma mulata por um turco. Tão bem escrito por Jorge Amado, exatamente naquela cidade. Podia-se trilhar o roteiro de toda a estória, visitando lugares e conhecendo personagens ainda vivos. Não se podia comentar, pois os amantes protagonistas do romance, ainda moradores dali, tornaram-se inimigos figadais.

            Rey pediu ao Hila sua malinha 007 que estava dentro da Kombi. Hila pegou a malinha pela alça e conseguiu chegar até o hall do hotel. Ali, como se de propósito, a caprichosa maletinha um verdadeiro repositório, arreganhou-se toda, deixando cair uma farmácia inteira no chão. Havia de tudo, supositório para hemorróidas, Tagamet, Carbo Levedo, mas o pior foram os comprimidos da flora, a granel. Cada um escolheu uma direção para rolar. Os rapazes da recepção, para mostrar solicitude, atiraram-se de joelhos no chão e, na ânsia de catar os comprimidos fugitivos, foram trombando uns nos outros, criando ali uma cena de filme pastelão. Um curumim rasgou as calças de popa à proa, exibindo sua genitália de bico de chaleira.

            — Não, não foi nada – e às pressas saiu de cena.

            O Hila, com cara de abestalhado, não sabia o que fazer, olhando na cara do Rey, com a pasta vazia pendente na sua mão.

            — Desculpe, desculpe, a culpa não é minha, esse fecho deve estar enguiçado!

            Rey bufava. Por pouco não teve uma síncope cardíaca. Quem olhasse naquela hora na cara do Carlos não se conteria. Foi exatamente o que ocorreu quando o olhar do Hila encontrou-se com o do Carlos. Houve o que se chamava antigamente um frouxo de risos. Dali em diante o Rey não pediu mais nada ao Hila. Quem sofreu foram os degraus da escada de madeira sob o forte impacto do salto do sapato do Rey que se fez ecoar pelo salão de refeições e por todo o hotel.

            Carlos e Hila eram conjurados, coniventes, amadrinhados e debochados. Eram jovens e queriam viver. Viver intensamente a suas maneiras. Entreolharam-se:

            — Ao Vesúvio!

            Aliás, quando ainda no Rio de Janeiro traçaram o roteiro da viagem, estabelecendo uma estada em São Jorge dos Ilhéus, na cabeça dos dois jovens mancebos não passou outra coisa senão sentar-se no Vesúvio com uma cerveja gelada e apreciar os tira-gostos do Nacib. E agora, finalmente, estavam os dois ali, extasiados, diante do templo do prazer consagrado a Baco, uma meta estabelecida que acabara de ser atingida. Decoração aconchegante, com cadeiras de vime na calçada, propiciava um clima exótico e muito romântico.

Com a sofreguidão e o carinho do amante que deflora sua amada, sorveram o primeiro copo. Quibes fritos de ótima qualidade serviam de tira-gosto. Vestido de chitão estampado, saias rodadas, decotes generosos, mostrando lascivamente os seios, entraram duas lindas morenas, representantes mais autênticas da raça que embeleza aquela região. Miscigenação perfeita. Cabelos anelados, olhos de gato e dentes alvos. Pernas torneadas como se com a ajuda milimétrica de um paquímetro. O vestido de fazenda lhes caía sobre as ancas, exibindo seus exuberantes contornos curvilíneos. Sorriso brejeiro, aquelas morenas eram a imagem da tentação e do desejo. Carlos e Hila entreolharam-se como se lobos fossem diante daquelas indefesas ovelhas. Lamberam os beiços, esfregaram as mãos uma na outra e deixaram que a imaginação navegasse pelo infinito afora. As duas perceberam que haviam agradado e, então, exageraram nos trejeitos, rebolados e na concordância verbal. Hila não se conteve:

            — Por favor, as senhoritas moram aqui?

            — Sim, moramos!

            — Não gostariam de nos fazer companhia? Somos viajantes não conhecemos nada por aqui. Gostaríamos que nos mostrassem a cidade. Não querem se sentar conosco?

            Com toda a simpatia as moças aquiesceram ao convite.

            — Como se chamam?

            — Rosa e Camélia.

            — Não poderia ser diferente, duas lindas flores de tão suave perfume, chegaram para enfeitar nossos jardins — romanceou o Hila.

            Mais cerveja e quibes fritos. A conversa foi-se tornando picante e adentrando pela noite. À medida que o efeito das cervejas aumentava, tanto nas idas ao banheiro, quanto na liberação da libido, o assunto se tornava mais excitante. As morenas, de maneira velada, com seus trejeitos sensuais, deixavam aparecer os lindos bicos, da cor do chocolate, dos seios carnudos. Eram duas verdadeiras esculturas em mogno. Naquela altura, mãos e pernas se roçavam sem o menor receio do olhar indiscreto dos outros freqüentadores do bar. Não restava mais nada a conversar. O assunto teria que se encerrar da forma tradicional, selado com uma boa trepada na areia da praia, em frente à igreja, contando com a proteção de Deus que abençoa os amantes inocentes.

            Os dois comparsas não precisavam trocar palavras, como se fossem dois mestres no jogo de pôquer, apenas um olhar e sabiam exatamente qual seria o próximo passo. Contavam com a conivência das parceiras que deveriam estar molhadinhas e prontas para o coito. A madrugada ainda era uma criança. Pagaram a conta e saíram os quatro, abraçados, levando consigo a irresponsabilidade natural daqueles ávidos pela volúpia dos prazeres da carne. Passaram pela praça em frente à igreja, tiraram os sapatos, desceram na areia. Aninharam-se próximo à arrebentação, mantendo uma distância conveniente entre os dois casais para que as moças mantivessem seus recatos. A lua furtiva espreitava por detrás das nuvens como se fosse um voyeur.

            Displicentemente as duas tiraram os vestidos, demonstrando desenvoltura e prática. Com os pés, afastando a areia para os lados, fizeram uma forma côncava para o corpo deixando a parte mais alta para travesseiro. Cuidadosamente forraram o chão com seus vestidos. Diante de todo aquele ritual os dois varões, alucinados, tiraram o restante da roupa, amontoaram ao lado de cada um e, ávidos pelo prazer, deitaram-se sobre aquelas deliciosas fêmeas que exalavam cheiro de carne, sexo e desejo.

            Beijos, juras de amor, galanteios, gemidos, sussurros, penetrações sucessivas e, finalmente, o orgasmo de ambos os casais. Parece que a palavra coitado vem de coito, pois os dois eram verdadeiros coitados esparramados na areia. A forração com o vestido, pouco adiantara, os quatro estavam cobertos de areia. Pelados, correram para a água morna naquela madrugada fresca. Sem qualquer cuidado com os cabelos, as moças pularam de cabeça e a lua, envergonhada, iluminou aquelas bundas rígidas, maravilhosas, afundando e emergindo num movimento natatório semelhante ao dos golfinhos.

            Os cavalheiros passavam as mãos nos corpos das fêmeas, sob pretexto de tirar-lhes a areia, e assim foi que, novamente, dentro d’água, entregaram-se aos insuperáveis prazeres do sexo. Com as pernas trançadas em volta da cintura dos machos, as fêmeas fogosas repetiam o movimento de uma gangorra, no início, acelerado, deixando-se penetrar até o âmago de seu aparelho reprodutor, numa profunda volúpia de prazer, até atingir o clímax.

            Exaustas, jogaram-se para trás, amparadas pelos braços dos companheiros, de forma que seus cabelos flutuavam à tona. Silêncio absoluto. Nenhuma palavra. Somente gestos lentos. Aos poucos foram saindo de dentro d’água. Deixaram-se secar ao vento. Colocaram as roupas e com os sapatos nas mãos dirigiram-se rumo à calçada. A trajetória foi interrompida pela silhueta de dois mulatos altos vindos na direção deles. Os quatro estancaram para ver o que iria acontecer. Ao se aproximarem, as mulheres procuraram proteção atrás do Hila e do Carlos.

            — Essa mulhé que tá contigo é minha – falou um dos mulatos apontando para o Hila.

            Hila era um diplomata, mas em situações iguais àquelas se transtornava e virava o demônio.

            — Tua uma merda! Ela pode ser tua outra hora. Agora ela está comigo, é minha e ninguém põe a mão.

            O cara deu um passo para trás e sacou de debaixo da camisa o que eles chamam de peixeira, disciplina ou lambedeira, de aproximadamente um palmo de lâmina.

Hila, acostumado com as manhas do futebol de praia, enfiou a ponta do direito na areia e jogou-a no rosto do meliante. Quando o outro quis reagir, o Hila estava de revólver em punho, que portava no cós da calça, aproveitando a regueira da bunda para não fazer volume e para que ninguém percebesse.

            — Joga a merda dessa faca no chão e ponham as mãos na cabeça! Carlinhos, revista esses filhos da puta.

            Carlos pegou a faca e encontrou somente um canivete no bolso do outro assecla. Para não perder a viagem, deu-lhe uma banda e o malandro se estatelou na areia.

            — Agora é pra correr. Sumam daqui, sem olhar para trás.

            Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Os dois bateram em retirada.

            Depois daquele exaustivo exercício sexual, a adrenalina do susto serviu para repor as energias. Pegaram a Kombi que estava estacionada em frente ao Vesúvio, entraram os quatro na frente e, enquanto as mulheres matraqueavam, os dois conjeturaram sobre aquela aventura. vem a maldita ressaca moral. O arrependimento.

            — Se pegarmos uma gonorréia, corro o risco de levar doença venérea para minha casa! – meditava o Carlos.

            Hila, com o mesmo receio, lembrou-se do Benzetacil de 1.200 mil unidades. Ainda um pouco ofegante, ruminava o ódio daqueles dois temerários que tentaram interromper seu idílio. Com a autoridade de um xerife, entrou na conversa das duas:

            — Os caras são cafetões de vocês? Recomendem para que respeitem homem, senão a qualquer hora, vão amanhecer com a boca cheia de formigas.

            — Nada! Cafetão porra nenhuma. Me comeu uma vez, agora acha que é meu dono.

            Vira à direita, dobra à esquerda e naquele portão verde, único acesso a uma modesta moradia de quatro cômodos, sem reboco, dependurada numa pirambeira:

            — É aqui que moramos!

            Deixaram as moças, deram-lhes uns trocados e beijinhos de despedidas. Uma tremenda sensação de alívio tomou conta dos dois, como se tivessem puxado a cordinha da descarga após uma boa defecada. Entre risos e temores foram os dois na alta madrugada, procurando o Hotel D. Pedro para um merecido descanso. Lá chegando, entraram de mansinho e dormiram como justos. Na manhã seguinte, foram despertados pelo Rey, o homem que colocava os irresponsáveis e românticos boêmios no trilho. Com um misto de ciúme e desconfiança tentava repreender os dois:

            — Vocês não tem juízo nem responsabilidade!

            — Temos sim. Não deixamos as mulheres na rua. Deixamos as duas em suas casas. Fomos até muito cavalheiros — disse o Carlos.

            — Além do mais, salvamos duas inocentes senhoritas de serem estupradas por dois marginais — emendou o Hila.

            — É mesmo? – quis saber o Rey.

            Isso mesmo. Não fôssemos nós, certamente a foto das duas estaria estampada na primeira página do jornal — concluiu o Carlos, após matar a curiosidade do velho descrevendo o acontecido com floreados e exageros.

            A vida não é só farra e prazeres. Tem que se ganhar o pão. Dia de branco, foram os três cumprir seu ofício. Somente Carlos se saía bem. Entrou no grupo escolar. Pediu licença, parou a aula e caprichou na apresentação daquela coleção infantil. A única coisa que ela possuía de interessante e que chamava a atenção, eram as ilustrações feitas com esmero, num colorido vivo, em papel de primeira qualidade e encadernação perfeita, resultando numa bela obra. Formato 60x40 cm, de capa dura, uma beleza, com o “detalhe” da péssima História dos Descobrimentos.

            A garotada ficou louca. Foi necessária a intervenção da mestra, pedindo silêncio. Carlos, então, organizou uma fila, pediu licença à professora, sentou-se à sua mesa e numa lauda de papel almaço, foi anotando o nome e o endereço dos interessados. Hila assistia àquela aula de vendas com um misto de timidez e vergonha.

À noite, após o jantar, naquele horário em que toda a família está reunida, começou a peregrinação do Carlos de casa em casa. Em cada uma na qual o deixavam entrar, uma nova repetição daquele teatro que havia representado nas salas de aula. Podia ser o pai de coração mais empedernido que fosse não resistia à estratégia do Carlos e presenteava o filho com uma coleção. Desta forma, o volume de dinheiro foi aumentando assustadoramente. Rey sorria de orelha a orelha, enquanto Hila ajudava o Carlos a organizar os pacotes, acondicionando-os em uma pasta dita 007. Com isso, o peso da Kombi foi sendo aliviado. Assim foi que das coleções que levavam, restaram muito poucas para serem vendidas em Salvador. Com a sensação do dever cumprido, Carlos e Hila saíram do hotel passeando de carro. Aproveitando um lugar ermo por onde passavam, Hila sugeriu:

            — Vamos exercitar nossa pontaria?

            — Olha, isso é perigoso, se algum policial nos pega vai dar um bode danado!

            — Que nada, aqui não tem ninguém.

            — Então vamos — concordou o Carlos, para não ser desmancha prazeres.

            Pegaram um coco seco, colocaram sobre um pau fincado no chão e tomaram posição de tiro. Primeiro Hila. Fez pose, puxou o cão para trás e mandou fogo. Tec, tec, tec, tec, tec, nenhum tiro disparado. Todos negados. O revólver que o Hila havia comprado e que os tinha salvo do achaque dos marginais na praia, não deu um tiro sequer. Tinha uma cápsula deflagrada com a casca encravada no cano. Decepcionado, Hila lançou um olhar desolado para o Carlos, que naquelas alturas não parava de rir. Se naquela noite na praia os bandidos imaginassem, levariam as mulheres e ainda deixariam dois pelados esfaqueados na areia.

            — Demos sorte, Carlinhos! – murmurou o Hila — Pelo serviço prestado, valeu o preço pago. Vamos embora.

            Dentro do carro, Carlos, volta e meia, quando se lembrava da performance do revólver, disparava uma sonora gargalhada. Pararam novamente à porta do Vesúvio, na esperança de encontrar aquelas fogosas donzelas. Sentaram-se à mesa e saborearam as delícias do Nacib, entremeadas por cervejas estupidamente geladas. A noite foi passando lentamente e ao perceberem que não seriam premiados com um novo encontro, pagaram a conta e se retiraram para o hotel. Ao estacionar o carro, no silêncio da madrugada, os dois ouviram ao longe como se fosse um gemido, o som de um pistom ou trompete.

            — Carlos, vamos lá? Pode ser que renda alguma coisa.

            Carlos não enjeitava uma parada. Lá foram os dois por entre becos, vielas e casarões sombrios, na periferia da zona portuária, seguindo o lamento daquele pistom solitário. Finalmente chegaram até um velho sobrado. Uma escada lateral dava acesso ao segundo andar, de onde vinha aquela melodia maviosa.

            O andar de baixo deveria ser armazém para depósito de cacau, pois de emanava um cheiro acre insuportável. Da porta de entrada do salão não dava para fazer nenhuma avaliação, pois era uma escuridão terrível. Só dava para perceber, pela lâmpada que mais parecia uma brasa, colocada acima da cabeça do músico soprador do pistão, que o comprimento do salão era imenso. Aguardaram um pouco, para que se acostumassem à escuridão, o suficiente para que as pupilas chegassem ao lugar.

            Tateando, sentaram-se a uma mesa e foram atendidos por um mulato alto de terno branco e sapatos brancos, o próprio gigolô de gafieira. 

            — Os cavalheiros vão tomar o quê?

            — Uma cerveja. E dois copos.

            — Temos também umas meninas! Se quiserem...

            — Manda duas, não somos homens de beber sozinhos.

            Chegaram e sentaram-se à mesa, duas silhuetas de mulher.

            — Mais dois copos.

            Em poucos minutos estavam os quatro dançando, rosto colado e fervendo de tesão. Sentaram-se, poucas palavras e muitas ações. Por sob a mesa o pau comeu. Braguilha desabotoada, penis erectus, o sexo oral se fez presente. De repente, Hila perguntou:

            — Onde é o banheiro?

            — Ali, próximo à entrada – respondeu uma das fêmeas.

            Hila cutucou o Carlos por debaixo da mesa. Como tinham uma sintonia perfeitamente afinada, levantaram-se os dois para ir ao banheiro.

            — Carlos, essas porras são veados!

            — Não brinca! Já estava desconfiado! – disse - Pois fui enfiar o dedo na xuranha da nêga e encontrei uma tremenda mandioca. Vamos nos mandar.

            Na saída do banheiro, havia um balcão em forma de cercadinho onde ficava o gigolô. Para alcançar a porta de saída teriam que passar por ele. O homem estava meio sonolento e era de idade avançada. Os dois saíram do banheiro, amistosamente encostaram-se no balcão.

            Gente boa, será que você pede para o trompete tocar Perfídia Adoramos esse bolero!

Inocentemente o homem saiu do cercadinho e começou a caminhar em direção ao palco, no fundo do salão. Os dois aproveitaram e se escafederam pela escadaria.

            Os veados, interessados em dar um suador nos dois incautos, deram o alarme:

            — Pega os playboys, eles estão fugindo sem pagar!

            Os dois que iam pelo meio da escada saltaram por sobre o corrimão e caíram na calçada em desabalada carreira. Chegaram exaustos ao hotel. O porteiro assustado perguntou o que havia acontecido.

            — Um monstro de um cachorro nos botou para correr. A propósito, assim que o dia clarear, nos acorde e feche a conta que vamos partir.

            Evidente que gente estranha em cidade do interior pode estar no hotel. Cedo, os dois seriam encontrados. Angustiados, não conseguiram pegar no sono. Antes mesmo do raiar do dia, estavam prontos. Agora era explicar ao Rey.

            — Carlos é contigo! – disse o Hila.

            — Tudo tem que ser eu?

            — É lógico, tu já és genro e eu não sou nada. De mais a mais tu és bom de argumento.

            — Rey acorda!

            — O que houve?

            — Temos que ir embora agora.

            — Mas, por quê?

            — Estivemos conversando com uma professora e ela falou que os pais vão devolver aquelas coleções que nós vendemos.

O homem que não gostava que mexessem no seu bolso, de um pulo só já estava pronto para viajar.

            — É besta! Depois de tanto sacrifício? Vamos embora agora!

            Sem perguntar pelo café da manhã, colocou seu repositório dentro do carro, pagou a conta do hotel e adeus São Jorge dos Ilhéus. Rey nunca soube o verdadeiro motivo daquela acelerada retirada.

De volta à estrada, se foram. Desta feita, “o incrível exército de Brancaleone” se dirigia a Salvador, destemidamente. Ali fariam fortuna.

            Finalmente, após pequenos percalços, chegaram a Salvador. Era final de semana, precisamente sexta-feira à tarde. Hotel Chile, na avenida Chile, era o ponto dos caixeiros-viajantes. Na portaria preencheram as fichas e a distribuição tradicional dos quartos: Carlos e Hila em um apartamento, Rey em outro, ao lado.

            Banho tomado ficaram na frente do hotel, vendo as moçoilas passar. Jantaram uma boa comidinha baiana e com o tradicional palitinho no canto da boca, foram traçando os planos para a segunda-feira. Todos entusiasmados com a possibilidade de lucros fáceis. Carlos e Rey foram até a telefônica assuntar com suas famílias. Hila que não tinha nem passarinho para tratar, falou:

            — Vou pegar um cinema.

            Dirigiu-se à Baixa do Sapateiro e, sem saber de nada, comprou o ingresso para assistir O Retrato de Dorian Gray. O filme havia começado. Com a vista habituada à escuridão do cinema, ele percebeu que alguns olhares em vez de se dirigirem para a tela estavam se dirigindo para ele. O cinema estava relativamente vazio. Minutos depois, um daqueles que lhe dirigia o olhar, audaciosamente levantou-se de onde estava, na fileira de cadeiras da frente, e veio sentar-se ao seu lado. Hila sentiu-se desconfortável e logo percebeu do que se tratava, mas deixou o barco correr para ver o que iria acontecer. Aos poucos o rapaz foi passando a mão direita no seu joelho, foi subindo, subindo e o Hila deixando. O rapaz desabotoou a braguilha da calça do Hila, botou o pau dele para fora e iniciou uma célebre punheta.

            O Hila quando queria ser moleque, o era com perfeição. Quando o veado estava bastante excitado, Hila num movimento brusco com as duas mãos, segurou a mão e o pau do veado, que disparou a berrar:

            — Ai, ai, larga meu pau!

            Acenderam a luz do cinema, o veado estrebuchava querendo se desvencilhar das mãos do Hila, mas foi impossível. Chegou o lanterninha com o gerente do cinema.

            — O que está acontecendo aqui?

            Hila franzindo o sobrolho, com olhar austero reclamou:

            — Não se pode assistir ao filme sossegado que este tipo asqueroso vem importunar a gente! Vou chamar a polícia!

            — Não doutor, não se avexe! Vamos resolver na paz!

            O lanterninha pegou o cara pelo cangote e, debaixo de uma tremenda vaia e gargalhadas de ironia, sentou-lhe um ponta-pé na bunda e atirou-o no meio da rua JJ Seabra. Apagadas as luzes, Hila saiu sorrateiramente. Mesmo assim foi seguido até o hotel por uma outra gazela, que foi até bater na porta do quarto. Hila, com receio de ser algum amigo do cara do cinema que viesse tirar satisfação, não teve dúvida. Pegou o revólver entupido, abriu a porta de repente, enfiou o cano no peito do cara, arrancando até pedaço de pele, e perguntou:

            — Que é que foi? Se manda se não quiser levar um tiro na bunda.

            A boneca deu um grito e caiu desfalecida no chão. Outro rififi. Chega o gerente do hotel acompanhado pelos auxiliares da portaria, que se deparam com aquele corpo caído no chão. Sobrado antigo, assoalho de madeira, a queda deve ter feito um tremendo esporro em baixo.

            Bateram à porta do apartamento do Hila.

            — Pois não?

            — O que houve?

            — De que estão falando?

            — Deste cidadão caído aqui no chão?

            — Onde? Ah! Não sei. Deve ter se sentido mal.

            E a bicha voltando a si:

            — Credo! Malvado!

            Escafedeu-se deixando o pessoal do hotel sem saber o que aconteceu.

            Chegam Carlos e Rey.

            — Que tal, boas notícias da família?

            Oh! Sim, tudo bem! – exclamou o Rey – andam falando em revolução. Os militares estão se articulando para tomar o poder.

            — Deixa vir – exclamou o Carlos – eles não vão nos proibir de vender nossos livros, vão?

            — Se os livros tivessem capas verdes, correríamos o risco de ficar sem eles, poderiam pensar que se tratasse de alfafa — ironizou o Hila.

            — Vou dormir – disse o Rey.

            — Boa noite – responderam os dois em uníssono.

            Salvador, bela cidade. Ainda provinciana, trânsito pachorrento para combinar com o sotaque do povo. Farol da Barra, um lugar aprazível com um bar muito bem situado do outro lado da avenida, para que se ficasse estrategicamente de frente para a entrada da barra, brisa fresca, morenas bonitas cerveja gelada. Pessoas amáveis, mesmo sem se conhecerem, cumprimentavam-se uns aos outros, inclusive os turistas, de forma brejeira e simpática. Amaralina, Jardim de Alá, Pituba, Piatã e Lagoa do Abaeté. Ser poeta naquela terra não é muito difícil. A natureza pródiga e exuberante estimula a fantasia. O clima de magia é excitante. Na Lagoa do Abaeté, numa noite de plenilúnio, no momento em que a lua deixa para traz a linha do nascente, sua imagem refletida no espelho d’água da lagoa escura, emoldurada pela areia branca, era algo deslumbrante. Um verdadeiro tributo aos amantes apaixonados.

            Segunda-feira, finalmente, os três companheiros acordaram cedo. Despertados pela excitante expectativa de bons negócios, estavam todos mais agitados do que o normal.

Banhos tomados, perfumados, barba feita, ternos impecáveis e sapatos muito bem engraxados, após o café da manhã, montaram na Kombi e se dirigiram para a universidade. Carlos estacionou o carro de forma estratégica. Abriu as duas portas laterais e expôs com perícia as coleções que chamaram a atenção imediatamente dos alunos. Curiosos fizeram um pequeno aglomerado junto ao carro e o bolo foi crescendo. Hila fazia as relações públicas com a rapaziada. Aos poucos a conversa foi descontraindo a tal ponto que parecia até se tratar de velhos conhecidos.

            Carlos não perdia tempo. Já tinha tanta habilidade no manuseio dos livros que quando um interessado lhe perguntava sobre alguma determinada lei, ele já abria direto na página do Código Penal que trazia o texto. Quando não acertava, errava somente o caput. Foi um sucesso total de vendas. Livros para pronta entrega. Sem risco. Pegar, pagar e levar para sua estante. Se interessasse, entregávamos em casa também. Muita mordomia para a época. Carlos com seus argumentos ia convencendo a todos a adquirirem seus livros. Era um exímio vendedor. Às vezes Hila se entretinha, observando a magia que Carlos usava em seu discurso. Rey recolhia o produto da venda, anotava endereço para a entrega e Hila se deliciava com o sotaque da rapaziada a sua volta, falando de amenidades, exaltando com ufanismo os prazeres da boa terra. Nessas alturas, não somente os rapazes mas também as moças participavam daquele papo alegre e jovial. Moças lindas e menos lindas, nenhuma feia. Impressionante. Hila, que não perde tempo, notou o olhar mais agressivo e mais permissivo de uma daquelas beldades. Não demorou para que, de mãos dadas, sob o olhar de censura do Rey, fossem os dois passear dentro do campus, sob o pretexto dela mostrar-lhe a universidade e sua sala de aulas, particularmente. Lábios carnudos, seios fartos com decote audacioso para aquela época, olhos amarelados de pantera e um quadril de fazer inveja.

            — Meu Deus! Uma nova edição de Marta Rocha. Muita areia para o meu caminhão — pensou Hila.

            Seu nome? Deusa. Era a própria.

Carícias, perguntas e respostas, com o corpo ardendo de desejo, os dois tiveram de se conter e desviar o pensamento para guerra, atropelamento, hospital, a fim de evitar uma explosão da libido.

            De volta ao convívio com os demais colegas, com o olhar no chão, os dois, desconfiados com as faces ligeiramente ruborizadas, retomaram o rumo da conversa até que os batimentos cardíacos voltassem ao normal. Romeu, um simpático bacharel baiano, ainda deu uma gozada no Hila, que, sem graça, retribuiu com um sorriso de soslaio.

            Rey ria de orelha a orelha com o sucesso das vendas, mas quando dava de encontro com o olhar do Hila, franzia o sobrolho e fazia bico, com ciúmes pela sua filha. Era de fazer cócegas. Hila custava a se conter.

            — Ô sogro, como estão as vendas? – inquiriu Hila num tom de velado deboche.

            Arrumando a garganta, testa franzida, óculos de grau torto nas ventas, semblante sisudo, com os dedos polegares apoiados no suspensório preso ao cós da calça, numa atitude acintosa, respondeu:

            — Eu e Carlos estamos vendendo muito bem! – deixando nas entrelinhas o Hila de fora.

            — Imaginei. Todos os clientes que contatei e que compraram os livros foram unânimes em dizer que 80 por cento desse tipo de venda é feita em função da simpatia da equipe. Você com este charme todo e com esse suspensório está mais para telegrafista de estação de trem de filme de cawboy do que propriamente para caixeiro-viajante.

            O homem bufou, rodopiou em cima do próprio eixo, chamou um táxi e bateu em retirada, nocauteado pela ironia do Hila.

            Nessas ocasiões, a maldita cólica botava o homem para correr a procura de um sanitário. Volta e meia, quando chegava, já não havia mais necessidade do vaso sanitário, mas de um bom chuveiro e roupa limpa.

            Hora do almoço. Hila e Carlos recolheram os livros depositados em um estande montado caprichosamente pelo Carlos. Arrumaram direitinho dentro da Kombi e convidaram Deusa para fazer companhia e ciceroneá-los no almoço.

            — Tenho que avisar mamãe! Vou telefonar! – palavras de Deusa.

            — Traga uma amiga para fazer companhia ao Carlos! – disse Hila.

            E assim foram os quatro, incluindo Laura, a amiga que Deusa trouxera para fazer companhia ao Carlos. Nas apresentações, Hila ficou estático diante daquela deslumbrante beleza. Foi preciso que Deusa o cutucasse para que voltasse à realidade.

            Carlos nadou de braçadas. Certos homens, às vezes, tripudiam sobre a astúcia das mulheres, porém, há horas em que elas agem como verdadeiras raposas.

            Cúmplices dessa astúcia, os dois deixaram que elas escolhessem o caminho, pois também se tratava de dois lobos, acostumados às manhas das cariocas.

Por caminho pacato e sinuoso, chegaram a um lugar bucólico. Um regato cristalino e manso surgia de dentro daquele bosque de árvores frondosas, onde uma pontezinha de pedras compunha o cenário. Hoje nem GPS localizaria aquele belo local. Ao fundo uma construção rudimentar, como se fora um velho mocambo, contagiava o clima de magia.

            As jovens raposas haviam levado os lobos a um local construído para o namoro.

No alpendre dianteiro do mocambo, algumas mesinhas e toscas cadeiras. Na janela, ao lado da porta de entrada que dava para o alpendre, emoldurada pelo marco pintado de azul, apresentou-se a simpatia da Iaiá. Uma bela representante da raça negra, gorda, de sorriso fácil e dentes alvos. Usava o tradicional vestido rodado de babados brancos, com passamanaria vermelha. Acolheu os visitantes com aquela gargalhada gostosa e estridente da pombagira e um largo abraço, deixando, desta forma, os casais inteiramente a vontade. O cheiro de vatapá era irresistível. A velha baiana fez questão de levar os recém chegados até a sua cozinha.

            Apesar da pobreza, cozinha de chão batido, tudo era de asseio irretocável. No fogão a lenha, as panelas de barro ferviam ao som do crepitar da madeira seca que ardia produzindo fogo abundante. Um velho pilão de madeira servia de cama para um gato preguiçoso que ronronava.

            Os quitutes indescritíveis, vatapá, xim-xim de galinha e, em uma panela rasa de barro, uma moqueca preparada, esperando a ordem do freguês para ir ao fogo.

Por um momento, aqueles quatro visitantes curtiram suas individualidades, esquecendo, por instantes, do parceiro, distraídos pelos clamores do estômago. De volta à realidade, sentaram-se à uma mesa e deram vazão ao apetite. Cerveja gelada, pinguinha, acarajé e pimenta.

            Os quatro comensais distraíam-se inocentemente, deixando-se levar pela lascívia e a luxúria, inadvertidamente.

            Aí resolveram almoçar, afinal de contas, era esse o objetivo principal daquele convescote. Além do mais, as moças estavam ficando embriagadas e mulher embriagada é muito triste. Feitos os pedidos, deliciaram-se todos. Rebateram com um delicioso efó.

            Após o almoço, o clima ameno e uma sonolência irresistível tomaram conta dos quatro. A baiana, percebendo aquela situação e com vários anos de janela, chamou Carlos num canto e disse-lhe que nos fundos havia uns quartinhos de aluguel. Hila e Carlos não precisavam falar, seus olhos falavam por si, como velhos parceiros de peraltices. Entreolharam-se e ao mesmo tempo fizeram o convite às moças.

            Como era de se esperar, elas relutaram para manter a dignidade até que a imprudência e a indecência as convencessem a ceder.

            E assim foi que cada casal se dirigiu para seu purrinhém. Esbaldaram-se nos prazeres do sexo, dormiram e saíram de quando a lua alta iluminava o terreiro.

            Passaram-se mais alguns dias, as coisas foram se tornando repetitivas e cansativas. A monotonia daquela rotina estava deixando os viajantes estressados. A convivência ficara difícil e um não tolerava mais as idiossincrasias do outro, até que Carlos, com seu temperamento explosivo, quando estavam todos juntos, falou:

            — Não fico aqui mais nem um dia. Acabei de telefonar para casa, não consegui e as notícias do rádio são as piores possíveis. Dizem que transformaram o Rio numa praça de guerra. Vou embora.

            Todos enfastiados concordaram e concluíram que era hora de retornar. Para as namoradas nem adeus. Não deu tempo! Ansiosos com a viagem de regresso, carregando consigo uma ressaca moral imensa, Carlos e Hila se sentiam satisfeitos de se ver livres daqueles belos problemas que ficariam para trás. Elas os acompanhariam em suas fantasias sexuais embaixo do chuveiro.

            De volta à BR 101, a Rodovia do Sol, a viagem corria tranqüila até chegarem a altura de Governador Valadares, em território mineiro, quando foram surpreendidos por uma barricada de soldados do Exército, carregados de metralhadoras, fuzis, caminhões e obstáculos na pista. Hila, não querendo se desfazer de seu revólver entupido, pediu ajuda ao Carlos. Retiraram a forração lateral da porta da Kombi e enfiaram o SW. Na hora em que foram parados, Hila, lembrando-se do revólver, ficou lívido, a ponto de chamar a atenção do oficial comandante daquela operação.

            — Você está escondendo o quê? Está com medo de quê? Porque esse amarelão? Revistem o carro! – ordenou.

            — Nada não, senhor, estou pálido assim porque sofro do fígado. Comi um acarajé que não me fez bem — respondeu Hila ao oficial, que não lhe tirava os olhos.

            Enquanto os soldados rasgavam as caixas de livros para procurar algum exemplar marxista, embora a maioria não soubesse ler, Carlos de forma ladina tentava amenizar a tensão:

            — Houve alguma coisa? Porque o bloqueio da estrada?

            — É que nos estamos em plena revolução e aí mais à frente vai um comboio de prisioneiros. Retornem e aguardem a estrada ser liberada! — disse o oficial.

            Tratava-se de presos “perigosíssimos”. Membros da Aliança Camponesa dos Miseráveis, sem terra, sem teto, sem comida e sem nada. Foram dominados sem resistência, pois os poucos que se mantinham de pé foram derrubados por uma repentina lufada de vento que passou por aqueles confins. Manifestaram-se contrários aos princípios revolucionários de combate à corrupção e à pouca-vergonha dos políticos no Brasil. Deu no que deu.

            Dali a duas horas retornaram e foram liberados para seguir viagem.

O pavor que tomou conta dos três viajantes se justificava. Rey era comunista de carteirinha. Caso aquele oficial pedisse a identidade dele e confrontasse com a lista que possuía, certamente dali seguiriam todos para o DOI-Codi e, após uma sessão de torturas, iriam se juntar aos outros tantos desaparecidos, enterrados em covas rasas em algum terreno baldio.

            Seguiram viagem todos tensos em pensar de ter de passar por outra situação semelhante. Felizmente tudo correu normalmente e a ânsia de rever os familiares fez com que chegassem rapidamente ao querido Rio de Janeiro. A saudade era tanta que até o tradicional mau cheiro dos mangues, adjacentes à avenida Washington Luiz, recendeu como suave fragrância francesa.

Direto à casa de Rey, esperava a parte feminina da família. Esposa do Rey, esposa do Carlos e namorada do Hila. Risos de felicidades pelo retorno e pelo sucesso da viagem, pois sobraram poucos livros.

            Carlos voltou para o Recife com sua esposa e se estabeleceu como sócio do Rey na venda de livros da editora do sogro. Foi morar na Praia de Boa Viagem, lugar de gente grã-fina, tal foi o sucesso do negócio.

            Hila, sem aptidão para vendas, sem compromisso com a vida, sem passarinho para tratar e contando com a má vontade do futuro sogro, que por cima de tudo ainda tinha ciúme da filha, ficou desempregado. Ainda teve que pagar o revólver que havia sido comprado com um adiantamento feito pelo Rey. Apertou-se e foi acusado de ter metido a mão no dinheiro alheio, apesar de não ter sido feito nenhum acerto das comissões pelas vendas que fizera. Poucas, mas que lhe renderiam algum trocado. O homem era mesmo um carrasco.

            Deprimido, desempregado e devendo, não teve recurso a não ser apelar a seu pai que morava com a família no Norte.

            O pai do Hila era uma pessoa de posse, porém, por princípios éticos, Hila não suportava incomodá-lo com assuntos pecuniários, pois assim estaria contradizendo a imagem que lhes passava de ter sido bem-sucedido em sua vinda para o Sul. Sua mãe não se conformava, escrevia-lhe semanalmente cartas tristes suplicando-lhe que voltasse.

Via Western telegrafou para seu pai em Belém e no dia seguinte a Ordem de Pagamento estava no Banco. Sacou o dinheiro, pediu ao caixa que trocasse o máximo que pudesse para aumentar o volume e dirigiu-se com o nariz empinado para casa do Rey. Em chegando, dirigiram-se até a cozinha, Hila esperou para que todos da casa estivessem presentes, para que houvesse testemunhas, e com um ar altaneiro e de deboche, arrancou aquele pacote de dinheiro do bolso e disse:

            — Da outra vez, se houver, e espero que não haja, antes de macular a honra alheia, aja com mais retidão. Está aqui o dinheiro do adiantamento da viagem, faça bom uso. Agora quero minha comissão!

            O usurário pulou no pacote de dinheiro e saiu da cozinha onde se encontravam e não deu resposta ao anseio do Hila, que fez bonito para a namorada, assistente muda daquela cena insólita. Era um momento difícil, mas Hila era um destemido. Não ligava para nada, não tinha medo de nada e já estava contaminado pela magia do Rio de Janeiro.

            Morava com sua tia no Edifício dos Jornalistas, no Jardim de Alá. Apartamento de sala e quarto, onde dormia numa cama Dragoflex na sala e sua tia no quarto. A cama ficava desarmada atrás da porta do corredor. À noite, quando chegava a casa, tinha que evitar barulhos, para que sua tia não fosse incomodada, mas a cama não cooperava, sempre dava uns rinchos. (no dicionário só encontrei essa expressão como relincho, se quiser pode trocar por “... sempre rangia.”)

Nas noites frias forrava-a com jornais. Deitava-se com cuidado, pois a danada da cama tinha umas molinhas que rangiam ao menor peso e ainda costumavam puxar os cabelinhos das pernas ou dos braços causando uma dor fininha de dar vontade de gritar. Ainda havia um outro inconveniente: tinha que escolher, pois quando os pés estavam dentro, a cabeça estava fora.

            Hila tirava aquilo de letra. Morava no Leblon a duas quadras da praia. Privilégio de poucos. Certo dia, quando já estava empregado como bancário, sua tia lhe disse:

            — Hila, terás que arranjar outro lugar para morar, porque o teu primo está vindo com a mulher da base de Natal, passar as férias comigo. Tu sabes como é. Eles são recém-casados, ela muito bonita e tu solteiro...

            Hila entendeu tudo que ela quisera dizer nas entrelinhas.

            — Não tem problema, tenho onde ficar!

            Quando chegou a família, o Hila foi defenestrado de seus aposentos. Não falou com ninguém, era do seu feitio não incomodar as pessoas. Como de costume, à noite quando chegava do Banco, ficava conversando com a turma, embaixo do prédio até que o último amigo subisse.

            Certa noite, em vez de subir também, atravessou a rua e fez de cama um banco do Jardim de Alá. Naquela época existiam por ali pequenos furtos. Três pivetes, que davam uma busca atrás de algum incauto, aproximaram-se e um deles se dirigiu ao banco onde Hila fingia dormir. O maior deles falou em voz alta:

            — Esse aí não. Esse é dos nossos!

            Hila também fazia suas incursões na Praia do Pinto e costumava tomar umas e outras na birosca do “Haroldo Treme-treme”. Numa dessas noites, enquanto dormia no banco, foi acordado por seu amigo Paulo Parente, colega de Banco, acompanhado de seu pai, dr. Miguel Arruda, para garantir mais autoridade à intimação que faria, e ordenou com voz grave e austera:

            — Vamos para casa!

            Hila não esboçou nenhuma reação contrária, porém queria morrer ali, naquele instante. O que ele mais detestava estava acontecendo naquele momento, importunar as pessoas. Tirar dr. Miguel de sua casa àquela hora da noite. Isso era demais.

            — Um dos meus filhos também está fora de casa. Não gostaria de saber que está dormindo em banco de jardim – completou dr. Miguel.

            Paulo era realmente um companheiro inseparável do Hila. Trabalhavam juntos no mesmo Banco e, à tarde, na hora de sair, Paulo ia levar sua namorada a Cascadura e Hila o esperava no botequim de um simpático casal de portugueses, na rua Dias Ferreira. Enquanto Paulo não chegasse, Hila não entrava em casa para dormir. Era o primeiro a levantar-se, arrumava a cama e, enquanto os outros dormiam, timidamente se retirava para não ser uma carga a mais no café da manhã de dr. Miguel.

            Certa noite, Paulo atrasou-se. Chegou às duas horas da madrugada, encharcado. Problemas com o trem. Teve que descer no meio da linha, pular o muro para conseguir uma lotação que o levasse até a Central do Brasil e dali um outro para levá-lo até o Leblon. O gentil casal de lusitanos só fechou o bar após a chegada do Paulo, com pesar de deixar o Hila na chuva do lado de fora. General Artigas com Dias Ferreira era o endereço daquele singelo botequim. Quando chegavam juntos ao bar, aquela simpática senhora anunciava:

            — Chegaram os dois amigos!

            Naquela época havia mais respeito e mais carinho com o ser humano. As pessoas se reverenciavam mais, se abraçavam mais, sorriam mais. A vida era mais simples, mais amena e os muros mais baixos. Drogado era aquele que fumava maconha, hoje humilhada em relação às outras drogas pesadas como cocaína, heroína, crack e artanhas. (também não encontrei essa palavra, será que se escreve assim mesmo?)

            Os bondes davam certo ar de romantismo ao Rio e o Leblon ainda era uma pacata província. Se quisessem beber algo na madrugada, se encontrava aberto um botequim, onde o lotação Estrada de Ferro fazia seu ponto final, no término da avenida Ataulfo de Paiva. Ali não havia agitação e o silêncio era total.

            Os bondes eram a condução democrática. andava nele quem tivesse dinheiro. Quem não tivesse, andava também. Tinha que ser esperto. O trocador cobrava, banco por banco, pendurado nos balaústres. O carona observava onde ele se encontrava e também se pendurava no balaustre. Quando o cobrador se aproximava, ele descia e subia de novo no bonde na parte oposta ao cobrador. Como o bonde andava vagarosamente, dava tempo suficiente de descer da parte de trás, correr e pegar a parte da frente. Para a rapaziada que andava dura, era uma solução.

            Os bondes voltavam do Bar Vinte no final de Ipanema. Ali os trilhos faziam um círculo e eles podiam retornar. Na pausa de fim de linha, o motorneiro e o trocador iam até o bar tomar uma média com pão e manteiga e deixavam a lança ativa, isto é, encostada nos cabos de transmissão de força, deste modo, o bonde continuava pronto para ser operado.

            A turma do Edifício dos Jornalistas, que não tinha a menor responsabilidade, observava se o motorneiro havia deixado o manete, que comandava a partida e a velocidade do bonde. Em caso positivo, um deles assumia o comando e dava a partida para desespero do motorneiro e do trocador, que largavam suas médias e disparavam correndo atrás do bonde. De quepe, gravata, paletó e sapato de verniz, formavam uma imagem surrealista.

            Quando o bonde chegava ao Edifício dos Jornalistas, a turma parava o bonde e corria para trás dos prédios, onde se localizava a birosca do “Haroldo Treme-Treme”. Era uma alegria para rapaziada ver a cara de desespero dos dois trabalhadores da Light. No dia seguinte, a manchete dos jornais: “Bonde roubado no Jardim de Alá”.

            O campeão das molecagens no prédio dos Jornalistas era o Sérgio, vulgo “Lacerda”, tal sua semelhança fisionômica com a do ex-governador.

            Morador do segundo andar do bloco B, deixava pendurado um barbante até o alcance da mão de uma pessoa. Quem puxasse aquele barbante, tomava um banho de açúcar que ele cuidadosamente deixava preparado sobre um papel de açougue no pára-peito de sua janela. No auge das lambretas, sob seu comando, à noite, ia uma turma imensa para avenida Delfim Moreira, na orla da praia do Leblon. Quando vinham os lambretistas, a turma se dividia, uma parte ficava de um lado e a outra, do outro lado da pista. Quando os lambretistas estavam bem próximos, alguém dava o grito “Agoraaaa!”, como se houvesse ali entre as duas partes da turma uma corda, todos faziam a mímica de estar esticando umcabo de guerra”.

            Os lambretistas apavorados metiam o no freio e as lambretas cantavam pneus. Os menos experientes caíam. Quando percebiam que se tratava de uma brincadeira, queriam encarar, mas diante da sua inferioridade numérica, rapidamente desistiam e partiam resmungando. Quando aparecia um sujeito muito chato, querendo se engraçar com as meninas da turma, chamavam o Lacerda para conversar com ele. Num gesto imperceptível, aproveitando-se da penumbra, “Lacerda” colocava a língua para fora e com um peteleco, aos pouquinhos, ia enchendo a blusa do inconveniente de saliva. Quando o incauto percebia sua camisa toda molhada, ficava sem entender e, desconfiado, de fininho, batia em retirada.

            Determinada época, chegou do Norte um rapaz bem afeiçoado, na força de seus 19 anos e, logo se enturmou com a rapaziada. De riso fácil, chamava-se Pedro. Uma noite de sexta-feira, a turma estava dura e, conseqüentemente, sem programa.

            Foram todos para a calçada do lado da praia, onde as doidivanas noturnas faziam seus trabalhos ali mesmo na areia da praia e faturavam seus trocados sem que fossem importunadas por ninguém. A rapaziada gozava de certo privilégio com as moças, que consentiam em fazer seu trabalho a crédito, sem qualquer burocracia, talvez porque soubessem que estavam lidando com uma rapaziada asséptica e não corriam risco de pegar uma gonorréia. Além de jovens, os rapazes traziam consigo a formosura própria da idade.

            Naquela noite, sentaram-se todos em um dos bancos que ornavam a praia, alguns ficaram de . De comum acordo, deram uma geral em seus bolsos e as moças, em suas bolsas cheias de paninhos de asseio, à procura do que existisse de dinheiro. Feita a coleta, deu para comprar, num posto de gasolina em frente, um litro de rum Bacardi, Coca-Cola, sardinha em lata e farinha.

Aí começou uma bela farra na areia do Leblon. O estado etílico foi aumentando, as conversas foram ficando picantes e alguns estavam bem insinuantes. Sob a luz da lua cheia, as moças foram ficando atraentes, porém uma delas, muito magra e alta, de queixo proeminente, apaixonara-se perdidamente pelo Pedro. Rapaz de boa família e bons costumes que, de início, ficou meio acabrunhado, mas quando o rum fez efeito o moço virou o capeta. A mulher não o deixava em nenhum instante. Ela havia decidido que daquela noite não passava, teria quetirar uma” com aquele pau-de-arara.

            — Porra, tu enches o saco! Queres meter, não é? Então deita aí – disse Pedro, apontando para a areia.

            Com a prática que Deus lhe deu, em segundos lá estava ela de pernas arreganhadas, pronta para o coito, pois a calcinha não fazia parte da sua indumentária. Pedro desceu suas calças e a cueca duma vez e montou naquela figura que parecia mais um gafanhoto gigante e queixudo.

            — Mas que merdaaaa! Tu és uma merdaaa! Falava em voz alta o Pedro para que toda a turma que rodeava o casal, fazendo parede, às gargalhadas, aplaudisse aquela cena bizarra.

            — Não ri! Concentra na trepada! Suplicava a sedutora na ânsia do orgasmo.

            O pau-de-arara insistia:

            — Tu és uma merrrrrrrrdaaa!

            Que deselegância!

            Acabada a farra, no dia seguinte, Pedro tinha um novo apelido: “Pedrinho-mas-que-merda”. Abreviado para “Masque”, alguns confundiam com “maqui”, revolucionário da resistência francesa, que acabou soando chique.

            Era comum, a turma ficar conversando até altas horas da madrugada, às vezes até o raiar do dia, na frente do prédio, justamente embaixo do apartamento do Raimundo Vasco. Figura singular, pois quem se dirigisse a ele teria que ser pelo sobrenome, caso contrário, receberia um: “Raimundo é a puta que o pariu”. A turma mais íntima tratava-o de Vasquinho e os menos chegados de “Seu Vasco”. O homem chegava invariavelmente de madrugada. Baixinho, voz rouca, invocado, fumava meia Souza Cruz por dia e era jornalista na United Press ou Reuters.

            Todas as noites dava plantão. Não se sabe se de fato havia o plantão ou se era uma desculpa para encobrir suas incursões nos cabarés da Lapa ou em algum carteado do qual era aficionado. A madrugada que perdia no jogo, chegava de mau humor e da janela avisava em alto e bom som:

            — Vamos parar com essa conversa fiada em baixo que eu quero dormir, porra!

            Um berro só e a rapaziada se retirava, atendendo ao pedido do querido Vasco. Em noites normais, chegava e participava do assunto com a moçada. Boa cabeça e boa alma.

            A turma mantinha um bom relacionamento com a rapaziada da cruzada São Sebastião, com direito a samba e futebol em comum. Porém, uma noite, houve um entrevero com um biscateiro remendão de nome Djalma, que morava no nosso prédio, na lixeira desativada. Ele era o pronto-socorro das donas de casa. Consertava tudo, à maneira dele. Diziam que consertou o chuveiro e o rádio em um apartamento e que, na hora de testar o serviço, quando ligou o rádio recebeu um jato d’água e o chuveiro começou a transmitir um jogo de futebol.

            Um tipo pacato, raquítico, baixinho e quando bebia, e bebia sempre, transfigurava-se. Ficava invocado e começava a falar uma língua que dizia ser espanhol, porém intraduzível.

            Naquela madrugada, um escuro corpulento batia com vontade no Djalma. Atravessamos um cacete para ele, mesmo assim não conseguia levar vantagem. Mauro, que era atleta e lutava capoeira muito bem, entrou a seu favor. Deu uma banda no malandro que se espatifou no chão. A turma dele não gostou. Aí não prestou. A turma de e a turma de trocaram pescoções, raquetadas, rabos de arraia. Valeu de tudo.

            O Vasco desceu macho. De revólver em punho, botou moral. Diante daquele forte argumento, um bruto treisoitão, todos serenaram. Vasco, distraidamente, ainda meio dormindo, colocou o revólver no bolso do pijama. Um dos pivetes que estava de olho no revólver, sorrateiramente ia levando a mão no bolso do Vasco quando foi atropelado por um violento cruzado de direita desferido pelo Masque. Recomeçou o rififi. terminou quando a “Dona Justa” chegou.

            Os desafetos de ambas as facções, extenuados, bateram em retirada.

            A vida seguia repleta de alegrias. Na turma, havia de tudo: estudantes, acadêmicos, até um do Instituto Rio Branco, trabalhadores, uns mais outros menos, e outros inteiramente descolocados, que passavam os dias na praia ou achacando veadas em Copacabana.

Masque se adaptara inteiramente ao Rio. Arrumou um emprego num escritório no Edifício Cardeal Arco Verde, na avenida Rio Branco esquina com São José. No primeiro dia de trabalho, indagado se conhecia bem o Centro da cidade, respondeu afirmativamente. Deram-lhe, então mais de 20 correspondências para que fossem entregues antes do meio-dia.

            Regressou às 16 horas, suado, morto de cansaço e quase perdeu o emprego no primeiro dia, pois nunca estivera no Centro do Rio de Janeiro. Incomodava os transeuntes perguntando o nome das ruas e deu sorte porque o carioca é um tipo solidário. Bem que seu conterrâneo que trabalhava na portaria colocou as cartas em ordem para facilitar o trajeto, porém, nervoso, no primeiro tropicão, foi carta para todo lado, desfazendo todo o trabalho. Um desastre. Quando achava o endereço da Rua México, partia para a seguinte, na Praça Mauá; de voltava para a Almirante Barroso, retornava para a Visconde de Inhaúma e depois para a avenida Presidente Wilson. Coitado, uma perca de tempo enorme.

            Depois de uma desculpa esfarrapada, dona Iracema Bonifácio, responsável pelo escritório, percebeu sua dificuldade e permitiu que continuasse no emprego. Criaram uma grande afeição fraternal um pelo outro.

            O problema era quando havia reunião do pool do gás liquefeito de petróleo. Só magnata. O Masque tinha que servir cafezinho para eles. Sobressaltava-lhe um pensamento:

            — Chi..., se eu deixar entornar café no terno de um desses homens, é capaz de eu ter que trabalhar de graça o resto da vida para pagar e acho que ainda não vai dar.

            Dali foi progredindo, passou a bancário, um bom emprego na época. Chegou a receber cem por cento de aumento espontâneo do banqueiro. Bons tempos do Brasil. Com o salário dava para pagar pensão à tia, o almoço e ainda podia se dar ao luxo de, aos domingos, sair do Leblon e ir ao Paisano, no Centro, tomar cerveja e saborear seu delicioso espaguete à bolonhesa.

            Quando a grana estava melhor, a turma ia ao Beco das Garrafas, nas boates da moda e, no fim da madrugada, com o dia raiando, o destino era o Beco da Fome, para jogar para dentro alguma coisa quente. Tinha opção para todos os gostos. Macarrão, carne seca, feijoada e tudo o que se imaginasse. Ali se pode dizer, era uma república democrática. Encontravam-se boêmios, malandros, prostitutas, veados, cantores, compositores e o pessoal da alta sociedade. Tudo na maior harmonia e sem discriminação.

            De Beco em Beco, a vida passava cheia de alegria. Sem compromissos, sem filhos para criar e sem mulher para perturbar, não poderia ser diferente. A Província do Leblon era civilizada. A maioria das pessoas se cumprimentava, pois se não eram íntimas, certamente se conheciam.

            Os bares mais freqüentados pela turma, além, é claro, do bar dos bons lusitanos Seu Antônio e Seu Joaquim, na loja do Edifício dos Jornalistas, eram o Garden, no Jardim de Alah e o Clipper, defronte ao Cinema Leblon, na esquina da Carlos Góis com Ataulfo de Paiva. Este último era a melhor serpentina do Leblon, onde o chope até hoje sai no ponto.

            O Garden, a sorveteria e bar Kid’s, com mesas e cadeiras, era mais confortável, com direito a menu à la carte, inclusive com camarão e uma deliciosa pizza.

            O bar era uma grande família. O proprietário Bruno, um gentleman. Tratava todos com a maior distinção, no que diferenciava profundamente de seu sócio Dante, que, por sua timidez, se retraía, fazendo brilhar mais ainda a performance do Bruno. Triestino, casado com uma ex-miss China, de beleza cálida e voz macia, formavam um simpático e agradável casal. Bruno havia sido próspero proprietário de um cassino em Hong-Kong. Tivera que sair às pressas daquele país e deixar tudo para trás por imposição da revolução chinesa.

            Os garçons do bar eram muito divertidos. Napoleão era o mais antigo. Chico, de garçom foi para o caixa e dali mandou vir do Nordeste, um por um dos cinco irmãos. Um deles, Raimundo, tornou-se exímio cozinheiro sob a orientação do Bruno que era um autêntico gourmet.

            Na entrada do bar, na parte baixa, havia uma mesa grande. Invariavelmente sentava-se à cabeceira José Guilherme, uma figura notável. Jornalista de gabarito, responsável pela redação do jornal Última Hora. Seus comensais e “bebensais” que o acompanhavam, a maioria também jornalista, alguns iniciantes, como Ricardo e Lucas Mendes, outros consagrados, como Lúcio Rangel, esticavam a prosa até altas madrugadas, principalmente no auge da repressão. Todos muito bem informados discutiam o rumo da frágil democracia, sem, porém, se esquecer das belas moças que algumas vezes abrilhantavam a mesa.

            Dela participava também o Lulu, um catarinense arretado, fotógrafo da revista Manchete. Gostava muito de tomar seus porres no Garden por estar perto de casa. Quando resolvia ir parar em Copacabana ou outro lugar diferente, com seu fusquinha verde, ao sentar-se em algum bar, chamava o garçom e, precavidamente, antes que tomasse a primeira doze, pedia que anotasse o endereço do bar em um pedaço de papel que cuidadosamente guardava em sua carteira, para que, no dia seguinte, soubesse onde havia largado seu fusquinha. Alma boa e bom companheiro.

            Numa daquelas madrugadas, vindo do Garden, Masque encontrou-se pela primeira vez com o Thompson. Paraibano de raça, alto funcionário do Banco do Brasil e exímio tocador de violão. Em frente ao Hotel Ipanema, deu uma introdução em menor no que, imediatamente, Masque entrou no repertório do Nelson Gonçalves. Thompson gostou e foi emendando uma na outra. Não demorou e chegou a polícia. Thompson puxou da sua carteira e os policiais se desculparam, tal era o prestígio de um alto funcionário do Banco do Brasil.

            Entre aqueles blocos do Edifício dos Jornalistas, havia uma área de lazer com bancos de concreto. Ali a serenata continuou, com um detalhe: Thompson morava no 10º andar e de baixo, no intervalo entre uma e outra canção, com seu sotaque carregado, dizia:

            — Deusa (sua esposa), mande mais uma!

            Não demorava, sua empregada estava em baixo com mais uma cerveja estupidamente gelada. Assim foi, até que o dia raiou e seu Antonio abriu o botequim. O violão silenciou às 15 horas.

            Numa sexta-feira chuvosa, como de costume, Masque tomava seu conhaque sossegado com sua turma na mesa do botequim de seu Antonio, quando pela primeira vez encontrou Nerthan, irmão de Thompson, apreciador de conhaque com mel e também um bom acompanhador com violão.

            Tinha um problema. Casado, decidiu sair de casa, pois cismou que sua esposa não o amava como outrora. Pura cisma. Pegou os cacos que restaram da união e gravemente despediu-se:

            — Deixo aqui meu violão para marcar minha presença e é aquilo a que mais amo depois de você!

            Masque não gostou daquela decisão.

            — Poxa, logo o violão?

            Arranjaram outro.

            Cantaram, tocaram e beberam durante dois dias e duas noites, selando uma amizade que permaneceria por muitos anos, contribuindo para o lucro dos inferninhos de Copacabana e de suas estrelas.

            A vida alegre passava embalada pela banda de Ray Conif. Não era somente farra e boemia, existia também o espaço para a prática do esporte. Na praia, próximo ao canal da lagoa Rodrigo de Freitas, no Jardim de Alah, ficava a rede de vôlei nº 1, a primeira rede matriculada na Prefeitura do Rio de Janeiro, consagrando sua situação de tradicional e mais antiga da praia.

            Ela tinha uma peculiaridade: as famílias freqüentadoras da praia mantinham-se afastadas dela num raio aproximado de cem metros. Assim evitava-se ouvir os palavrões e impropérios proferidos pelos atletas no afã do jogo, com os ânimos exacerbados pelo toque involuntário na rede e não acusado. Nisso Flávio era mestre. Não acusava uma única vez. Deixava os parceiros indignados pela sua cara de pau. Alguns, habituados, riam e deixavam pra .

            Esse procedimento do Flávio era unicamente durante o jogo. Fora do quadrilátero, era admirado por todos. A rede sem ele perdia a graça. Fora dali, uma pessoa admirável. Masque, era apaixonado por ele. Flávio fora seu amigo mais admirado. Amigo de emprestar dinheiro, como ele próprio dizia, quando se referia a um grande amigo. Casado em segundas núpcias com Violeta Cavalcante, uma das melhores sambistas do Brasil, Flávio Carneiro da Cunha era a síntese de um cavalheiro.

            Porte privilegiado, boa pinta, cabelos negros, sempre impecavelmente penteados e fixados com Glostora; voz gutural, discreto, trajava sempre calças cinza, blusa pólo azul marinho e mocassim. Passava as noites admirando a Violeta cantar, pois era seu número um. Tomava café ou Coca-Cola e se divertia mais do que aqueles que se embriagavam. Dono de uma boa prosa, onde estivesse, havia sempre uma roda de pessoas ao seu redor.

            Percebendo a boa formação moral e a vocação para a música do Masque, levou-o para sua casa e aproximou-o da sua esposa Violeta. Dali em diante, todas as vezes que era convidado para algum sarau, não deixava de levar o Masque.

            Assim foi que certa noite, fora convidado pelo eminente dr. Evaristo de Moraes Filho para uma tocata na residência do nobre causídico. Recebidos com uma farta mesa de queijos e vinhos, a turma estava completa: Flávio e Violeta; Vitor e Kate; Thompson, Nerthan, Masque e Bené. Este último, um exímio violonista, portador de um carregado sotaque paraibano. Era uma figura hilariante. Com um copo de uísque em uma das mãos e o violão na outra, não havia possibilidade dele executar o instrumento. Puxou um banquinho com os pés para perto da mesa de queijos e, quando ia colocar o copo de bebida sobre a mesa, reparou que havia umas imagens de santos de madeira em meio aos queijos, numa situação meramente decorativa. Bené, meio sem jeito, falou com seu sotaque exagerado para o dono da casa:

            — Dr. Evaristo, desculpe o sacrilégio! — colocando, em seguida, o copo de bebida junto às imagens, executou tranqüilo seu instrumento.

            O riso foi geral.

            A rede de vôlei, nos finais de semana, era o ponto de encontro dessa turma tão heterogênea. Havia todo tipo de profissão, desde advogados até clientes meliantes. Flávio dizia que se algum psiquiatra quisesse defender uma tese sobre o comportamento dos freqüentadores daquela rede, certamente rasgaria seu diploma.

            O mais difícil era a hora de montar a rede que ficava guardada na casa do Jorge Penna morador das proximidades. Comandados pelo Luiz Mangualde, o Lulu, Vasco, Wilson Bolinha e outros mais malandros ficavam no posto de gasolina, observando.

            Quando a rede estava montada, eles apareciam para jogar a primeira partida. Vitor, o oficial mais graduado da rede, marinheiro de guerra, era o relações públicas. Conversava com a praia inteira, especialmente com as moças, mas na hora de disputar uma partida, era uma graça. Quando todos esperavam que fosse enfiar a mão na bola, numa cortada indefensável, eis que, com a costa da mão, dava um leve peteleco e a bola nem passava da rede, caía em seu próprio campo. Flávio e Sérgio, o Velho, desejavam morrer, pois não gostavam de perder.

            Maneco também provocava. Paraense de um invejável porte atlético, moreno, simpático, de riso fácil, não fazia questão de vencer. Preferia se divertir e fazer o Flávio ficar desesperado. Subia na rede mais de um metro, mas optava pelas jogadas de efeito. Os adversários se preparavam para receber uma violenta cortada, quando dava um tapinha com a esquerda e ia a bola para fora da quadra. Sabará não aliviava, subia e mandava a mão. Quem estivesse do outro lado que se virasse.

            Estrada, de baixa estatura, era um ótimo levantador. Tinha um sestro de estar sempre com a mão direita sobre o estômago e reclamava constantemente de uma úlcera que o perseguia. Volta e meia era pego de surpresa dentro da quadra, quando lhe passavam a bola. Distraído pela dor, deixava que ela caísse no chão. Uns riam outros xingavam.

Dória, Pinga, Maurício, Aleixo, Fofô, Reubem, Carlinhos, Marino, Pedro Padre, Cumpadre, Sargento, Gaúcho, Duah, Mazô, Mamado e muitos outros completavam a turma.

            Nos dias de vento sudoeste, quem lucrava eram os botecos do seu Antônio e o Clipper.

            Numa dessas tardes no Clipper, apareceu a figura simpática do Rud, antigo proprietário de uma casa noturna, em Copacabana. velhinho, cabeça raspada, era uma figura tradicional na boemia do Rio antigo. Cumprimentou-nos e com o maior carinho, lhe entregamos, na mão, um chope geladinho, mais um e mais um... Até que, procurando um lugarzinho para sentar-se, achou o barril de chope e ali se acomodou, quietinho e, sem incomodar ninguém, permaneceu ali, cochilando, enquanto continuamos com nossas conversas entre uns e outros chopes. Aquela tarde gris foi passando e era hora do crepúsculo, quando não se diferencia o dia da noite, quando nosso Rud despertou da sua madorna. Olhou para um lado e para outro e mandou, dirigindo-se ao garçom:

            — Me dá uma média com pão e manteiga.

            Alguém perguntou espantado:

            — Que é isso, Rud, café com pão e manteiga?

            — É lógico. Para começar o dia que está amanhecendo não tem coisa melhor.

            Foi motivo de boas gargalhadas. Rud achou que já tinha dormido uma noite inteira e o dia estava amanhecendo.

            Aquela esquina era ótima. Quando não acontecia nada se esperava a saída do Cinema Leblon.

Numa dessas noites, acompanhado de sua esposa dona Sara, saiu o presidente da República Juscelino Kubitschek. Sem segurança e sem o aparato imposto pelo cerimonial. Nada disso, o democrata presidente dirigiu-se à carrocinha de pipocas e travou um pequeno diálogo com seu proprietário, também mineiro de Diamantina. Eram outros tempos.

            A vida passou, Masque envelheceu. Uma tarde caiu em si, e quando conversava na esquina, percebeu que a platéia era de meninos de menos de 17 anos. Estava na hora de mudar de vida, constituir família. E assim o fez, mudando-se definitivamente para Minas.

 

 

 

Pai, não se se vc quer mudar ou se prefere deixar assim, mas a história Rumo à Bahia começa com Hila e termina com Masque.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CASA VELHA

 

 

 

            Há um ano, voltei a te ver. Tomei coragem, com os passos titubeantes, trêmulos de emoção, passei pela pequena ponte de madeira, alcancei a cerca de acapu e velhos frechais de maçaranduba, que ainda teimam em te proteger. O velho coqueiro, à direita do portão de entrada, continua como uma sentinela altaneira, mantendo a guarda e saudando com suas palmas aqueles que adentram pelo Sítio Pindorama.

            Derramei o olhar naquele bucólico bosque e no meio dele lá estavas tu, com toda singeleza à espera de teus hóspedes que enchiam outrora teu interior e hoje já são tão raros.

            Senti teu afetuoso abraço quando galguei a pequena escada de madeira que dá acesso à grande varanda lateral, adornada de bougainvíllea de várias tonalidades.

            Um turbilhão de lembranças tomou conta de mim. A presença de todos que faziam nossa felicidade e já partiram se fez sentir.

            Nesse instante, desabou a costumeira chuva tropical da tarde. Por entre a fresta de alguma telha rachada, senti tuas lágrimas gotejarem no chão de madeira, como se fossem tributos à minha presença de filho, retornando após tantos anos de ausência.

            O quintal de chão batido cuidado com esmero pelo papai, abrigava um variado pomar das frutas nativas do Pará: sapotizeiros, ingazeiros, jatobás, abieiros, mangueiras, goiabeiras, açaizeiros, jaqueiras, cupuaçus, uxis, piquizeiros, bacurizeiros, cajueiros, seringueira, pupunheira, abricoteiros, cutitiribás, sorveiras e até um velho pé de pajurá faziam a alegria dos adultos e especialmente da criançada.

            Lembrei-me do dia de Natal, quando eu e meu irmão ganhamos do Papai Noel dois carrinhos de mão feitos de madeira. Ficamos exultantes com os presentes e, sob as ordens da mamãe, catamos folhas secas e gravetos para fazermos nossas fogueirinhas. Hoje percebo que participamos, com entusiasmo e alegria, sem perceber, da manutenção impecável do terreiro.

            Ah, Casa Velha, aproveito do teu regaço, o único que me resta, para chorar minhas mágoas. Corri mundo. Fui vencedor e perdedor. Usei o mundo, fui pródigo na gastança da vida, chorei escondido, sorri abertamente para que todos desfrutassem da minha alegria e não me evitassem pelas minhas tristezas.

            Sentado na varanda, no teu interior, na cadeira de balanço que tanto embalou minha mãe, olhando a chuva regar o de bougainvíllea plantado por ela, vejo-a à tarde, após o banho, vestido estampado de fazenda leve, toda empoada com talco de essências do Pará, saboreando sua cuia de açaí, com açúcar e farinha d’água.

            O vento geral, vindo do rumo da Ilha de Marajó, entremeado de salpicos de chuva, nos refresca. Querida Casa Velha! A centenária e frondosa mangueira à tua frente, que me viu crescer, continua a te proteger do sol e da chuva. Agora o vento aumentou e a baía está revolta. Aqueles que saíram de manhã para buscar o peixe terão que ter cautela. Talvez tenham que baixar a vela e esperar o geral amainar. Se Deus quiser, todos voltarão.            Não repetirão, entre outros, Adamor, Crisóstomo e Chico, membros da mesma tripulação, que deixaram mulheres e filhos órfãos, chorando na beira da praia, na tarde em que sua canoa não mais aportou à praia.           A embarcação soçobrou e os três foram se juntar a Netuno. Naquele dia, ou melhor, naquela tarde-noite, a ilha ficou triste e a Praia Grande chorou. Três velórios de três valentes pescadores que aprendi a admirar. Naquelas bandas nunca mais se ouviu o soar alegre da buzina feita de chifre de boi anunciando a chegada do peixe fresco para venda: filhote, bacu e piramutaba.

            Minha amiga, nossa conversa é longa.         

Foram 19 anos de convívio. No primeiro dia de aula, com saudades de ti, começava a contagem regressiva até nosso próximo encontro.

            Chegava a época do Boi-Bumbá, uma disputa bonita entre o Pai do Campo e o Harmonioso. As mulheres trabalhavam com afinco para enfeitar da maneira mais graciosa e elegante seus vaqueiros. As indumentárias daquelas pessoas fascinavam meu olhar de criança. Quando o boi, feito com todo o capricho, coberto de veludo polvilhado de purpurina, com acabamento requintado dos artesãos que davam o máximo de sua criatividade, apontava na rua dos Escoteiros, arrastando consigo uma grande quantidade de figurantes acompanhado pela batida característica do folguedo executada com perfeição pelos tocadores dos instrumentos de percussão, meu coração de menino faltava sair pela boca. Escondia-me por detrás da cerca de crótons que delimitava nosso terreno com a rua, temeroso que o boi me pegasse, pois o tripaaquele que vai dentro do boi —, em suas evoluções, ameaçava as crianças com chifradas e rabos-de-arraia. Era uma festa bonita, porém com um final surpreendente.

            No tal dia combinado, o boi fugia. O tripa saia sozinho de madrugada com o boi e o escondia em algum lugar desconhecido. Os vaqueiros teriam que procurá-lo e encontrá-lo. Todos os ilhéus participavam. Quando alguém via o boi em tal lugar, corriam os vaqueiros com seus laços enfeitados no encalço do danado. Rebate falso. Voltava todo mundo a procurar o boi até que fosse realmente encontrado. Os vaqueiros laçavam o boi e o levavam à presença do seu diretor. A ordem era matar o boi. Meu coração de menino não entendia. Apelava ao papai:

            — Não deixe, papai, ele é tão bonito!

            — Calma, filho, coisa bonita também morre!

            E assim a ordem era executada. Um disparo de espingarda e cai o boi por terra. Não continha as inocentes lágrimas de criança. Papai que conhecia o desfecho me consolava:

            — Não chora, vai ver que ele não morreu!

            Repentinamente, entrava em cena com todo espalhafato: Pai Francisco e Mãe Catirina. Então começava a parte cômica da encenação. Os dois velhinhos dão um verdadeiro espetáculo e arrancam risadas de todos os presentes. Para culminar a festa em alegria, Pai Francisco ressuscita o boi. Voltei para casa aliviado.

            Nessa noite, na minha rede armada ao lado da mamãe, o olhar da estampa de Santa Terezinha, pendurada na parede de madeira, parecia me acompanhar em meus suaves balanços; adormeci sorrindo. Ainda senti o afago da mão da mamãe acariciando minha cabeça:

            — Dorme em paz, meu filho!

            Recomendações, conselhos e advertências, esse é ofício de toda mãe tentando proteger seu filho. A minha não era diferente.

            Tu te lembras, Casa Velha?

            — Não vão lá naquele lugar. Aquilo é obra do Satanás – dizia ela, referindo-se a um terreiro de candomblé próximo de ti.

            Não resisti à curiosidade. Cheio de temor, à noite, luz escassa. As lâmpadas das ruas de terra pareciam brasas que mal davam para iluminar o dos postes que as sustentavam. Por um caminho entre árvores, seguindo o som dos atabaques, cheguei muito ressabiado ao terreiro do Babalaô Santo Crioulo.     

            Para mim aquilo tudo era novidade. O pai de santo me viu. Como membro de uma família muito bem quista naquela comunidade, devido às benemerências praticadas pelo papai e a relação de amizade que mantínhamos, eu e meus irmãos, com a rapaziada da ilha, o Pai de Santo buscou-me gentilmente pelo braço e deu-me assento dentro do recinto, num gesto de reverência, não sem antes recomendar que não cruzasse as pernas.

Obedeci lívido. Meus olhos arregalados quase saltavam da órbita. Pensei na recomendação de minha mãe, mas agora era tarde. Aflito, estava pagando pela minha desobediência. Não restava fazer nada, retirar-me poderia ser considerado uma desfeita. Era rezar para o tempo passar. Fiquei estático. Correu entre a platéia que estava sentada no terreiro, uma cuia com marafa o nome dado a cachaça no candomblé.

Foi-me oferecida, com um sorriso amarelo. Recusei agradecendo.            

As caboclas velhas de vestes brancas rodadas, pés descalços e calcanhares rachados, rodopiavam no terreiro de chão batido, na cadência dos carimbós. De vez em quando uma delas entrava em transe e era contida pelo babalaô.

            Uma risada macabra ecoou na escuridão. Sinistro. Não sei de onde surgiu aquela criatura. Debochando do ritual do candomblé? Alguns mais fanáticos e exaltados tentaram agredir aquele rapaz que parecia possuído por Exu.

            O Pai de Santo ordenou:

            — Ninguém encosta a mão nele! Deixa ele!

            O homem não parava de rir e zombetear. De dentro do terreiro o babalorixá lançou um olhar atemorizante àquele impostor. De repente, o homem começou a se debater entre as árvores como se estivesse sendo açoitado e aos berros, por dentro da mata, retirou-se. Coisas do imponderável.

            Quanta emoção, Casa Velha!

            Certa tarde, maré baixa quase na reponta, o vento soprando terral, de cima do barranco, avistei sentado num toco de madeira, à sombra de uma sumaumeira na praia, o velho Pedro pescador. Homem destemido que enfrentara aquela baía de Santo Antônio a vida inteira de forma heróica, em sua faina diária atrás do pescado para sustentar sua numerosa prole.

            Ali imóvel, olhar distante, talvez além do horizonte, apoiando o queixo no seu cajado e, com a ponta enterrada na areia, seu inseparável terçado Collins 28. Mãos calejadas, face embrutecida pela agressão das intempéries, sol, chuva e vento. Sentei-me, com todo o respeito, à sua ilharga com o intuito de aprender uma nova lição de vida. Apesar de minha pouca idade, sempre ouvi com atenção as prosas e conselhos dos mais velhos.

            Ao me receber, meneou a cabeça em minha direção e cumprimentou-me com um sorriso de soslaio. Percebi nos sulcos de seu rosto, um brilho mais intenso provocado pelas lágrimas que rolavam de seus olhos marejados.

            — Por que choras meu bom homem? – perguntei-lhe intrigado.

            — Não te incomodes, é que sofro de vida — respondeu-me.

            — Ora, mestre Pedro, vida é esperança, é alegria.

            — Engano, meu jovem. Na minha fase é desengano e tristeza, pois quem vive, um dia, certamente morrerá.

            Nas palavras daquele homem rude aprendi uma lição. Até aquele meu valente e intrépido herói temia a morte.

            Ah, minha Casa Velha, quanta mágoa... Preferiria que não fosse assim, que em minhas andanças tivesse conhecido somente o lado bom da vida. Parece que os momentos tristes permanecem de forma mais nítida em nossa memória em contrapartida aos efêmeros momentos de felicidade.

Lembras-te? Madrugada fresca de 26 de janeiro de 1951, aniversário da tia Glória. Tu, Casa Velha, toda engalanada, afinal, estávamos recebendo a visita de nossos primos, vindos do Rio de Janeiro. Dois jovens rapazes oriundos do bairro de Ipanema e egressos do internato do Ginásio Santo Antônio, em São João del-Rei, onde haviam concluído o que naquela época se chamava Curso Científico. Deveriam ser dois cientistas...

Havia na Bucólica — como é conhecida pelos habitués, a Ilha de Mosqueiro — um salão de dança chamado Cassino. Ali o bicho pegava. Todas as noites o pau quebrava, principalmente nos finais de semana. Tempos românticos, quando as divergências eram decididas na porrada. Naquela época, os valentes eram respeitados como homens. Diferença para os tempos modernos onde os covardes é que impõem respeito pelo calibre de suas armas.

            Minha mãe que conhecia de sobra os dois filhos mais velhos de uma prole de cinco, chamou-os e severamente admoestou-os:

            — Não levem esses rapazes para o Cassino!

            Os peraltas entenderam a ordem exatamente no sentido inverso.

            — Vamos levar esses dois lá, para ver se são de alguma coisa! – disse o Cláudio, dirigindo-se ao Carlos.

            Já ia a madrugada cedendo lugar aos primeiros alvores do amanhecer, quando despertei com o insistente chamado da mamãe pelo papai.

            — Vai ver o que esses rapazes estão aprontando, há mais de uma hora que escuto o murmurinho de suas vozes na esquina, próximo ao portão.

            Resmungando, papai levantou-se e foi se encontrar com a turma. E nada de voltar. Mamãe chamou o Guilherme e em seguida o Fernando, que também foram e não voltaram, o que aumentou ainda mais o bulício. Nessas alturas já haviam se levantado todas as tias e mamãe, todas pressentindo algo tenebroso. É quando papai surge no portão da cerca com seu tipo inesquecível, esguio, de andar elegante com uma varinha de galho seco na mão direita, parecendo um maestro a reger aquela súcia. Lúcio, um dos primos, xodó das senhoras, era o único que sangrava na cabeça. Quando as tias perceberam que ele estava ferido, por pouco não ocorreu uma tragédia. Quase que elas caíram no chão. Água com açúcar para uma, chá de caamembeca para outra e leque para mais uma, até se refazerem do susto, colocando os batimentos cardíacos em ordem e baixando a adrenalina.

Ato contínuo foi a bronca generalizada. Carlos e Cláudio já estavam curtidos das broncas da mamãe, tal era a quantidade de confusões em que se metiam. Todo final de semana teria que ter uma bronca, porém José Geraldo, primo que morava com a Dindinha, era um cidadão de boa paz. Detestava confusão. Nesse dia o infeliz era o que apresentava sua roupa de linho branco, seu traje inseparável, totalmente rasgado. Da blusa de mangas compridas, só restavam as mangas e uma parte das costas. O coitado, de bons sentimentos, foi o mais execrado e xingado pela Dindinha.

            Enquanto isso, as outras tias e mamãe faziam curativo no pequeno corte na cabeça do Lúcio, que muito sem graça com tanta atenção, repetia:

            — Chega, já estou pronto para outra!

            Toda desordem começava sempre pelo Cláudio e desta feita não foi diferente.

            Era começo de noite, quando meus irmãos e primos se sentaram em uma das mesas do salão e pediram cerveja, a única bebida que naquele calor “descia redondo”. José Geraldo aproveitou para ir fora cortejar uma cabrocha com quem mantinha certo relacionamento. Os pedidos de cerveja foram aumentando e o forró comendo solto. As damas comportadas se mantinham sentadas em bancos de madeira corridos em volta do salão. As cervejas vazias, não cabiam na mesa, por isso mesmo os cascos foram colocados no chão. O garçom, que claudicava de uma das pernas, pediu ao Cláudio que lhe passasse os cascos que estavam no chão.

            — Junta tu – falou.

            O inocente garçom sem se aperceber do que estava preste a acontecer, tentou apanhar aquele vasilhame, debruçando-se sobre a mesa.     Um prato cheio para as más intenções do Cláudio que, com a ponta do , puxou uma das pernas da mesa. Aquele pobre trabalhador que defendia sua pequena receita nos finais de semanas, ajudando a servir o salão, estatelou-se sobre as garrafas e copos, uns ainda cheios.

            Aí o pau quebrou. Os outros garçons que presenciaram a cena e tinham uma rixa com o Cláudio, vieram em favor do colega. Do lado de fora, a turma do Maracajá, quando percebeu de quem se tratava, pulou as janelas da frente a fim de pegar a turma da Praia Grande, onde morávamos. O dono do estabelecimento, a fim de manter a ordem, tentou fechar as janelas do tipo guilhotina. Tirou a trava da janela e esqueceu-se da mão no parapeito. Três falanges ficaram ali mesmo. Um mocho de maçaranduba atingiu o Lúcio na cabeça, que não se deu por achado, apanhou-o no chão e saiu fazendo estragos. Só parou quando um desafeto, por trás, deu-lhe uma gravata no pescoço. Lysis, seu irmão, que a tudo assistia, pegou uma garrafa de cerveja cheia, ainda com a tampa, tacou-a na testa do camarada. O melado desceu e o cara ficou por ali mesmo. Um verdadeiro rififi. As mulheres subiram nos bancos e de soltavam seus gritos histéricos. Carlos com o tombava os bancos para ver a cor de suas calcinhas. Jacinto, com sua canhota poderosa, defendia bravamente a turma da Praia Grande, juntamente com o Quarenta, Caieira, Boto, Pipira e mais alguns. No meio do tumulto, encantoaram o Carlos, que como último recurso puxou um revólver 32. Abriu-se um clarão no meio da turba enfurecida. Carlos teria saído incólume não tivesse caído na asneira de apertar o gatilho na direção de um desafeto mais exaltado. Negou fogo. Também pudera. Carregou a arma 32 com as balas de uma Winchester 22. O porteiro, um homem forte, com o braço direito, segurou o Carlos pelo pescoço que jogou o revólver para o Quarenta. Nesse instante chegou o destacamento da polícia composto por um cabo e dois soldados. Carlos, num último arranco de suas forças, conseguiu pegar com uma das mãos por entre as pernas e a outra no colarinho do cara que o estrangulava, levantou-o no alto, jogou-o contra seus algozes e saiu perseguido. Para alcançar a rua teria que passar por uma estiva sobre uma vala rasa e fétida. No exato momento em que José Geraldo retornava do seu colóquio com a namorada e se encontrava no meio daquela pequena ponte, vem de dentro aquele bolo de gente agarrada no Carlos. Zeca perdeu o equilíbrio e com sua roupa alva caiu de costa naquela mistura de caldo de bruxa. Um guarda que o reconheceu como membro da família que provocou a desordem, com uma das mãos, tentava arrancá-lo de dentro da vala e com a outra lhe baixava a borracha com vontade. Uma cena insólita. Zeca, de branco, naquela vala imunda, sendo espancado pelo policial, berrava:

            — Eu te processo! Eu te processo!

            Cláudio veio lá de dentro e acabou com a festa do guarda, colocando-o fora de combate. Alguém falou que o delegado, já presente naquela altura da confusão, havia baleado o Carlos. Revoltado, Cláudio foi procurar o delegado, encontrando-o logo em seguida.

            — Onde está meu irmão? – perguntou.

            O delegado ao ver que se tratava do Cláudio, vulgo Jacaré, tremeu nas bases.

            — Foi embora, atirei só para assustar.

            — Pois bem, se tu tiveres ao menos arranhado meu irmão, te prepara que vou invadir aquela delegacia de merda. Reza.

            Felizmente nada havia acontecido com o Carlos, que já voltava para a briga, munido de dois facões de mato Collins 28.   Dissuadido pela turma que já vinha contando cada um sua bravata, entrou na conversa e esqueceu-se de mais uma pugna. Após a seção de todo tipo de ralhação, incentivados pelo papai, a conversa descambou para a galhofa. Menos dona Léo, muito sisuda e severa, que continuava a repreender seus filhos pela desobediência de sua recomendação.

            Lúcio e Lysis, para descontrair o ambiente, lembrando-se da efeméride, entoaram um “Parabéns para você”, referindo-se ao aniversário da tia Glória. Todos acompanharam e não sei, até hoje, de onde surgiu um bolo com tantas velas, que após acesas, parecia mais um incêndio. Aí virou festa. Abraços, beijos, alegria e sorrisos dissiparam aquele ambiente desagradável que pairava naquele momento.

            Maré cheia, sob o protesto da dona Léo que teimava em querer reter a turma dentro de casa, porfiando carreira, saíram todos em disparada só parando dentro d’água. Até o Zeca que, sorumbático, continuava amuado pelas broncas da Dindinha, entrou na brincadeira. Como se para aliviar a tensão, saíram todos nadando até muito longe da praia. Mais tarde os pescadores amigos do papai, alertaram-no para não deixar os meninos irem tão longe, pois os cações estavam comendo os peixes fisgados no espinhel. Foi um dia inesquecível.

            Ah! Casa Velha quantas recordações!

            Uma tarde, após terminar a pelada na praia do Areão, Fernando e eu viemos correndo da vila até a casa debaixo de um forte pé d’água. Lá chegando, fomos direto para o poço que abastecia a casa de água potável. Era um poço profundo que papai mandara fazer, com bordas de alvenaria. Por um método rudimentar, tirava-se água através de uma corda com um balde amarrado na ponta que era içado no braço com auxílio de uma carretilha.

            Não sei por que, naquela área, era freqüente a queda de raios. Todos os bacurizeiros, que são árvores enormes e se destacam das outras, foram atingidos brutalmente por faíscas elétricas vindas da atmosfera. Sem darmos conta do risco a que estávamos expostos, continuávamos nosso inocente banho, desobedecendo aos apelos da mamãe que nos chamava para dentro alertando-nos do perigo. Finalmente, já com um pouco de frio, entramos. A chuva e o mau tempo não davam trégua. Mamãe com seu terço, rezava contrita pedindo a Santa Clara que abrandasse o temporal e, por precaução, havia desligado a luz. Subimos a escadinha de madeira, atravessamos a varanda e entramos no primeiro quarto. Acendi a luz. Mamãe protestou lá do segundo quarto.

            — Desliguem isso meninos, não vêem que está relampejando?

            — Que nada mãe, acenda a luz aí — falei, pois o interruptor era no quarto dela.

            — Não, não vou acender! Vocês estão ficando loucos?

            — Acende aí, Fernando!

            Nós dois inteiramente molhados e nus.

            Fernando pôs-se na ponta dos pés e, por sobre uma meia porta divisória, tentou alcançar o interruptor. Foi um estampido só. Parecia que tinham dado um tiro de canhão dentro do quarto. Fernando enrijecido com os braços abertos e na ponta dos pés, permanecia estático. Num movimento automático corri para abraçá-lo tentando ampará-lo. Fui jogado a distância. Sem saber o que havia acontecido, mamãe e as tias correram para nos acudir. O constrangimento foi maior por estarmos pelados na frente daquelas respeitáveis senhoras. Foi um horror. Gritos, prantos desesperados e angústias. Tudo em fração de segundos. Um raio caíra próximo à linha num abacateiro da casa de Seu Pedro, pescador, distante da nossa mais de uma quadra. Por esse motivo havíamos sobrevivido. Um medo tétrico se apossou de mim. Pedi para fechar as janelas de nosso quarto. Fui dormir na rede junto com mamãe e desfrutar do calor de suas costas largas como se fossem as asas do anjo de guarda.

            — Viu o que acontece com quem desobedece aos conselhos da mãe? – alertou-nos com um indisfarçável ar de sabedoria professoral.

Foi um grande susto.

            Ah! Casa Velha, presenciaste tudo isso com teu silêncio impassível.

            — Iniciava eu minhas incursões pela noite com a curiosidade própria do adolescente, quando uma noite resolvi, sozinho, ir até o forró do Duca Buretamba. Sob o luar da lua cheia, que clareava a rua sem asfalto e sem iluminação elétrica, eu seguia temeroso. Com os olhos arregalados, coração palpitante, respiração ofegante e dentes cerrados, seguia à risca o conselho de meu saudoso pai:

            — Quando estiver com medo não olhe para trás.

            Verdade. Se olhar para trás, na terceira vez, com certeza, a pessoa acaba correndo, cheio de pavor. A estrada, em vez de diminuir, à medida que eu caminhava, parecia exatamente o contrário, a sensação era a de que aquele som do forró estava cada vez mais distante. Noite de luar é uma coisa linda, poética e romântica, mas no momento certo. Na minha situação, era um verdadeiro tormento de momentos intermináveis. Quando a brisa soprava nas folhas das bananeiras, o clarão da lua projetava uma sombra se movendo à minha frente ou ao lado. O susto era imenso. O coração só faltava sair pela boca. Até que finalmente virei a esquina e deparei-me com um pequeno barraco de madeira, suspenso do chão, apoiado por esteios de madeira a uma altura aproximada de um metro, no melhor estilo local de palafitas. Entusiasmei-me todo, estufei o peito, orgulhoso de ter vencido galhardamente o trajeto até ali, subi a pequena escada, também de madeira, e fui recebido pelo simpático festeiro Seu Duca Buretamba. Sujeito simpático, hospitaleiro, amável, sorriso fácil, um mestiço trigueiro, chapéu de palha sobre a cabeça, cobrava o ingresso dos cavalheiros que entrassem no salão de baile. Preparei meu um cruzeiro para pagar o ingresso, mas não foi necessário, Seu Duca me deu um largo abraço e disse:

            — Filho do Seu Timótheo aqui não paga!

            Tímido, encabulado, sem saber o que fazer, agradeci e deparei-me com o salão cheio. Como de praxe, outrora, mulheres sentadas nos bancos corridos que circundavam o salão e cavalheiros de pé. Antes de ir até a dama e tirá-la para dançar, trocavam-se olhares para não correr o risco de levar um não. Situação constrangedora que fazia qualquer descarado corar. Entre o telhado e o assoalho, havia um tapume de madeira, que corresponde hoje ao sofisticado mezanino, uma pequena escada de madeira para acesso do discotecário. Ali ficavam instalados os picapes ou a aparelhagem de som, que poderia muito bem ser chamada de parafernália do som. Era movida por um gerador de energia instalado do lado de fora do barracão, que produzia um barulho ensurdecedor a ponto de, em certos momentos, superar as cornetas da aparelhagem de som. Tinha dois toca-discos, para não haver interrupção nas músicas, dando tempo ao discotecário de procurar o próximo 78 rpm a ser rodado e um microfone cromado de mesa onde o locutor caprichava nos recados:

            — Aru! Aru! Zurmira ouve esta gravação que Parmira te oferece: o bulero Imaringau, rautificando, Conserto de Vausuras – se referindo à canção Maringá e ao Conserto de Varsóvia.

            — Ao membro da família Jacaré que acaba de chegar, nosso cordiar sardável.

            —Aru! Aru! Cavalheiro da camisa listrada, queira dançar direito, pois o recinto é artamente familiau.

            O rapaz dançava apenas no estilo puladinho, mas pelo visto não era do conhecimento do speaker ou DJ que talvez só conhecesse o monótono dois pra lá dois pra cá. Timidamente, tirei uma caboclinha para dançar. Vestidinho rodado de chita e aquele agradável perfume tradicional de patchouli com priprioca, a donzela logo colou o rosto com o meu, num sinal positivo de que eu estava agradando. Minha cabeça de adolescente, enternecida, divagava suavemente em suas fantasias lascivas e eróticas. Certo momento, um pescador que parecia mais um guarda-roupa, foi fazer uma firula no passo da dança, tentando variar o trivial dois pra lá dois pra cá, deu uma rodada de bailarino. Abriu-se uma clareira no salão. Vários pares foram atingidos inclusive eu, que, com uma porrada do cotovelo do homem na minha nuca, caí por terra sobre a infeliz moçoila. Um valente que fora atingido pelo bailarino e, do mesmo tamanho dele, não conversou. Deu-lhe com os pés no peito, mais parecendo um golpe de aríete medieval. O efeito foi de dominó e para piorar a situação aquele bolo de gente foi parar exatamente no esteio que dava sustentação ao mezanino, fazendo descer nosso alegre animador juntamente com toda sua parafernália musical.

            Gritos de histeria das mulheres, já trepadas nos bancos corridos, torcendo pelos seus machos, pois naquela altura a pancadaria generalizou-se.

            Seu Duca, o festeiro, já de uma certa idade, tirava o chapéu da cabeça e pedia ajuda aos santos:

            — Valei-me Nossa Senhora de Nazaré!

            Não sei se era o lugar próprio para uma santa tão milagrosa e tão recatada tirar plantão, mas nada como a turma do deixa disso. Ânimos serenados, após uma hora de arruaça, todos cooperaram para colocar o poleiro no devido lugar, dando condições para que o baile prosseguisse. Nosso heróico locutor trocou as agulhas dos toca-discos e felizmente a aparelhagem não havia sido danificada, pois descera de maneira suave repousando sobre os dançarinos estatelados no chão. Alguns sopros no microfone e fez-se ouvir a voz do animado e destemido speaker.

            — Aru! Aru! 1,2,3. Aru! Aru! 1,2,3...

            De repente, adentra o salão Dona Justa. Todo o destacamento da ilha: um sargento, um cabo e dois soldados. Todos pararam e dirigiram os olhares para aquelas autoridades que acabavam de chegar. Os mais temerosos, saíram sorrateiramente com receio de serem admoestados. Eu permanecia encostado à janela apoiado com as duas mãos no pára-peito. Qualquer movimento em minha direção, com um salto, estaria na rua.

            Gritou o sargento para o nosso simpático locutor:

            — Ô! Aru Aru, desce daí. Tu tá em cana!

            Tremendo como se atingido por uma febre terçã, pálido como uma cera, o baixinho desceu, deixando para trás uma catinga insuportável, o pobre coitado havia se borrado todo diante da voz de prisão.

            — Baile encerrado! — sentenciou o sargento.

            Nessas alturas manda quem pode, obedece quem tem juízo. Todos se retiraram. Ainda me lembro das feições do Seu Duca, chapéu de palha na mão, coçando a cabeça, com cara de choro, começava a contabilizar os prejuízos sob protesto de alguns mais exaltados que queriam o dinheiro do ingresso de volta. Após tantas emoções em uma única noite, em minutos eu estava na minha casa. Tirei uma reta na tal rua que levava ao barracão do Seu Duca, sem olhar para trás, parti em desabalada carreira. Devo ter batido todos os recordes olímpicos.

            Ah! Casa Velha, sempre contei com tua conivência.

            Numa tórrida noite de janeiro, a chuva torrencial, que é constante no inverno equatorial, havia dado uma trégua e a lua cheia clareava a baía de Guajará transformando aquele espelho d’água numa imensa bandeja de prata, fazendo contraste, ao fundo, com a alta e verdejante floresta da Ilha das Onças. Um lindo espetáculo da natureza que é pródiga naquelas plagas. Na sede náutica do Clube do Remo, nos preparávamos para dormir, com muito pesar de fechar os olhos para aquela paisagem tão deslumbrante. Dormíamos cedo. Todos jovens. Armávamos nossas redes e a brisa que soprava de Nordeste servia como afago e acalanto para nossos sonhos e fantasias de rapazes. Às cinco horas da manhã todos de pé. Barcos na água, iniciávamos nossos treinamentos. Nossa guarnição em particular, um quatro com patrão, treinava para disputar o Campeonato Brasileiro de Remo no Rio de Janeiro, edição de 1960.

            Estávamos todos num estado semiletárgico, absortos em nossos pensamentos e embalados pelo marulhar das ondas da maré, quando a campainha estridente do telefone nos trouxe de volta à realidade. Um dos nossos, Rachid, levantou-se e foi atender, resmungando entre dentes:

            — Deve ser alguma vagabunda procurando homem!

            Ali era o lugar certo. Um bando de sonhadores irresponsáveis. Moça de boa fama para lá não ligava. O turco se transformou. Com os olhos brilhando de alegria, transmitiu-nos a notícia de que havia um avião da FAB na Base Aérea de Val-de-Cães, com autorização da CBD para levar cinco atletas a fim de disputar o Campeonato Brasileiro de Remo, na Lagoa Rodrigo de Freitas. Deveriam estar pontualmente às cinco horas da manhã do dia seguinte na Base Aérea.

            Com o coração exultante de alegria, corri para minha casa a fim de dar a notícia e pedir permissão aos meus pais. Fui recebido com a compreensão de meu pai e a angústia de minha mãe. Mãe, uma história à parte na vida de cada um. Seu coração a prevenira. Antes da minha partida ainda guardo na retina sua última imagem, balançando-se em sua inseparável rede, olhos marejados, terço às mãos, implorando ao meu pai:

            — Timótheo, não deixa esse menino viajar!

            Papai, um homem que dedicara grande parte da sua juventude ao desporto, compreendendo o sacrifício do atleta amador e o amor pela disputa que empurra os atletas a superar seus recordes, disse:

            — Não, ele venceu a eliminatória, ele vai. Filho, vai com Deus! Representa bem nosso Estado e volta rápido.

            Passei a mão em uma sacola de mão com uma das alças arrebentada, botei duas mudas de roupa dentro dela, vesti um terno de linho do papai e assim me preparei, sem saber como enfrentar um novo mundo, uma nova vida. Apresentamos-nos na Base Aérea, às quatro da manhã. Um sargento nos levou até os dois oficias que nos encaminharam à aeronave. Era um bimotor Beechcraft, um pequeno bombardeiro da segunda guerra, adaptado, em tempos de paz, para o translado de passageiros. Duas poltronas para os comandantes no bico de proa e mais cinco apertadas na traseira. Na medida para nossa guarnição: Jaime, o timoneiro; Roldão, o voga; eu, sota-voga; Rachid, sota-prôa; e Mané Cró, na proa.

            O aparelho tinha pouca autonomia de vôo. Não podia ver um campo de futebol que pousava. Pousamos em Carolina do Norte, onde a comissão de recepção era composta somente de índios que vinham em busca de algum trocado ou praticar escambo, oferecendo arcos, flecha e galinhas a troco de algum utensílio que lhes interessasse. Não foram felizes, nada apuraram. Aquilo era fato rotineiro para os comandantes.

            Nós, todos pobres, com exceção do Rachid — não conheço turco pobre — carregávamos só o necessário para fazer face a algum gasto extra que surgisse, pois a hospedagem e a bóia estavam garantidas pela CBD.

            De volta ao aparelho, após várias outras escalas, conseguimos, finalmente, aterrissar ao anoitecer na Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, na parte reservada aos militares. Ao lado da pista, muito capim, dava um ar de desleixo. Pensei com meus botões, cheio de desdém:

            — Isso que é o tal do Rio de Janeiro?

            Pegamos um táxi. Um velho Chevrolet preto e rumamos para o Hotel Leblon, local determinado para nossa hospedagem. À medida que o táxi avançava meus olhos mais se arregalavam e meu queixo se apoiava no peito, tal era meu espanto. Quando entramos no Túnel Novo, queacesso a Copacabana, fiquei maravilhado, nunca havia visto um morro. Claro, para cima tudo é planície. O néon das lojas me ofuscavam e dei conta de mim quando os colegas perguntaram:

            — O que foi que dissestes?

            No meu devaneio, pensei em voz alta:

            — Daqui não volto mais!

            Sem saber, estava decretando meu destino.

            Chegamos ao hotel, todos inexperientes e com hábitos diferentes, pouco traquejo social. Meu companheiro de quarto não conhecia o bidê das instalações sanitárias. Curioso, mexeu nas torneirinhas e levou um esguicho de água no rosto. O outro, guardou a geléia de passar no pão, para depois do jantar, imaginando tratar-se de sobremesa. Assim fomos cometendo nossas gafes.

            No dia seguinte pegamos o bonde 11, circular, e fomos dar um passeio. Na altura do Parque Lage, no Jardim Botânico, dei sinal e descemos.

            — Aqui está próximo do hotel – disse eu do alto do meu total desconhecimento do Rio de Janeiro. Era quase meio dia num sol de janeiro. Após horas de bom andar, chegamos ao Hotel Ipanema, no Jardim de Alah, extenuados.

            Ali, daquele hotel que era de um bom espanhol chamado Jesus, fomos transferidos para a sede náutica do Vasco, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, onde fizemos boas amizades.

 

 

 

 

PAI, AQUI TERMINA A CASA VELHA. SERÁ QUE NÃO VALE VOLTAR A ELA UM POUCO PARA ENCERRAR?

 

 

UM CERTO NATAL

 

 

 

            Pedro,

            como acontece todo ano, naquele, decidimos fazer a festa do Natal na casa do teu tio Marco Antônio. Era sempre uma festa agradável. Faziam-se as comidas tradicionais, iguarias de todas as espécies, sorteios de amigo oculto, troca de presentes, enfim, uma alegria!

            Tu levavas vantagem na hora da entrega dos presentes, pois eras o mais novinho. A turma do Vicente e da Sônia já era maior e já curtia outros baratos. Possuías um grande prazer em chupar bico. Nós adultos somos muito professorais, austeros com as crianças; chatos mesmos.

— Esse menino tem que parar de chupar bico. Estraga os dentes, deforma a personalidade!

            Quanto conceito! Em nenhum momento se imagina o prazer daquele ato, a delícia que é chupar bico. Pobres crianças, desde cedo obrigadas a fazer tudo aquilo que os adultos impõem.

            Pois bem, articulou-se uma troca com Papai Noel, logo com quem, o Bom Velhinho. Receberias dele uma bicicleta, mas abdicarias do teu prazer de chupar bico.

            Que maldade! Na hora marcada, naquela noite de Natal, “O “Bom Velhinho” chegou trazendo consigo aquela reluzente bicicleta. Teus olhos faiscaram de alegria.

            — É toda tua, porém terás que me dar teu bico em troca e prometeres nunca mais voltar a chupar!

            Numa atitude decidida e firme, entregaste o bico e recebeste a bicicleta. Eu te observava atentamente. Meu coração apertou e meus olhos ficaram marejados. Mudo estava, mudo fiquei, com meu sorriso pateta na face. Meu filho estava contabilizando sua primeira perda. Tomando a primeira lição. Para alcançar a bicicleta teria que preterir a companhia inseparável, por todos esses anos de vida, de seu bico. Sim, aquela coisa antiestética e repugnante que nós adultos condenamos e que as crianças amam.

            Naquele momento de festa sua atenção toda era para a bicicleta. E na hora de deitar com seu companheiro? Aquele que o ajudava a ninar e contar carneirinhos? Que teria sido feito dele? Onde estaria? Teria sido jogado fora em uma lata de lixo? Estaria sentindo frio, sozinho, naquela noite de Natal? Não teria ninguém para chupá-lo? Estaria se lembrando de mim? Da maldade que lhe fiz?

            Maldita bicicleta, me tiraste meu melhor amigo. Meu bom companheiro de todas as horas. Principalmente à noite assistindo televisão. Essa maldita bicicleta terá que ter espaço para eu brincar com ela.

            Dia de chuva, não pode. Dentro de casa, não pode. Na escola, não pode. Parece que cometi uma traição e na troca da nova amiga pelo velho companheiro, fui injusto e levei “manta”.

            Eu, teu pai, assisti a tudo calado e apreensivo. Queria ver o desfecho. Aquele propósito teria sido momentâneo? Tu voltarias atrás no dia seguinte? Para mim, aquela noite de Natal não foi igual às outras. Fiquei cismático. Para minha surpresa: tu nunca mais falaste em bico. Uma prova insofismável da tua personalidade e do teu caráter.

            Bravo, filho!

 

 

 

 

NÃO SERIA MELHOR TERMINAR NO “Bravo, filho!”?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FIM

 

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